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A enigmática luva de boxe

Wagner Xavier de Camargo 26 de julho de 2020

Quando eu era pequeno havia um par de luvas de boxe, envelhecidas e bem desgastadas, de um tecido grosseiro, jogadas no fundo do rancho de meu avô materno. Essa foi uma descoberta que fiz em conjunto com um primo, numa espécie de arqueologia infantil. Estávamos em meados dos anos 1980 e nem sabíamos muito bem o que era aquilo, ou que as luvas eram um artefato esportivo, que naqueles tempos já representavam um esporte popular no Brasil.

Decidido a descobrir o mistério que envolvia sua existência, coloquei minha curiosidade em curso. Primeiro, resolvi perguntar ao meu avô sobre a origem das luvas. Depois de uma longa história com datas e fatos, disse-me, em resumo, que lhe foram dadas por um amigo, que as havia recebido de presente de Éder Jofre, um dos boxeadores que talvez tenham permanecido mais tempo “em alta” nos meios de comunicação brasileiros (apenas televisão e rádio) à época. A história, de fato, me fascinou, mas não findou minha busca por outras evidências que explicassem aquelas luvas empoeiradas.

Vagamente sabia da existência de Jofre, que ainda aparecia vez ou outra na TV e que havia recém-ingressado na política, mas nada além disso, de minha parte. Conhecido mundialmente como o melhor peso-galo, conquistou o primeiro lugar mundial da categoria numa luta no Ginásio do Ibirapuera, São Paulo, em 1962, contra o lutador irlandês Johnny Caldwell. Vivendo o auge de sua carreira naqueles anos, Jofre manteve o cinturão até 1965 e, após uma derrota contestada para um lutador japonês, afastou-se da modalidade. Quando ninguém poderia imaginar, sua volta se deu cinco anos mais tarde, porém na categoria peso-pena, sagrando-se campeão mundial também nela. Aposentou-se definitivamente da exitosa carreira do boxe em 1976, depois das subsequentes mortes do pai e do irmão.

Eder Jofre em 1970. Foto: Wikipedia.

Para meu pai, no entanto, as luvas tinham outra origem. Sem contestar a versão de meu avô, ele afirmava que elas vieram de Antônio Zumbano, grande nome do boxe nacional dos anos 1940-1950, a quem ele insistia em chamar de “Zumpano”. Reza sua história que as luvas teriam vindo de alguém da família do atleta em agradecimento a ele por uma entrega realizada, bem na época em que trabalhava como caminhoneiro e cruzava todo o Brasil. Ao que consta, o conhecido “Zumbanão” foi o primeiro grande astro do boxe do país, tendo feito plateias delirarem em suas lutas realizadas no Ginásio do Estádio do Pacaembu.

Enquanto pensávamos nas versões conflitantes, brincávamos com as luvas. Elas ficaram sendo jogadas de um lado a outro, sem que eu ou meu primo nos engajássemos efetivamente em usá-las como na modalidade, pois afinal faltaria um par para boxearmos. Assim, golpeávamos um ao outro com uma delas em cada mão, recontávamos as histórias analisando o artefato, ríamos, mas acabávamos deixando-as num canto, particularmente porque, depois de pegá-las, ficávamos com forte cheiro nas mãos.

Na literatura sociológica do esporte, o boxe é tratado como índice “civilizador”, por assim dizer. Em sua clássica obra, O processo civilizador (1986), Norbert Elias vai nos contar que a luta de punhos nus havia sido submetida a um conjunto mais rígido de regras e à introdução de luvas, isso tudo por volta de 1740, na Inglaterra. Segundo ele, esse aparelhamento da contenda com consequente maior proteção dos competidores em conflito é o que possibilitou o surgimento do que conhecemos como boxe moderno. Eric Dunning (2014), seu discípulo, vai mostrar em texto mais recente, os processos contraditórios desses “amortecedores” inventados, pois com eles pugilistas poderiam bater mais e melhor, causando mais lesões cerebrais, uma vez que tinham mãos protegidas. Por essa paradoxalidade do processo, é que se deve entender tal equipamento em perspectiva histórica.

Luvas de boxe velhas. Foto: Wikipedia.

Elias é notoriamente conhecido por estar nas origens de uma sociologia do esporte, que foi paulatinamente se desenvolvendo nos anos pós-Segunda Guerra. Ele se preocupa em explicar como chegamos aos “índices civilizatórios” que alcançamos e usa o esporte para isso. Nega uma resposta rápida que diferencia manifestações antigas do esporte como “mais rudes” e as mais recentes como “mais civilizadas” para engendrar sua teoria, pensada no contexto das características únicas dos Estados-nação industriais modernos, que favoreceram a gênese e ascensão das expressões esportivas como as conhecemos, e a formação e desenvolvimento da consciência.

O pugilato (ou o “boxe grego” antigo) em vigor nas cidades-Estado gregas era uma forma de preparação para a guerra e era extremamente violento, bem diferente do boxe inglês moderno, nascido nos séculos XVIII e XIX. Segundo Elias, em A busca da excitação (1992), o alto nível de violência física dos jogos da Antiguidade Clássica estava vinculado aos traços de organização das sociedades do período e isso difere muito da organização do Estado atual e seu grau de monopólio da violência física nele instaurada.

De qualquer forma, e de volta ao boxe brasileiro, foram as luvas e minhas leituras destes sociólogos que me fizeram ser fã do peso-pesado Maguila e de algumas lutas épicas dos anos 1990. Dois de seus conflitos que me recordo muito bem foram contra Evander Holyfield e George Foreman, sendo que ambos ganharam do pugilista brasileiro e aceleraram o fim de sua carreira.

Com a chegada da adolescência e, logo em seguida, a mudança de minha cidade natal para Campinas a fim de seguir os estudos universitários, a casa de meus avós foi ficando distante e muitos objetos minha infância resistiram apenas na lembrança. Com o tempo, muitas coisas da velha casa acabaram desaparecendo, levadas por um ou outro, e as luvas não tiveram destino diferente. E apesar de eu nunca ter descoberto sua verdadeira origem, ainda me mantenho fascinado por aquele enigmático par de luvas de boxe!


Para quem estiver interessado:

ELIAS, Norbert. A gênese do desporto: um problema sociológico. In: Norbert Elias e Eric Dunning. A busca da excitação. Lisboa: DIFEL, 1992. p. 187-221.

ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.

ELIAS, Norbert. O processo civilizador: formação do estado e civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.

DUNNING, Eric. A história e o desenvolvimento do esporte moderno. In: ______. Sociologia do esporte e os processos civilizatórios. São Paulo: Annablume, 2014. p.171-183.


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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. A enigmática luva de boxe. Ludopédio, São Paulo, v. 133, n. 60, 2020.
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