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Kosovo e a busca por reconhecimento internacional: a vez do futebol

Desde sua declaração unilateral de independência da Sérvia, em 17 de fevereiro de 2008, o Kosovo vem travando uma árdua batalha diplomática em busca de reconhecimento internacional. De acordo com o Ministério de Relações Exteriores da República do Kosovo, 111 dos 193 países filiados à ONU reconhecem a independência kosovar, incluindo os Estado Unidos, a maior parte dos países da União Europeia (23 dos 28 Estados) e da OTAN (25 de 29 Estados). Da mesma forma, algumas organizações intergovernamentais financeiras, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e o Banco Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento (BERD), reconhecem a soberania do país e negociam diretamente com suas instituições governamentais. Além disso, o Tribunal de Justiça Internacional declarou, em julho 2010, que o processo de independência não contrariou o direito internacional.

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Manchete de BBC. Reprodução.

No entanto, o reconhecimento internacional do Kosovo ainda enfrenta forte obstáculo de países que se opõem à independência, capitaneados pela Sérvia. Desses, Rússia e China são as maiores pedras nos sapatos kosovares, uma vez que ocupam assentos permanentes no Conselho de Segurança da ONU, e sem sua aprovação o país não poderá ser aceito como membro da Organização. Além desses, a Espanha também se coloca como forte opositora na esfera da União Europeia, estando ela também assombrada pelo fantasma de uma declaração de independência unilateral da Catalunha.

Nesse sentido, o campo esportivo tem sido uma importante arena na luta kosovar. Com o país inicialmente fora das competições internacionais em seu pós independência, atletas como Majlinda Kelmendi, estrela do judô internacional, disputaram torneios sob o estandarte albanês – como nos Jogos Olímpicos de 2012, em Londres –, sendo a Albânia uma nação com fortes laços étnicos e históricos com Kosovo. Gradualmente, a partir de 2012, o país foi sendo aceito em federações esportivas internacionais, e em 2014 foi formalmente aceito como membro do Comitê Olímpico Internacional, o que permitiu que seus atletas participassem dos Jogos do Rio de Janeiro, em 2016, sob a bandeira de seu país, e levou à conquista da primeira medalha de ouro do Kosovo, na categoria de -52 kg feminino, com Majlinda Kelmendi.

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Publicação do 1º Ministro de Kosovo, Isa Mustafa, em rede social.

A inclusão nos ranques do COI não veio sem embates. Vlade Divac, ex-jogador da NBA e atual presidente do Comitê Olímpico da Sérvia, rebateu a entrada afirmando:

Nós fizemos tudo que podíamos, por cinco anos conseguimos bloquear  sua aceitação e proteger a Carta Olímpica. (…) O fato é que essas decisões abrem um precedente, uma vez que desde 1996, quando se mudou a Carta Olímpica (i.e. o estatuto do COI), nenhum país é admitido ao COI antes de ganhar um assento nas Nações Unidas. Não estamos satisfeitos com esta decisão, mas como um esporte, e não uma organização política, como parte do Movimento Olímpico (…).

(Дивац: Урадили смо све што смо могли [Divac: Nós fizemos tudo o que podíamos]. Политика [Política], 12 dez. 2014. Texto traduzido com o auxílio de tradutor eletrônico)

A afirmação de Divac deixa claro: a Sérvia buscou evitar o quanto pode a inclusão do Kosovo nas organizações esportivas internacionais. E sua entrada no COI abriria muitas portas.

No futebol, o reconhecimento do Kosovo pela FIFA ocorreu gradualmente, até sua admissão oficial na entidade em 2016. De acordo com circular da entidade datado de 6 de fevereiro de 2013, clubes ligados a países membros da Fifa poderiam jogar com outros associados à Federação de Kosovo em amistosos, ressaltando que “os jogos devem ser realizados sem a utilização de símbolos nacionais (bandeiras, hinos nacionais, etc.)” e que essa autorização era valida apenas para “jovens, amadores, mulheres e futebol de clubes”, deixando seleções profissionais masculinas de fora. Além disso, jogos no território de Kosovo seriam permitidos apenas com a autorização prévia da Associação de Futebol da Sérvia. Kosovo ganhava espaço, mas ainda não conseguia suplantar a oposição da Sérvia.

