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“Majestoso” ou o clássico da homofobia x misoginia?

Maurício Rodrigues Pinto 22 de abril de 2017

Na partida disputada entre São Paulo x Corinthians no dia 26/03/2017, válida pelo Campeonato Paulista, mais do que o placar final da partida, empate em 1 a 1, e o futebol insosso apresentado pelas duas equipes, o clássico ganhou destaque por provocações feitas por jogadores dos dois times antes e durante o jogo.

A polêmica foi iniciada na véspera do jogo, quando Kazim, atacante do Corinthians – fora da partida por conta de uma lesão – postou uma foto do aniversário do filho na sua página na rede social Instagram. Um dos comentários na imagem foi feito pelo colega de time, o meio-campista Gabriel, parabenizando Kazim e sua família. Em resposta, o “Gringo da Favela” (apelido com o qual Kazim se auto intitulou ao chegar no time alvinegro) disse: “brigado, meu irmão!!! Tmj (Tamo Junto) Amanhã pra cima dos bambis!! (sic)“.

Kazim
Postagem de Kazim em seu Instagram. Foto: Reprodução/Instagram.

Dado o caráter público e aberto da rede social o que, a princípio, poderia ser interpretado como uma mensagem de agradecimento e incentivo a um colega de time, acabou ganhando ampla repercussão pela mídia esportiva e por torcedores dos dois times, uma vez que o atleta referia-se ao time do São Paulo pelo termo de conotação homofóbica “bambi”. Alguns dos principais portais esportivos brasileiros (Globoesporte.com, ESPN.com, UOL Esporte e Lance!), que dão amplo destaque ao futebol, repercutiram o caso para chamar a atenção ao clássico. [1]

Enquanto o ESPN tratou o termo como uma “provocação” ao adversário, o Globoesporte interpretou como uma “brincadeira de mau gosto”. Já o Lance!/UOL foi mais enfático, ainda que com certa ambiguidade, ao entender que o “bambi” teve conotação de “piada homofóbica”.

No dia seguinte, durante o jogo, o zagueiro são-paulino Maicon após marcar o gol que abria o placar da partida, comemorou fazendo um gesto que imitava uma galinha, como forma de provocação ao Corinthians. No final da partida os repórteres o questionaram se ele teve realmente havia imitado uma galinha. Apesar de não assumir a provocação, Maicon explicitou o seu incômodo com Kazim e o comentário feito por ele no Instagram: “Foi uma comemoração que veio na hora, não é provocação. Não sou igual a certos babacas que ficam na internet falando gracinhas aqui e ali, nem jogar jogam. Quer dar uma de favelado”. Na mesma entrevista, outra fala sua ganhou destaque: “O futebol está ficando muito chato”.[2] Tal fala expõe uma visão ainda muito disseminada por aqueles que vivenciam o jogo, de que o futebol é um universo a parte da sociedade, sintetizada pelo popular jargão boleiro de que “o que acontece no campo, morre no campo”.

No episódio, passou praticamente despercebido ao olhar da mídia esportiva o caráter misógino do termo usado por Maicon ao se referir ao Corinthians. “Galinha”, no futebol, simboliza covardia e fraqueza em momentos decisivos e, no caso da rivalidade entre São Paulo e Corinthians, pode ser entendida como uma feminização do gavião, ave símbolo da principal torcida organizada do Corinthians, a Gaviões da Fiel. “Galinha” também é uma estratégia de torcedores são-paulinos para responder ao “bambi”, ofensa usada para associar o São Paulo e sua torcida à homossexualidade. O apelido se popularizou no final da década de 1990, quando o ex-jogador corinthiano Vampeta falou para jornalistas que “bambi” era a forma como ele se referia aos seus colegas que jogavam pelo São Paulo, justamente por não terem uma performance[3] considerada condizente com a de um “boleiro”.

Tomando como base o conceito de masculinidade hegemônica, formulado pelo antropólogo português Miguel Vale de Almeida (2000), o futebol no Brasil se consolidou como um “jogo pra macho”, esporte cujo praticante e participante “natural” é o homem cisgênero e heterossexual. Nesse contexto, mulheres, homens homossexuais e pessoas LGBT, em geral, não se enquadram à norma que orienta e regula comportamentos e posturas dos atores sociais[4] participantes do futebol profissional.

a masculinidade hegemônica é um modelo cultural ideal que, não sendo atingível por praticamente nenhum homem, exerce sobre todos os homens um efeito controlador, através da incorporação, da ritualização das práticas da sociabilidade quotidiana e de uma discursividade que exclui todo um campo emotivo considerado feminino; e que a masculinidade não é simétrica da feminilidade, na medida em que as duas se relacionam de forma assimétrica, por vezes hierárquica e desigual. A masculinidade é um processo construído, frágil, vigiado, como forma de ascendência social que pretende ser. (ALMEIDA, 2000, p.17)

