“Majestoso” ou o clássico da homofobia x misoginia?
Na partida disputada entre São Paulo x Corinthians no dia 26/03/2017, válida pelo Campeonato Paulista, mais do que o placar final da partida, empate em 1 a 1, e o futebol insosso apresentado pelas duas equipes, o clássico ganhou destaque por provocações feitas por jogadores dos dois times antes e durante o jogo.
A polêmica foi iniciada na véspera do jogo, quando Kazim, atacante do Corinthians – fora da partida por conta de uma lesão – postou uma foto do aniversário do filho na sua página na rede social Instagram. Um dos comentários na imagem foi feito pelo colega de time, o meio-campista Gabriel, parabenizando Kazim e sua família. Em resposta, o “Gringo da Favela” (apelido com o qual Kazim se auto intitulou ao chegar no time alvinegro) disse: “brigado, meu irmão!!! Tmj (Tamo Junto) Amanhã pra cima dos bambis!! (sic)“.
Dado o caráter público e aberto da rede social o que, a princípio, poderia ser interpretado como uma mensagem de agradecimento e incentivo a um colega de time, acabou ganhando ampla repercussão pela mídia esportiva e por torcedores dos dois times, uma vez que o atleta referia-se ao time do São Paulo pelo termo de conotação homofóbica “bambi”. Alguns dos principais portais esportivos brasileiros (Globoesporte.com, ESPN.com, UOL Esporte e Lance!), que dão amplo destaque ao futebol, repercutiram o caso para chamar a atenção ao clássico. [1]
Enquanto o ESPN tratou o termo como uma “provocação” ao adversário, o Globoesporte interpretou como uma “brincadeira de mau gosto”. Já o Lance!/UOL foi mais enfático, ainda que com certa ambiguidade, ao entender que o “bambi” teve conotação de “piada homofóbica”.
No dia seguinte, durante o jogo, o zagueiro são-paulino Maicon após marcar o gol que abria o placar da partida, comemorou fazendo um gesto que imitava uma galinha, como forma de provocação ao Corinthians. No final da partida os repórteres o questionaram se ele teve realmente havia imitado uma galinha. Apesar de não assumir a provocação, Maicon explicitou o seu incômodo com Kazim e o comentário feito por ele no Instagram: “Foi uma comemoração que veio na hora, não é provocação. Não sou igual a certos babacas que ficam na internet falando gracinhas aqui e ali, nem jogar jogam. Quer dar uma de favelado”. Na mesma entrevista, outra fala sua ganhou destaque: “O futebol está ficando muito chato”.[2] Tal fala expõe uma visão ainda muito disseminada por aqueles que vivenciam o jogo, de que o futebol é um universo a parte da sociedade, sintetizada pelo popular jargão boleiro de que “o que acontece no campo, morre no campo”.
No episódio, passou praticamente despercebido ao olhar da mídia esportiva o caráter misógino do termo usado por Maicon ao se referir ao Corinthians. “Galinha”, no futebol, simboliza covardia e fraqueza em momentos decisivos e, no caso da rivalidade entre São Paulo e Corinthians, pode ser entendida como uma feminização do gavião, ave símbolo da principal torcida organizada do Corinthians, a Gaviões da Fiel. “Galinha” também é uma estratégia de torcedores são-paulinos para responder ao “bambi”, ofensa usada para associar o São Paulo e sua torcida à homossexualidade. O apelido se popularizou no final da década de 1990, quando o ex-jogador corinthiano Vampeta falou para jornalistas que “bambi” era a forma como ele se referia aos seus colegas que jogavam pelo São Paulo, justamente por não terem uma performance[3] considerada condizente com a de um “boleiro”.
