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Lima Barreto, futebol e racismo

Lima Barreto escreveu na revista Careta no dia 23 de outubro de 1920:

“A cousa passou desapercebida, devido ao atordoamento das festas do Rei Alberto; mas, se assim não fosse, estou certo de que haveria irritação em todos os ânimos”[1].

Que “cousa” era essa que ninguém havia notado durante a passagem da família real belga pelo Brasil?

O escritor reagia a uma matéria do jornal Crítica, de Buenos Aires, intitulada “Monos en Buenos Aires”[2] e assinada pelo jornalista uruguaio Antonio Palacio Zino, com ilustração de Diógenes Taborda, argentino. Os brasileiros lá estavam para um amistoso contra os hemanos e a reportagem apresentava quem eram os visitantes[3]:

“Já estão os macaquitos em terra argentina. Esta tarde teremos que acender a luz às 4 da tarde para vê-los. Nós os vimos passear por essas ruas aos saltinhos. Se há uma gente que nos parece altamente cômica é a brasileira. São elementos de cor que se vestem como nós e pretendem se misturar à raça americana, gloriosa por seu passado e grande por suas tradições”[4].

Lima Barreto retrucou:

“Precisamos nos convencer de que não há nenhum insulto em chamarmos de macacos. […] A Bélgica tem leões; entretanto, o leão é um animal sem préstimo e carniceiro. O macaco – é verdade – não tem préstimo; mas é frugívero, intelligente e parente próximo do homem. Não vejo motivos para zanga nessa história dos argentinos chamar-nos de macacos”[5].

Com bom humor, Lima Barreto ataca o racismo da matéria invertendo os sentidos comumente atribuídos ao macaco e ainda sugeria uma virtuosidade nas características raciais que formavam o povo brasileiro.

Lima Barreto. Foto: Reprodução.

Um ano se passa e outro evento envolvendo futebol, questão racial e imagem nacional acontece no Rio. Só que agora Lima Barreto deixaria de lado a serenidade. Insurgiu-se contra o que parte da imprensa denunciava[6]: “O presidente da República não quer ‘homens de côr’ no nosso ‘scratch’”[7] e “Scratch pró-forma – A exclusão dos negros e mulatos”[8].

O Brasil disputaria o campeonato sul-americano na Argentina naquele ano de 1921. A situação agravou-se quando se suspeitou que o membro de honra da CBD e presidente da República, Epitácio Pessoa, teria exigido um time inteiramente branco para representar o país[9]. Barreto então escreveu dois artigos, que foram publicados no mesmo dia, um na revista Careta e outro no semanário A.B.C.:

“O futeból é eminentemente um factor de dissenção. Agora mesmo, elle acaba de dar provas disso […].O Sacro Collegio do Futeból reuniu-se em sessão secreta, para decidir se podiam ser levados à Buenos-Ayres, campeões que tivessem, nas veias, algum bocado de sangue, negro-homens de cor. […] O conchavo não chegou a um accordo e consultou o Papa, no caso, o eminente Sr. Presidente da República. S. Ex. […] não teve dúvida em solucionar a grave questão. Foi sua resolução de que gente tão ordinária e compromettedora não devia figurar nas exportáveis turmas de jogadores; lá fora, accrescentou, não se precisava saber que tínhamos no Brazil semelhante esterco humano. […] O que me admira, é que os impostos, de cujo producto se tiram as gordas subvenções com que são aquinhoadas as sociedades futebolescas, não tragam também a tisna, o estigma de origem, pois uma grande parte delles é paga pela gente de cor.”[10].

“É o fardo do homem branco: surrar os negros, afim de trabalharem para elle. O futeból não é assim: não surra, mas humilha; não explora, mas injuria e come as dízimas que os negros pagam.”[11].

Barreto subia o tom da crítica e acusava o “déficit republicano” no que diz respeito à inclusão dos negros na recém instaurada comunidade política. As previsões do escritor se confirmaram e o time que foi para a Argentina era composto somente por jovens brancos[12].

“Déficit republicano”, uma vez que a nação, ao menos supostamente, deveria cobrir-se com o manto da igualdade, evitando “dissensões”, como diz no trecho acima. O futebol em nada auxiliaria essa tarefa e funcionaria antes como um meio de reforçar a segregação social a partir de um critério racial. Para o cronista, o futebol seria um instrumento para perpetuar uma separação que “não existe no Senado, na Câmara, nos cargos públicos, no Exército, na magistratura, no magistério; mas existe no transcendente futeból.”[13].

