95.5

Eu sou apenas um rapaz latino-americano: los mineros enfrentan Los Boys de la Bolívia

Santa Cruz de la Sierra

 

El condor passa sobre os Andes
E abre as asas sobre nós
na fúria das cidades grandes
eu quero abria a minha voz
cantar como quem usa a mão
para fazer o pão

[…]
Tentar o canto exato e novo
que a vida que nos deram nos ensina
pra ser cantado pelo povo
na América Latina.

“Voz da América”, Belchior.

 

A capital cruceña talvez seja a metrópole da América Latina mais parecida com o Brasil. Isso muito se deve a sua proximidade, cerca de 500 km. Logo ao chegar, por exemplo, o meu celular tocou como se estivesse em Belo Horizonte. Eu não arrisquei a atendê-lo, mas dizem que algumas operadoras funcionam sem precisar acionar nada. Rapidamente, também percebi que o meu portunhol não soava tão estranho aos ouvidos dos comerciantes nativos, as temperaturas e a arquitetura fora do centro histórico são similares a algumas partes do Brasil e a comida não é tão exótica quanto é na parte andina boliviana, predominando pratos e ingredientes muito familiares aos brasileiros: sopas, saladas, banana, macarrão, arroz, ovo, porco, pimenta, cebola, alho e, claro, o clássico papa con pollo.

Prato típico da culinária cruceña encontrado nos mercados: majadito de charque con ensalada. Fotografia: PeDRa LeTRa.
Prato típico da culinária cruceña encontrado nos mercados: majadito de charque con ensalada. Foto: PeDRa LeTRa.

No âmbito do futebol, o jogador Marcelo Moreno, nascido em Santa Cruz, filho de mãe boliviana e pai brasileiro, é um bom exemplo da interseção entre os países. Ele começou a jogar no Oriente Petrolero e, ainda aspirante, foi para o Vitória da Bahia, onde se destacou como o primeiro jogador de futebol estrangeiro a atuar pelas categorias de base da seleção brasileira. Marcelo Moreno atuou quinze partidas vestindo a camisa canarinho, marcando 11 gols. Mas, quando se profissionalizou, escolheu a Bolívia para representar, já que não teria grandes chances na seleção principal do Brasil. Moreno teve duas excelentes passagens por Belo Horizonte; pelo Cruzeiro, jogou 89 partidas e marcou 45 gols.

O intercâmbio entre os países é muito maior do que eu poderia imaginar, pois só no campo da educação superior, por exemplo, há cerca de milhares e milhares de jovens brasileiros a cursarem engenharia e medicina. Em breves conversas com alguns deles, facilmente encontrados em bares, restaurantes e cafés, obtive a informação que só em Santa Cruz, sem contar La Paz e Cochabamba, há duas faculdades públicas e nove faculdades particulares de Medicina, que cobram o valor mensal de US$ 250,00. Nelas, há aproximadamente 25.000 estudantes de todos os estados do Brasil.

Portanto, se você, leitor, como a grande maioria dos brasileiros, não conhece a Bolívia e tem em seu imaginário um país folclórico com condores, lhamas, cholas, charango, lendas andinas, prataria e mineiros que vivem nas alturas, não é a cidade de Santa Cruz de la Sierra o primeiro lugar do país a conhecer, mas sim a capital La Paz e outros lugares acima de dois mil metros do nível do mar, como Potosí, Uyuni e Oruro, ou seja, a metade oeste da Bolívia

A cultura dos índios guaranis, que povoaram (e povoam) Santa Cruz de la Sierra, o Paraguai e parte do Brasil, é bem diferente da cultura indígena aimara e quechua do altiplano, cujo estreitamento identitário é bem maior com os peruanos. A vestimenta, a comida, a música, a altitude, o clima, a fauna e a flora são alguns dos aspectos relevantes desta ligação. Ou seja, de fato, há uma distinção histórica entre os bolivianos do ocidente e do oriente, sobretudo entre as duas principais cidades do país onde mais se refletem os traços culturais: La Paz (paceños) e Santa Cruz (cruceños) ou collas e cambas, respectivamente, como eles se autodenominam. Existe até mesmo certa rivalidade entre eles, que é também expressada no campo futebolístico por meio dos principais clubes do país fundados nessas localidades.