Tomando como base o conceito de masculinidade hegemônica, formulado pelo antropólogo português Miguel Vale de Almeida (2000), o futebol no Brasil se consolidou como um “jogo pra macho”, esporte cujo praticante e participante “natural” é o homem cisgênero e heterossexual. Nesse contexto, mulheres, homens homossexuais e pessoas LGBT, em geral, não se enquadram à norma que orienta e regula comportamentos e posturas dos atores sociais[4] participantes do futebol profissional.
a masculinidade hegemônica é um modelo cultural ideal que, não sendo atingível por praticamente nenhum homem, exerce sobre todos os homens um efeito controlador, através da incorporação, da ritualização das práticas da sociabilidade quotidiana e de uma discursividade que exclui todo um campo emotivo considerado feminino; e que a masculinidade não é simétrica da feminilidade, na medida em que as duas se relacionam de forma assimétrica, por vezes hierárquica e desigual. A masculinidade é um processo construído, frágil, vigiado, como forma de ascendência social que pretende ser. (ALMEIDA, 2000, p.17)
Fica evidente que as ofensas homofóbicas e misóginas, que têm por objetivo depreciar o adversário por meio da sua feminização, casos do “bambi” e “galinha” – ou mesmo o “bicha” gritado por torcedores cada vez que o goleiro adversário cobra o tiro de meta –, são naturalizadas e ainda interpretadas como “piadas”, “brincadeiras” e “provocações” que fazem parte do jogo, mas que torcedores, jogadores e times, em geral, não querem pra si. [5]
É bastante comum na construção identitária de macho viril utilizar como referência, como fronteira constantemente vigiada e que nunca deve ser ultrapassada, a construção do personagem antagônico fazendo com que esse seja depositário do que de ruim poderia ser atribuído a um grupo identitário. O que eu sou depende do que não sou. (BANDEIRA e SEFFNER, 2013, p.252)
Atualmente, ao apontar o caráter discriminatório e, mesmo, violento das ofensas misóginas e homofóbicas é muito comum ouvir e ler o argumento de que “o futebol está ficando muito chato”. Ao tomar como natural tal tipo de comportamento, ignora-se (ou, convenientemente, prefere-se ignorar) o quanto manifestações como essas, que inferiorizam e rebaixam o status de humanidade de grupos sociais (CAMARGO, 2017), contribuem para a opressão e o distanciamento de mulheres e pessoas LGBT em relação ao futebol. Além disso, dada a visibilidade e a importância sociocultural da modalidade no país, respaldam atos de violência e preconceito contra essas pessoas para além do universo do futebol.
Mas será que necessariamente apelar para a misoginia e a homofobia necessariamente faz parte do torcer e experienciar o futebol? No final do ano passado, uma ação realizada por um grupo de palmeirenses do Movimento 20-9 mostrou que é possível criar estratégias que promovam o questionamento e a desnaturalização de hábitos do torcer e de encarar o adversário. A ação com o nome “Eu Grito Porco”, propunha aos torcedores do time que fossem ao jogo Palmeiras x Sport [6], no Allianz Parque, gritarem em coro “porco”, ao invés de “bicha”, todas as vezes que o goleiro do time adversário cobrasse o tiro de meta.
A ação foi articulada por meio das redes sociais e com a construção de canais de diálogo com outros torcedores do Palmeiras, conquistando a aceitação tanto de integrantes de torcidas e coletivos de torcedores palmeirenses considerados progressistas, como de palmeirenses ligados às principais torcidas organizadas do clube. Apesar das resistências, o êxito da ação foi tão grande que o “bicha” foi abafado pelos gritos de “porco” em apoio ao time alviverde.
Em entrevista, uma das integrantes do Movimento 20-9, Isadora, disse que a ideia da ação veio do incômodo experimentado por torcedores e torcedoras do time em jogos do Palmeiras no seu estádio diante dos gritos “bicha”. Ela também explicou qual foi a estratégia usada para convencer os demais torcedores a aderirem ao grito “porco”:
“Começaram a surgir ideias no Twitter e no Facebook pra mudar isso, porque não tem como apenas tirar um grito, tem de substituir. (…) A lógica que a gente usa é: o que muda pra você tentando ofender o outro jogador? Gritar ‘porco’ é uma forma de incentivar ainda mais o Palmeiras” [7]
Apesar do foco do argumento não ser centrado na questão da homofobia, o exemplo da ação palmeirense mostra que por meio de ações de caráter dialógico e pedagógico é possível desconstruir preconceitos e desnaturalizar hábitos do torcer e experienciar o futebol. Coloca-se a necessidade de cada vez mais questionar os diferentes atores sociais ligados ao universo do futebol para a construção de modos de praticar e participar do futebol menos violentos e opressores. Até que ponto desqualificar o rival por meio de ofensas homofóbicas e misóginas faz diferença na torcida pelo seu time? Será que é preciso mesmo apelar para preconceitos para “ganhar moral com a torcida” ou mostrar-se mais torcedor que o outro? E até quando ignorar o conteúdo violento de tais “brincadeiras” e “piadas” para “provocar” o adversário, cuja mensagem implícita é a de que mulheres e pessoas LGBT são indesejáveis no meio dos “machos”?