Fica evidente que as ofensas homofóbicas e misóginas, que têm por objetivo depreciar o adversário por meio da sua feminização, casos do “bambi” e “galinha” – ou mesmo o “bicha” gritado por torcedores cada vez que o goleiro adversário cobra o tiro de meta –, são naturalizadas e ainda interpretadas como “piadas”, “brincadeiras” e “provocações” que fazem parte do jogo, mas que torcedores, jogadores e times, em geral, não querem pra si. [5]

É bastante comum na construção identitária de macho viril utilizar como referência, como fronteira constantemente vigiada e que nunca deve ser ultrapassada, a construção do personagem antagônico fazendo com que esse seja depositário do que de ruim poderia ser atribuído a um grupo identitário. O que eu sou depende do que não sou. (BANDEIRA e SEFFNER, 2013, p.252)

26/03/2017- São Paulo- SP, Brasil- Campeonato Paulista 2017: Partida entre Sao Paulo x Corinthians, realizado esta tarde (26) no Morumbi, válida pela 11ª rodada do Campeonato Campeonato Paulista 2017. Juiz: Vinicius Furlan - Foto: Daniel Augusto Jr. / Ag. Corinthians
Partida entre Sao Paulo x Corinthians, realizada na tarde de 26 de março no Morumbi, válida pela 11ª rodada do Campeonato Campeonato Paulista 2017. Foto: Daniel Augusto Jr./Ag. Corinthians.

Atualmente, ao apontar o caráter discriminatório e, mesmo, violento das ofensas misóginas e homofóbicas é muito comum ouvir e ler o argumento de que “o futebol está ficando muito chato”. Ao tomar como natural tal tipo de comportamento, ignora-se (ou, convenientemente, prefere-se ignorar) o quanto manifestações como essas, que inferiorizam e rebaixam o status de humanidade de grupos sociais (CAMARGO, 2017), contribuem para a opressão e o distanciamento de mulheres e pessoas LGBT em relação ao futebol. Além disso, dada a visibilidade e a importância sociocultural da modalidade no país, respaldam atos de violência e preconceito contra essas pessoas para além do universo do futebol.

Mas será que necessariamente apelar para a misoginia e a homofobia necessariamente faz parte do torcer e experienciar o futebol? No final do ano passado, uma ação realizada por um grupo de palmeirenses do Movimento 20-9 mostrou que é possível criar estratégias que promovam o questionamento e a desnaturalização de hábitos do torcer e de encarar o adversário. A ação com o nome “Eu Grito Porco”, propunha aos torcedores do time que fossem ao jogo Palmeiras x Sport [6], no Allianz Parque, gritarem em coro “porco”, ao invés de “bicha”, todas as vezes que o goleiro do time adversário cobrasse o tiro de meta.

A ação foi articulada por meio das redes sociais e com a construção de canais de diálogo com outros torcedores do Palmeiras, conquistando a aceitação tanto de integrantes de torcidas e coletivos de torcedores palmeirenses considerados progressistas, como de palmeirenses ligados às principais torcidas organizadas do clube. Apesar das resistências, o êxito da ação foi tão grande que o “bicha” foi abafado pelos gritos de “porco” em apoio ao time alviverde.

Em entrevista, uma das integrantes do Movimento 20-9, Isadora, disse que a ideia da ação veio do incômodo experimentado por torcedores e torcedoras do time em jogos do Palmeiras no seu estádio diante dos gritos “bicha”. Ela também explicou qual foi a estratégia usada para convencer os demais torcedores a aderirem ao grito “porco”:

“Começaram a surgir ideias no Twitter e no Facebook pra mudar isso, porque não tem como apenas tirar um grito, tem de substituir. (…) A lógica que a gente usa é: o que muda pra você tentando ofender o outro jogador? Gritar ‘porco’ é uma forma de incentivar ainda mais o Palmeiras” [7]

Apesar do foco do argumento não ser centrado na questão da homofobia, o exemplo da ação palmeirense mostra que por meio de ações de caráter dialógico e pedagógico é possível desconstruir preconceitos e desnaturalizar hábitos do torcer e experienciar o futebol. Coloca-se a necessidade de cada vez mais questionar os diferentes atores sociais ligados ao universo do futebol para a construção de modos de praticar e participar do futebol menos violentos e opressores. Até que ponto desqualificar o rival por meio de ofensas homofóbicas e misóginas faz diferença na torcida pelo seu time? Será que é preciso mesmo apelar para preconceitos para “ganhar moral com a torcida” ou mostrar-se mais torcedor que o outro? E até quando ignorar o conteúdo violento de tais “brincadeiras” e “piadas” para “provocar” o adversário, cuja mensagem implícita é a de que mulheres e pessoas LGBT são indesejáveis no meio dos “machos”?

