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Mário Filho e o Maracanazo (1950-1958)(2ª e última parte)

Denaldo Alchorne de Souza 3 de julho de 2019

Para Mário Filho, a decisiva e fatídica derrota da seleção brasileira para a equipe uruguaia na Copa do Mundo de 1950, em pleno Estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro, ocorreu por causa de um pecado original. E o pecado “descoberto” pelo jornalista era o costume do brasileiro de tripudiar o adversário e de comemorar a vitória antes do final da partida, numa total falta de respeito com o outro (ver 1ª parte do artigo).

Era preciso mudar a mentalidade esportiva brasileira. Mas, para isso tinha que mudar o próprio brasileiro, que inventou o costume de tripudiar o adversário derrotado. Era uma espécie de trote carnavalesco que, quando bem feito, encabulava qualquer um. Quando os ingleses introduziram o foot-ball no Brasil, tentaram difundir o costume da confraternização entre vencedores e vencidos após a partida. Era uma festa onde todos bebiam juntos e pagavam juntos. Os vencedores não tripudiavam dos vencidos. Todos dividiam a mesma alegria e a mesma bebedeira. Mas, quando o futebol começou a ser difundido, tudo mudou; os defeitos dos brasileiros ficaram mais a mostra. Era como se o futebol brasileiro tivesse se fortalecido na base do gozo. E para evitar o gozo os clubes gastavam fortunas para formar grandes equipes. Quem perdia era gozado impiedosamente. E este ia aumentando o horror pela derrota. “A única porta de saída, a única maneira de escapar, de poder andar pelas ruas, de ir ao escritório, era a vitória. Não havia meio-termo: o empate era a frustração completa”[i].

A lição precisava ser aprendida pelo futebol brasileiro e pela sociedade brasileira. Havia uma diferença, e não pequena, entre saber ganhar e perder, e aceitar como normal qualquer vitória e qualquer derrota. Certas vitórias faziam mais mal do que as piores derrotas. E algumas derrotas eram importantes pela possibilidade de ensinamento que elas possuíam. E o exemplo clássico era o “16 de Julho”. “Perdemos porque não pensamos na derrota, intoxicados pela goleada contra a Espanha. Tínhamos, sem dúvida, o melhor foot-ball, mas não éramos ainda campeões. Não bastava, e esta foi a lição de 50”. Segundo o jornalista: “Para ser campeão era preciso ter aquela disposição inabalável da Celeste. Saber perder é reconhecer que na competição o outro foi melhor. Mas é preciso valorizar a vitória, dar o máximo de si mesmo”[ii].

Brasileiros tripudiaram o adversário e comemoraram vitória antes da final, nos 6 a 1 contra os espanhóis, na Copa do Mundo de 1950. Foto: Divulgação/FIFA.

Se em 1950, o pecado foi o tripudiar sobre os adversários, achando-se superior aos outros. Em 1954, foi o oposto. O brasileiro achava que o time da Hungria jogava muito e que eles eram inferiores. Não respeitaram a eles próprios. Colocaram-se abaixo dos húngaros, abaixo de qualquer outro povo. Estavam com tremedeiras. Brasileiros e húngaros entraram juntos, “e um húngaro, de brincadeira, espetou um dedo na costela de Castilho. Castilho deu um pulo como se alguém fosse assaltá-lo”. As fotografias do jogo mostravam “os húngaros tranquilos, risonhos e os brasileiros de cara amarrada, sombrios, a impressão que se tinha era de que eles iam a caminho da forca. São coisas que a gente vê melhor depois”. E só deram uma de valente quando tudo estava perdido, no final do jogo e após o seu término. Mas uma coisa que não se discutia era “que o brasileiro tremeu na Suíça”[iii].

Para Mário Filho, os brasileiros só jogavam bem quando temiam o adversário, quando o respeitavam. Mas o temor não podia ser exagerado, senão virava tremor, como contra a Hungria. Por isso a solução era dosar o respeito ao adversário com o autorrespeito, assim como estava nos ensinamentos cristãos. Não adiantava amar ou respeitar ao outro se não respeitava a própria pessoa, a própria nação.

Outro problema apresentado por Mário Filho era o individualismo. O individualismo não era de todo um problema, era devido a ele que o futebol brasileiro ganhou uma identidade própria, se diferenciou do europeu. No início, o futebol era muito inglês, era um jogo coletivo, ninguém se destacava, os competidores jogavam para a equipe. Tudo mudou na época do “amadorismo marrom”, no final da década de 1910, quando o profissionalismo era disfarçado através do “bicho”. Agora, o jogador habilidoso era visto de forma diferenciada. O importante não era somente competir, mas ganhar. A escalação do craque era essencial. Este começou a se sentir indispensável. O torcedor não via mais a equipe; queria saber era do jogador. Para o jornalista: “Foi em 19 que Arthur Friedenreich, com um goal da vitória contra o Uruguai, se transformou, em ídolo nacional, ofuscando, os que com ele tinham jogado […] Era uma escolha, o que o público fazia, ou que o povo fazia”[iv].