BIBLIOGRAFIA:
ALMEIDA, Miguel Vale de. Senhores de si: Uma interpretação antropológica da masculinidade. Lisboa: Fim de Século Edições, 2000.
CAMARGO, Wagner Xavier. “A sexualidade determina o modo de torcer?”. Ludopédio. Seção Arquibancada, Vol. 93–2017. Disponível em: http://www.ludopedio.org.br/arquibancada/sexualidade-determina-o-modo-de-torcer/
[1] As manchetes dadas pelos portais mencionados foram as seguintes:
“Kazim apimenta o clássico com provocação: ‘Pra cima dos bambis’” – http://www.espn.com.br/noticia/681599_kazim-apimenta-o-classico-com-provocacao-pra-cima-dos-bambis.
“Na véspera do clássico, Kazim faz brincadeira de mau gosto com rival” (Globoesporte.com)[1] – http://globoesporte.globo.com/futebol/times/corinthians/noticia/2017/03/pra-cima-dos-bambis-na-vespera-do-classico-kazim-provoca-sao-paulo.html . Acesso em 10/04/2017.
“Na internet, corintiano Kazim faz piada homofóbica contra o São Paulo” (Lance!– o UOL Esporte usou a mesma matéria) – http://www.lance.com.br/corinthians/internet-corintiano-kazim-faz-piada-homofobica-contra-sao-paulo.html . Acesso em 10/04/2017.
[2] http://globoesporte.globo.com/sp/futebol/campeonato-paulista/noticia/2017/03/maicon-explica-comemoracao-e-da-resposta-kazim-certos-babacas.html . Acesso em 10/04/2017.
[3] O conceito de performance é utilizado aqui a partir da leitura de Judith Butler (2008), na qual as identidades de gênero e as próprias noções de masculinidade e feminilidade não são dadas pela natureza, mas são marcadas nos corpos a partir de discursos produzidos e repetidos por diferentes instituições sociais (como, por exemplo, a família, a escola, a mídia, a ciência, as religiões etc.) do que é, por exemplo, ser homem ou mulher. “O gênero não pode ser reduzido a qualquer aspecto essencialista, seja ele biológico ou cultural. O conceito destaca a permanente construção dos sujeitos de gênero. Essas construções não são um processo linear ou evolutivo de causa e efeito. Aprendemos durante toda a vida em diferentes instituições e artefatos culturais formas adequadas de “exercer” um gênero. Existe uma diversidade de masculinidades e feminilidades que variam em diferentes tempos e espaços e dentro de uma mesma cultura.” (BANDEIRA e SEFFNER, 2013, p.249)
[4] De acordo com Toledo (2000, p.5), na proposição de um modelo interpretativo para os estudos sociológicos sobre o futebol profissional, os atores sociais que integram o campo futebolístico podem ser divididos em: “os profissionais (jogadores, técnicos, dirigentes, juízes, preparadores, médicos etc), os especialistas (as crônicas esportivas, sim, no plural mesmo) e o conjunto genérico de torcedores, “comuns” ou nomeados e reunidos em certas coletividades específicas”
[6] O jogo em questão foi realizado em 23/10/2016, valendo pelo Campeonato Brasileiro. O Palmeiras venceu o jogo pelo placar de 2 x 1.
[7] http://www1.folha.uol.com.br/esporte/2016/10/1825417-contra-homofobia-palmeirenses-querem-emplacar-grito-de-porco.shtml . Acesso em 11/04/2017.