Negro, neto de escravizados, Lima Barreto sabia que em uma sociedade em que todos deveriam estar subordinados ao império da lei, não haveria espaços para a “transcendente” distinção racial de outros tempos. Questionava-se um modelo de nação e reivindicava-se cidadania para os negros. Se todo o ordenamento político estava orientado por prerrogativas isonômicas, por que, então, o mundo social escaparia a isso? O “fardo do homem branco” deitava sua história na linguagem da violência constituída no país durante a escravidão. A perpetuação dessa linguagem, sob a República, como proposto por Barreto, continuava não sobre o corpo do negro escravizado “surrado” e “explorado”, obrigado a ceder sua vida e sua força de trabalho ao homem branco. Ganhava a forma da “humilhação” e da “injúria” – atingia a alma. A violência continuava, mas agora dissimulada. Contra isso, Barreto denunciava, então, a situação de indignidade da população negra:

“Os maiores déspotas e os mais cruéis selvagens martyrisam, torturam as suas victimas; mas as matam afinal. Matem logo os de côr; e viva o futeból, que tem dado tantos homens eminentes ao Brazil! Viva!”[14].

A partir do universo social do futebol, Lima Barreto retirava à unha o verniz de modernidade e civilidade que políticos, dirigentes esportivos, literatos, homens de ciência conferiam à imagem do país. Em seu lugar: despotismo e selvageria.


[1] BARRETO, Lima. “Macaquitos”, Careta, 23 out. 1920, p. 17 (Edição 644).

[2] Para mais detalhes relacionados à publicação da matéria e da charge, ver: PALACIOS, Ariel. CHACRA, Guga. Os hermanos e nós. São Paulo: Contexto, 2014.

[3] Como as imagens do recorte de jornal encontradas não possuem qualidade apurada, utilizaremos a transcrição feita por Christian L. M. Schwartz, que teve acesso direto ao periódico na Biblioteca Nacional de Buenos Aires. SCHWARTZ, Christian L. M. Futebol em tradução: Língua nacional e estilo de jogo em relatos da imprensa argentina nos anos 20. Revista ALED, Brasília, n. 15, 1º semestre, 2015, p. 93 – 108.

[4] ZINO, Antonio Palacio. “Monos en Buenos Aires”. Crítica. 3 out. 1920, p. 2.

[5] BARRETO, Lima. “Macaquitos”, Careta, 23 de outubro de 1920, p.17 (Edição 644).

[6] Importante ressaltar que Lima Barreto era um ávido leitor de jornais, fato confirmado em diversas crônicas por reagir explicitamente à uma outra matéria. Ver, por exemplo, crônica em que Barreto lista algumas manchetes relacionadas ao futebol em diários do país: BARRETO, Lima. “Vantagens do foot-ball”, Careta, 19 jun. 1920, p. 20 e 21 (Edição 626).

[7]. “O presidente da República não quer “homens de côr” no nosso “scratch””. Correio da Manhã, 17 set. 1921, p. 5 (Edição 8233)

[8] CESAR, Cesarino. “A exclusão de negros e mulatos”. O Paiz, 17 set. 1921, p. 8 (Edição 13481).

[9] Ver: PEREIRA, 1998, p. 177 – 182.

[10] BARRETO, Lima. “Bemdito futeból!”. Careta, 1 out. 1921, p. 5. (Edição 693)

[11] BARRETO, Lima. “Meu conselho”. A.B.C., 1 out. 1921. p.11. (Edição 343)

[12] PEREIRA, Leonardo A. M. Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro (1902-1938). Tese (Doutorado em História). Unicamp, Campinas, SP: 1998, p. 180.

[13] BARRETO, Lima. “Meu conselho”. A.B.C., 1 out. 1921. p. 11. (Edição 343)

[14] BARRETO, Lima. “Bemdito futeból!”, Careta, 1 out. 1921, p. 5. (Edição 693)

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Vinicius Garzón Tonet

Professor da Rede Estadual de Ensino, mestrando em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro do Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes - FULIA.

Como citar

TONET, Vinicius Garzon. Lima Barreto, futebol e racismo. Ludopédio, São Paulo, v. 114, n. 1, 2018.
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