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Maradona: homem do povo, amigo das esquerdas

Copa Além da Copa 7 de dezembro de 2020
Foto: Reprodução Twitter

Nas palavras de Diego Armando Maradona, Fidel Castro era “como outro pai, um amigo que me ligava a qualquer hora”, Hugo Chávez, “um grande, dono de uma sabedoria política incrível”, e Lula, “um grande amigo”. Dos rostos do primeiro e de seu companheiro Che Guevara, o craque tinha tatuagens em seu corpo.

Maradona faleceu em um 25 de novembro, exatamente como Fidel Castro. Da infância pobre ao ativismo político, foi uma figura que encarnou o espírito latino-americano. Sempre visto como um homem do povo, tinha uma relação bem mais do que apenas cordial com os grandes líderes de esquerda do continente.

Esse texto é um complemento para o episódio de dezembro do podcast Copa Além da Copa, que fala sobre a Guerra das Malvinas, a Copa do Mundo de 1986 e a vida de Diego Armando Maradona. Você pode ouvi-lo clicando aqui.

Infância pobre: A história de tantos

Na América Latina, a história de quase todos os grandes craques começa com uma infância pobre e cheia de dificuldades. Ele era um de oito irmãos no subúrbio de Villa Fiorito, uma espécie de favela no extremo-sul de Buenos Aires. Lá, muitos operários se aglomeravam em condições terríveis de moradia enquanto tentavam sustentar suas famílias na metrópole.

Don Diego, o pai de Dieguito, era pedreiro e operário. Dalma, a mãe, dona de casa. O pequeno Maradona ganhou uma bola de presente aos seis anos de idade e, para que não a roubassem, dormia todas as noites com ela debaixo da camisa.

Como com tantos dos maiores jogadores de futebol da América Latina, Diego Armando Maradona tinha no futebol a sua esperança de ser alguém na vida. Sua mãe queria que ele fosse contador, mas rapidamente percebeu que o talento com a bola era especial. Não demorou para que ele estivesse encantando o mundo.

Foto: Reprodução Twitter

O flerte com o neoliberalismo

Maradona começou a se envolver com política em 1987, quando estava no topo do mundo após sua espetacular performance na Copa do Mundo do ano anterior. Viajou a Cuba e tornou-se um grande amigo de Fidel Castro. O camisa dez e o comandante passaram noites bebendo, comendo ostras e conversando. Desenvolveram uma relação muito próxima.

Foi um pouco depois que o vício em drogas começou a cobrar seu preço. Maradona recebeu contato de Carlos Menem, então candidato à presidência da Argentina em 1989, para fazer parte da campanha. A ideia era que ele fosse o rosto de um programa anti-drogas, o que seria útil tanto para o futuro presidente, quanto para a imagem do craque.

Menem era do Partido Justicialista, o mesmo de Perón e do atual presidente, Alberto Fernandez. Em sua primeira eleição, ainda tinha um discurso social-democrata, mas depois tornou-se um dos representantes do neoliberalismo na América Latina durante a década de 1990, inclusive junto a Fernando Henrique Cardoso.

Mesmo com a guinada à direita, que criou facções dentro do Partido Justicialista, Menem continuou próximo a Maradona. O jogador o convidou para seu casamento e mais tarde, em 1994, recebeu a ajuda do presidente para ter seu primeiro trabalho como técnico, no pequeno Mandiyú.

Vale mencionar, porém, que como um jovem pobre e que não pôde estudar, Maradona demorou para desenvolver uma consciência política. Ainda adolescente, em 1979, foi eleito o melhor jogador do Mundial Juvenil, vencido pela Argentina. Após a final, recebeu no ar uma ligação do ditador Rafael Videla e disse: “Essa vitória é de todo o povo argentino, e do senhor”. Mais tarde, antes do Mundial de 1986, questionado sobre a Guerra das Malvinas, declarou que seu trabalho era apenas jogar futebol, e que de política não sabia nada.

Após a aposentadoria e com a aproximação com Fidel, Maradona assumiu de vez seu lado político. Sua famosa frase “sou um homem de esquerda, no pé, na fé e no coração” indica o caminho que ele seguiria nos anos finais.

A briga com a FIFA

É possível encontrar declarações de Maradona criticando a FIFA no mínimo desde 1986. A relação com a entidade que comanda o futebol mundial se deteriorou ainda mais após ele tomar uma grande suspensão em 1991, quando foi pego no antidoping por uso de cocaína.

Na época, Maradona marcou presença em jogos beneficentes, o que levou a FIFA a pressionar a federação argentina com sanções caso seguisse permitindo que ele disputasse partidas. Depois, veio a Copa de 1994 e outro exame positivo no antidoping, resultando em outra suspensão de mais de um ano.