La Paz e Santa Cruz de la Sierra, fundadas por volta da metade do século XVI, sem dúvida, são as principais cidades bolivianas e têm raízes culturais bem distintas, afinal, quase mil quilômetros as separam. Essas cidades também são as mais populosas, com cerca de um milhão e meio de habitantes – somadas as populações da capital La Paz e El Alto, cidade vizinha, que se emancipou há trinta anos.

Hoje, são aproximadamente dez milhões de bolivianos repartidos em nove departamentos, por ordem populacional: La Paz, Santa Cruz de la Sierra, Cochabamba, Potosí, Chuquisaca, Oruro, Tarija, Beni e Pando. Veja o mapa:

Mapa do futebol na Bolívia at 22.14.46
Mapa da Bolívia.

 

Os destaques alaranjados no mapa correspondem aos doze clubes que disputam a atual Liga Boliviana. The Strongest (1908) e Bolívar (1925), de La Paz, são os clubes mais antigos e tradicionais nas disputas continentais, além de serem os maiores vencedores disparados dos campeonatos nacionais. O Nacional Potosí (1942) e o Real Potosí (1941) representam o departamento homônimo. Este último já teve vitórias importantes pela Libertadores em seus domínios, na cidade mais alta do mundo, com altitude de quase 4 mil metros, contra San Lorenzo, Peñarol, Flamengo e uma histórica goleada contra o Cruzeiro por 5 a 1, em 2008. O Jorge Wilstermann (1949), outro time potente a nível local, já acumula dezessete participações em Libertadores; inclusive, hoje à noite, enfrenta o Palmeiras em Cochabamba. O time chegou às semifinais da maior competição internacional do nosso continente em 1981 e possui uma torcida bem identificada com o clube, pois é a principal referência do departamento cochabambino. San José (1942), de Oruro e Universitario Sucre (1961), também já conquistaram títulos bolivianos. Já o Petrolero Yacuiba (2000), de Yacuiba, departamento de Tarija, é um time fundado recentemente e luta, hoje, contra o rebaixamento. Por fim, um terço dos clubes da primeira divisão do futebol boliviano se encontra no departamento mais desenvolvido economicamente do país, em Santa Cruz: Blooming (1946) e Oriente Petrolero (1955), sediados na capital, e Sport Boys Warnes (1954) e Guabirá (1962), ambos da região metropolitana cruceña, respectivamente de Warnes e Montero.

No domingo, às 20h30, fui assistir ao clássico local pelo campeonato nacional no estádio onde os dois clubes mandam os seus jogos. O Blooming, azul e branco, estava em quarto lugar na tabela de classificação e o Oriente Petrolero, verde e branco, logo atrás, com 20 pontos. Foi uma partidaça. I-nes-que-cí-vel! O Petrolero enfiou 3 a 0 e eu tive a sorte de estar ao lado da hinchada mais festiva da noite. O estádio Ramón Tahuichi Aguilera Costas, com capacidade para 35.000 espectadores, inaugurado em 1940, estava bem cheio, cerca de 20.000 torcedores. Veja abaixo os gols da partida:

Antes de ir para o estádio “El Tahuichi”, onde o Galo jogará logo mais, assisti surpreendentemente do quarto do hotel, pela Rede Globo – a Globolívia –, ao jogo do Atlético contra os celestes pela primeira partida da final do Campeonato Mineiro. O Galo jogou fechado e não propôs o jogo em momento algum. Foi muito estranho vê-lo assim, já que o time sempre procura dominar a posse de bola e ditar o ritmo da partida. Mas, ao mesmo tempo, foi bem interessante constatar que o time sabe jogar na casa do adversário com o regulamento debaixo do braço. No próximo domingo, o Galo só precisa de mais um empate para se sagrar campeão mineiro.

 

Hoje, os mineiros enfrentam os “boylivianos”

 

Sombríos días de socavón
Noches de tragedia
Desesperanza y desilusión
Se sienten en mi alma

Así mi vida pasando voy
Por que minero soy
Minero que por mi patria doy

Toda mi existencia.