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O primeiro jogo da seleção masculina principal do Kosovo contra um selecionado associado à Fifa ocorreu em março de 2014, em um empate sem gols contra o Haiti no Estádio Olímpico Adem Jashari, no Kosovo. Outro desafio que se colocou diante do Kosovo nesse momento foi formar sua seleção. Diversos atletas kosovares já jogavam por outras seleções e alguns se dispuseram a vestir o uniforme de seu país, vindo de seleções como Albânia, Finlândia, Noruega e Suíça. Apesar do empate sem gols, a mera realização do jogo foi vista como uma vitória, e ajudou a pavimentar o caminho para conquistas maiores.

Em 2016, Kosovo foi aceito como membro da UEFA e, no 66º Congresso da FIFA, realizado em maio na Cidade do México, Kosovo foi aceito como 210º país associado da Federação, juntamente com Gibraltar (211º). Nesse mesmo congresso, foi determinado que Kosovo participaria das eliminatórias para a Copa do Mundo da Rússia de 2018, possibilitando um novo patamar de participação e visibilidade no cenário esportivo internacional.

A própria perspectiva de participar de uma competição como a Copa do Mundo em solo russo com uniforme e insígnia kosovar já era em si uma vitória apenas recentemente conquistada. Em 2014, quando Kosovo já era reconhecido como membro pela Federação internacional de Judô (IJF), Majlinda Kelmendi precisou disputar o mundial da modalidade na cidade russa de Cheliabinsk com as iniciais da federação (IJF) em seu quimono. Devido ao não reconhecimento do país pelo governo russo, a bandeira e os símbolos nacionais kosovares não podiam ser exibidos na competição. Aos poucos o esporte vai abrindo espaço para a maior representação nacional do país. Em 2016, a cidade russa de Kazan sediou o campeonato europeu de judô. Depois de longa negociação, os atletas de Kosovo já puderam participar com seus símbolos, e Majlinda Kelmendi conquistou novamente o ouro. No entanto, a possibilidade de fazê-lo em um torneio com a visibilidade internacional de uma Copa do Mundo seria um sonho. Mas para isso, tão distante quanto um sonho, seria a classificação nessas eliminatórias.

As Eliminatórias para a Copa de 2018

O sorteio dos grupos para as eliminatórias da Copa do Mundo de 2018 já havia sido realizado quando da inclusão de Kosovo e Gibraltar nas fileiras da Fifa. A UEFA, entidade que controla as eliminatórias europeias, decidiu encaixar as duas seleções nos dois grupos que contavam com apenas cinco países (os outros possuem seis equipes). Tendo em vista evitar o confronto de Kosovo com Bósnia e Herzegovina, país com larga etnia sérvia que não reconhece Kosovo, e evitar possíveis conflitos, o novo país membro foi alocado no grupo I, juntamente com Croácia, Islândia, Ucrânia, Turquia e Finlândia.

Em termos políticos, o grupo favorecia a afirmação nacional do Kosovo. Dos cinco oponentes, apenas Ucrânia não reconhece sua independência. A Turquia foi um dos primeiros países a reconhecer Kosovo e foi um importante aliado da causa kosovar junto a países de maioria muçulmana. Os conflitos diplomáticos entre Turquia e Rússia também pesaram a favor de Kosovo, uma vez que a Rússia é o principal aliado dos sérvios em sua campanha contra o reconhecimento internacional do Kosovo. A croácia possui uma rixa histórica com a Sérvia, tendo sido o primeiro país a se desligar da antiga Iugoslávia após guerra civil. Já Finlândia e Islândia reconhecem a apoiam a causa kosovar.

O primeiro jogo foi contra a seleção da Finlândia. Novamente, a escalação do selecionado foi um grande problema a ser enfrentado. Jogadores nascidos em Kosovo que já tinham participado de outras seleções ainda não tinham sido liberados pela Fifa para disputar o jogo, e a decisão da Fifa sairia apenas horas antes do primeiro jogo. OS jogadores que desejassem jogar por Kosovo tiveram que fazer um pedido formal ao Comitê de Jogadores da Fifa, que não deixou seus critérios de aprovação muito claros. Sinan Bytyqi, meio campista do Manchester City, já havia sido liberado, mas seis jogadores ainda dependiam de parecer favorável: Samir Ujkani, Alban Meha, Herolind Shala, Milot Rashica, Amir Rrahmani and Valon Berisha. Todos os jogadores acabaram sendo liberados pela Fifa para jogar por Kosovo. Os cinco primeiro já haviam disputados jogos pela Albânia, e Berisha já jogara pela Noruega. O goleiro Samir Ujkani foi o capitão da equipe e Berisha marcou o primeiro gol oficial de Kosovo em uma competição da Fifa, no empate de 1 a 1.