Em 1995, Maradona já estava propondo um sindicato mundial de jogadores profissionais para que os atletas tivessem mais poder de decisão sobre o jogo. Ao lado de jogadores como George Weah, Éric Cantona e Raí, ele formou uma entidade que cobrava mudanças no futebol mundial, e criticou Pelé por ficar ao lado da FIFA, então comandada por João Havelange.

Vale lembrar que a FIFA de Havelange, em especial na Argentina, era identificada com a direita, tanto que a Copa de 1978 se realizou no país em meio a uma das ditaduras mais violentas na América do Sul da Guerra Fria. Esse embate com a FIFA, em parte motivado pela mágoa de suas suspensões por doping, empurraria Diego Maradona cada vez mais para a esquerda no espectro político. 

Guinada à esquerda

Mas foi após o encerramento da carreira que Maradona realmente começou a abraçar a esquerda latino-americana. Coincidentemente, sua aposentadoria em 1997 foi precursora de uma grande guinada à esquerda nos países da região, que começou com a vitória de Hugo Chávez nas eleições presidenciais da Venezuela no ano seguinte.

Após pendurar as chuteiras, a situação do vício de Maradona piorou. Nesse momento, as portas de Cuba se abriram para ele: tanto em 2000 quanto em 2004, foi ao país de Fidel Castro para se tratar, sempre acompanhado pelo líder cubano nas clínicas de reabilitação. Maradona diria mais tarde, que, na Argentina, nenhuma clínica queria recebê-lo, temendo se converter no local de sua morte.

A aproximação com Fidel, portanto, se tornou intensa naqueles anos. “Não sou comunista, sou fidelista”, chegaria a dizer o craque.

Foto: Reprodução Twitter

Esquerda no pé e na fé

Durante a chamada onda progressista na América do Sul, Maradona fez questão de se posicionar ao lado dos líderes de esquerda. Em 2007, diante de Chávez, chegou a dizer que odiava tudo que vinha dos EUA.

Antes, em 2005, as negociações para a criação de uma área de livre comércio nas Américas avançavam sob a liderança do presidente americano George W. Bush. Mas Maradona, em um discurso com o então candidato à presidência da Bolívia, Evo Morales, vestiu uma camisa com os dizeres “Stop Bush”, em que o S de Bush tinha o formato de uma suástica.

Ao mesmo tempo, a esquerda seguia vencendo eleições no continente, inclusive em sua Argentina, onde o casal Néstor e Cristina Kirchner alcançaria a presidência. Do outro lado, um antigo rival: Mauricio Macri.

A rivalidade com Macri

Filho de um famoso empresário ítalo-argentino, o empresário Mauricio Macri se tornou nacionalmente conhecido ao assumir a presidência do Boca Juniors, em 1995. Sob seu comando até 2007, o clube conquistou todos os títulos possíveis, incluindo a Libertadores e o Mundial, que não vinham para La Bombonera desde os anos 70.

Porém, 95 também foi o ano de retorno de Maradona ao seu clube do coração. Já naquela época, os desentendimentos entre ele e o presidente do Boca eram públicos, com a revista El Gráfico chegando a estampar ambos na capa com a pergunta: “se odeiam?”.

Após deixar o Boca, Macri conseguiu destronar a esquerda nas eleições presidenciais de 2015, vendendo-se como liberal à direita. À época, Maradona já era um grande cabo eleitoral dos Kirchner.

Mas, naquele momento, a esquerda latino-americana vinha perdendo fôlego após quase 20 anos de domínio no continente. Na abertura da Copa de 2014, por exemplo, o jogo entre Brasil e Croácia foi marcado por vaias à presidenta Dilma Rousseff. Maradona, que acompanhava o jogo no estádio ao lado da jornalista brasileira Mônica Bergamo, classificou aquilo como “absurdo”.

Nas mais recentes eleições argentinas, o craque emprestou seu apoio a Alberto Fernández, que tinha Cristina Kirchner como vice, e chegou a celebrar nas redes sociais a derrocada de Macri. “Que vá viver na Tailândia”, escreveu.

Foto: Reprodução Twitter

O último suspiro político

Menos de uma semana antes de morrer, Maradona se manifestou politicamente pela última vez. Em seu Instagram, postou uma mensagem de apoio ao projeto do governo Fernández para criar um imposto sobre grandes fortunas.

“Pode contar comigo, presidente”, disse ao apoiar uma causa nobre. Mesmo no fim da vida, Maradona se preocupava com os pobres. Ressaltou no texto que sabia o que é passar fome e que era a favor de tudo o que pudesse aliviar essa triste situação.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

COPA, Copa Além da. Maradona: homem do povo, amigo das esquerdas. Ludopédio, São Paulo, v. 138, n. 17, 2020.
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