BIBLIOGRAFIA:

ALMEIDA, Miguel Vale de. Senhores de si: Uma interpretação antropológica da masculinidade. Lisboa: Fim de Século Edições, 2000.

BANDEIRA, Gustavo Andrada; SEFFNER, Fernando. “Futebol, gênero, masculinidade e homofobia: um jogo dentro do jogo”. Espaço Plural. Toledo, v.14, n.29, p. 246 – 270, 2013.

CAMARGO, Wagner Xavier. “A sexualidade determina o modo de torcer?”. Ludopédio. Seção Arquibancada, Vol. 93–2017. Disponível em: http://www.ludopedio.org.br/arquibancada/sexualidade-determina-o-modo-de-torcer/

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

TOLEDO, Luiz Henrique de. Lógicas no futebol: dimensões simbólicas de um esporte nacional. Tese (Doutorado em Antropologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000.

[1] As manchetes dadas pelos portais mencionados foram as seguintes:

“Kazim apimenta o clássico com provocação: ‘Pra cima dos bambis’” – http://www.espn.com.br/noticia/681599_kazim-apimenta-o-classico-com-provocacao-pra-cima-dos-bambis.

“Na véspera do clássico, Kazim faz brincadeira de mau gosto com rival” (Globoesporte.com)[1]http://globoesporte.globo.com/futebol/times/corinthians/noticia/2017/03/pra-cima-dos-bambis-na-vespera-do-classico-kazim-provoca-sao-paulo.html . Acesso em 10/04/2017.

“Na internet, corintiano Kazim faz piada homofóbica contra o São Paulo” (Lance!– o UOL Esporte usou a mesma matéria) – http://www.lance.com.br/corinthians/internet-corintiano-kazim-faz-piada-homofobica-contra-sao-paulo.html . Acesso em 10/04/2017.

[2] http://globoesporte.globo.com/sp/futebol/campeonato-paulista/noticia/2017/03/maicon-explica-comemoracao-e-da-resposta-kazim-certos-babacas.html . Acesso em 10/04/2017.

[3] O conceito de performance é utilizado aqui a partir da leitura de Judith Butler (2008), na qual as identidades de gênero e as próprias noções de masculinidade e feminilidade não são dadas pela natureza, mas são marcadas nos corpos a partir de discursos produzidos e repetidos por diferentes instituições sociais (como, por exemplo, a família, a escola, a mídia, a ciência, as religiões etc.) do que é, por exemplo, ser homem ou mulher. “O gênero não pode ser reduzido a qualquer aspecto essencialista, seja ele biológico ou cultural. O conceito destaca a permanente construção dos sujeitos de gênero. Essas construções não são um processo linear ou evolutivo de causa e efeito. Aprendemos durante toda a vida em diferentes instituições e artefatos culturais formas adequadas de “exercer” um gênero. Existe uma diversidade de masculinidades e feminilidades que variam em diferentes tempos e espaços e dentro de uma mesma cultura.” (BANDEIRA e SEFFNER, 2013, p.249)

[4] De acordo com Toledo (2000, p.5), na proposição de um modelo interpretativo para os estudos sociológicos sobre o futebol profissional, os atores sociais que integram o campo futebolístico podem ser divididos em: “os profissionais (jogadores, técnicos, dirigentes, juízes, preparadores, médicos etc), os especialistas (as crônicas esportivas, sim, no plural mesmo) e o conjunto genérico de torcedores, “comuns” ou nomeados e reunidos em certas coletividades específicas”

[6] O jogo em questão foi realizado em 23/10/2016, valendo pelo Campeonato Brasileiro. O Palmeiras venceu o jogo pelo placar de 2 x 1.

[7] http://www1.folha.uol.com.br/esporte/2016/10/1825417-contra-homofobia-palmeirenses-querem-emplacar-grito-de-porco.shtml . Acesso em 11/04/2017.

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Maurício Rodrigues Pinto

Bacharel em História, pela Universidade de São Paulo (USP, com especialização em Sociopsicologia, na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e mestre pelo programa interdisciplinar Mudança Social e Participação Política, da USP. Corinthiano, no seu mestrado pesquisou masculinidades e a atuação de movimentos de torcedorxs contrários à homofobia e ao machismo no futebol brasileiro. Integrou o coletivo HLGBT (Histórias de Vida LGBT) e participou do projeto que resultou no livro “Histórias de Todas as Cores: Memórias Ilustradas LGBT”, projeto selecionado pelo Programa de Ação Cultural da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo (ProaC), no edital de Promoção das Manifestações Culturais com Temática LGBT.

Como citar

PINTO, Maurício Rodrigues. “Majestoso” ou o clássico da homofobia x misoginia?. Ludopédio, São Paulo, v. 94, n. 25, 2017.
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