El Minero, Savia Andina

 

Na quarta-feira passada, o Atlético ganhou de 2 a 0 do Libertad, placar que não expressa a avassaladora superioridade dos belo-horizontinos, que dominaram 64% da bola durante o jogo, chutando 19 vezes a gol contra 6 disparos dos paraguaios. Um deles, perigosíssimo, foi aos dezoito minutos do segundo tempo, quando São Victor do Horto operou mais um milagre ao defender com a perna esquerda um chute de Medina à queima-roupa na linha da pequena área.

Para variar, foi sofrido, mas era perceptível que os guaranís não suportariam a pressão até o final da partida. O jogo foi praticamente o tempo todo no campo adversário; eles ficaram encurralados. No entanto, o Galo só abriu o placar aos vinte e seis minutos do segundo tempo, com o craque Robinho, depois da boa jogada de Maicosuel, que não estava bem ofensivamente, e assistência maravilhosa do Dom Fredón. O segundo gol saiu aos quarenta e três minutos depois de uma enfiada de bola do Marcos Rocha – melhor jogador do primeiro tempo – para Fred, que por sua vez, cruzou para a finalização de Rafael Moura. O goleiro paraguaio rebateu e Cazares completou o rebote para as redes. A torcida comemorou muito, pois de fato o placar de 2 a 0 expressava um pouco mais o que foi o jogo.

El Tahuichi
Estádio El Tahuichi. Fotografia: PeDRa LeTRa.

 

Ontem, o time realizou um treinamento no estádio em que jogará logo mais contra o Sport Boys, um time inexpressivo da Bolívia, pois apenas recentemente vem participando da primeira divisão do campeonato boliviano, lutando neste ano para não cair. Por aqui, não se fala muito destes rapazes latino-americanos. Os periódicos trataram pouco do jogo. O La Razón destacou que o jogo “tiene valor solo para el Mineiro”. Enquanto o El Deber trouxe uma nota na capa dizendo que o “Sport Boys busca un cambio frente ao Mineiro”. Os jornalistas preferiram destacar os três gols do menudo Cristiano Ronaldo pela seminais da Liga dos Campeões contra o Atlético de Madrid.

Se o Roger não poupar nenhum jogador para a finalíssima do Mineiro, a tendência é que o time do Galo entre em campo com a seguinte formação: Victor; Marcos Rocha, Léo Silva, Gabriel e Fábio Santos; Rafael Carioca, Elias, Otero e Maicosuel; Robinho e Fred. Com Giovanni, Carlos César, Felipe Santana, Danilo, Cazares e Rafael Moura na suplência. Hoje, o Atlético enfrenta o Sport Boys, que promete tirar motivação e força das entranhas para tentar superar los mineros, pois já estão desclassificados, pero, hoy, el Toro no quiere ser presa fácil de minero. Por aqui, dizem que vem gente até de La Paz para ver nossos craques Robinho e Fred em ação. Esperamos que os residentes de Santa Cruz de la Sierra, sobretudo os de Minas Gerais, do coração do Brasil, façam coro conosco no El Tahuichi para empurrar o time para uma vitória importante neste penúltimo jogo da fase de grupos.

Ôôôôôôôôôôô-ôôô!, vai pra cima deles, Galô!

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Gustavo Cerqueira Guimarães

Doutor e mestre em Estudos Literários pela UFMG. É graduado em Psicologia e Letras pela PUC-Minas. Autor dos livros de poesia Língua (2004) e Guerra lírica (no prelo). Coorganizou os livros Futebol: fato social total (2020) e Problemáticas e solucionáticas do futebol em Minas Gerais (no prelo). Desenvolveu pesquisas sobre futebol e artes no pós-doutorado na Faculdade de Letras da UFMG (PNPD-CAPES, 2013-2018) e no Leitorado Guimarães Rosa em Maputo/Moçambique (2019-2023). Atualmente, atua na Secretaria Municipal de Educação de Lajinha/MG e como vice-líder do Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes, como coeditor-chefe da FuLiA/UFMG (https://periodicos.ufmg.br/index.php/fulia/issue/archive). 

Como citar

GUIMARãES, Gustavo Cerqueira. Eu sou apenas um rapaz latino-americano: los mineros enfrentan Los Boys de la Bolívia. Ludopédio, São Paulo, v. 95, n. 5, 2017.
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