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Nova bandeira do Kosovo na declaração da independência.

O segundo jogo das eliminatórias foi contra a Croácia. O jogo foi realizado em clima de festa entre os torcedores, que se reuniram em Shkodër, cidade da Albânia que recebeu o confronto, uma vez que os estádios kosovares não atendem os requisitos da Uefa para a competição. O clima de amizade e união contra um inimigo em comum também deu espaço para cantos da torcida hostilizando sérvios. De acordo com o periódico Balkan Insight, gritos de “Morte aos Sérvios” eram entoados por torcedores de ambas as equipes fora do estádio – ambas as federações foram posteriormente multadas pela Fifa pelo incidente. Dentro de campo, a equipe croata não teve dificuldades e atropelou Kosovo por 6 a 0.

Na terceira rodada, Kosovo iria à Ucrânia jogar contra a seleção treinada por Andriy Shevchenko. Iria, pois devido ao não reconhecimento de Kosovo pela Ucrânia, a Federação Ucraniana decidiu realizar o jogo em Cracóvia, na Polônia. Temendo conflitos, a polícia polonesa permitiu que apenas uma pequena parcela da arquibancada fosse aberta ao público, fazendo com que apenas algumas centenas de torcedores vissem ao vivo a vitória da Ucrânia por 3 a 0. O jogo transcorreu sem maiores problemas, com apenas alguns cantos de “Putin, Putin” entoado pelos kosovares como provocação aos ucranianos.

Nas rodadas seguintes, Kosovo foi à Turquia, recebeu a Islândia e a Turquia (na Albânia), foi à Zagreb jogar com a Croácia, recebeu a Finlândia e a Ucrânia, perdendo todos os confrontos. Na última rodada, realizada no dia 9 de outubro de 2017, Kosovo perdeu por 2 a 0 para a Islândia, em Reykjavík. Terminou as eliminatórias na última posição do Grupo I, com apenas um ponto ganho, em seu empate contra a Finlândia na primeira rodada. Marcou 3 gols e sofreu 24.

Mas a campanha de Kosovo está longe de ser vista como um fracasso. James Ker-Lindsay, especialista em política do Kosovo da London School of Economics, afirmou:

Na falta de reconhecimento por outros Estados, uma das chaves para legitimar o Kosovo é integrá-lo em organizações e eventos esportivos internacionais.

Alguns anos atrás, um diplomata disse que Belgrado iria finalmente aceitar o Kosovo como um Estado independente quando visse o Kosovo jogar futebol na Copa do Mundo – e eu acho que esse é um argumento válido. Ao tomar parte na Copa do Mundo e nas Olimpíadas, o Kosovo está, na verdade, consolidando seu lugar no palco internacional. [1]

Para muitos, as eliminatórias já são consideradas a primeira fase da Copa do Mundo, especialmente aqueles que não possuem um forte histórico de participação no que chamam de “fase final” da competição. Dessa forma, o diplomata acima citado por Ker-Lindsay não está tão longe de quanto pensava. De certa maneira, Kosovo já está participando.

No entanto, ainda como em sua jornada por reconhecimento internacional, ainda há muitas batalhas a serem travadas até a participação kosovar em uma fase final de Copa do Mundo. A Eurocopa pode ser vista como um objetivo mais factível a médio prazo. Das atuais 55 equipes que disputam a classificação, 24 irão disputar a Euro 2020, um sonho mais próximo da realidade, ainda que permaneça apenas um sonho. Ao menos por enquanto.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Maurício Drumond

Doutor em Histórica Comparada, editor de "Recorde: Revista de História do Esporte", pesquisador do "Sport: Laboratório de História do Esporte e do Lazer" da UFRJ e autor de livros e artigos sobre a História do Esporte.

Como citar

DRUMOND, Maurício. Kosovo e a busca por reconhecimento internacional: a vez do futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 100, n. 23, 2017.
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