Com o profissionalismo no futebol na década de 1930, o individualismo ficou ainda mais evidente. Era a época de Leônidas da Silva brigando com o Flamengo, se achando mais forte que o clube. Era a época do “Diamante Negro” se colocando como o grande responsável pela brilhante campanha da seleção brasileira na Copa de 1938. “Entre ser um Leônidas, ou um Romeu, isto é, entre ser o inventor da bicicleta e o leva e trás, o homem do passe, a ligação entre a defesa e o ataque, o conjunto, enfim, nenhum novo hesitava: preferia ser Leônidas”[v].

Leônidas da Silva, o jogador individualista. Foto: Reprodução.

Este individualismo tinha origem na própria história da sociedade brasileira, no destaque dado aos costumes personalistas. O jeito de jogar futebol ia ao encontro de uma maneira de ser brasileira, a do brilho pessoal, a do anel de doutor no dedo, mesmo sem diploma. O individualismo não podia ser eliminado. Fazia parte da própria essência do povo brasileiro. Mas, poderia ser controlado através da disciplina. A solução seria os clubes contratarem técnicos disciplinadores, que impusessem esquemas táticos dentro de campo, e que supervisionassem a vida do jogador dentro e fora do clube. Ele precisava ser um exemplo de cidadão, trabalhador e disciplinado. Era a época de técnicos como Flávio Costa, Dori Krushner, Ondino Vieira e Zezé Moreira. O jogador era uma peça da engrenagem. E quem mexia na engrenagem era o técnico. Porém, logo se viu que o preço a pagar pelo controle do individualismo do jogador era muito alto. Surgiu o individualismo do técnico[vi]. O individualismo do jogador podia ser corrigido pelo técnico. Mas, quem iria corrigir o individualismo do técnico?

Na verdade, para Mário Filho, a responsabilidade da derrota em 1950 se deveu, em parte, ao técnico Flávio Costa; não por ter feito algo errado, mas por ser o que ele era: centralizador em excesso, disciplinador, controlador. Se um técnico era individualista, então não tinha autoridade para unificar um conjunto de onze jogadores. Assim, a mesma tendência do craque brasileiro “em complicar a jogada, para mostrar-se melhor e brilhar mais, observa-se no técnico, complicando as táticas e os sistemas de jogo, tornando-os quase herméticos, para que se sinta a obra dele”[vii]. Quando, no prélio contra os uruguaios, os jogadores precisaram reagir, precisaram de um comandante dentro de campo, não havia ninguém para assumir tal posto. Aconteceu que os jogadores ficaram tão acostumados a obedecerem a ordens de Flávio Costa que quando se viram numa situação em que era necessário criar as próprias ordens, não sabiam mais como fazê-las. Obdulio Varela soube cumprir este papel, por isso os uruguaios ganharam o jogo.

Flávio Costa, o treinador individualista. Foto: Reprodução/Twitter.

Para Mário Filho, somente pensando na equipe, pensando no todo, é que o brasileiro iria conseguir superar o problema do individualismo. Era preciso controlá-lo, sem extirpá-lo. O jogador não estava acima da equipe, muito menos o técnico. Em vez de jogar para o público, o jogador deveria colocar sua habilidade e genialidade a serviço do time. Em vez do técnico dizer que a vitória foi obra sua, era preciso mostrar que foi o trabalho de todos, em conjunto, que possibilitou o êxito.

Tais constatações não eram restritas ao universo futebolístico. Para Mário Filho, o futebol era um espelho da sociedade, ou melhor um termômetro com o qual se podia avaliar as qualidades e mazelas de um povo. Pensar no individualismo do jogador era pensar no individualismo do brasileiro. Somente através do controle do individualismo de todo o povo brasileiro era que se poderia pensar em galgar um novo patamar, uma nova situação de nação civilizada, de uma nação campeã mundial em futebol.

Finalmente, Mário Filho procurou responder a principal pergunta que não saía dos lábios dos jogadores, dirigentes e torcedores brasileiros: meto ou não meto o pé na cara? A opção pelo jogo violento foi uma postura defendida continuamente por grande parte da imprensa esportiva após o “16 de Julho”. Muitos conclamavam os jogadores a imitarem a postura de um Obdulio Varela. Mário Filho se opôs veementemente a tal modelo de jogador. O brasileiro não deveria seguir este caminho: não era digno. Jamais um brasileiro sentiria orgulho se um jogador do seu time metesse o pé na cara de outro, mesmo que isso representasse um título mundial. Na verdade, “nos envergonhamos de tudo: da derrota, da passividade do escrete, da coroa mortuária. E nos doía, acima de tudo, a comparação com a Celeste: a Celeste ganhara na raça e no peito e o que era pior, aqui em casa, na cara da gente”. Pois, “aquele bofetão de Obdulio Varela em Bigode e que Bigode depois disse que não foi bofetão, mas que para nós foi, parecia que queimava em nossos rostos”. Por isso é que em competições futuras, quando se encontrava com a Celeste, os jogadores brasileiros se julgavam obrigados “a meter a mão na cara dos uruguaios. Para mostrar que não eram covardes. Não era preciso fazer isso. Faça-se justiça a todos nós: as bofetadas que demos nos envergonharam tanto quanto as bofetadas que levamos”[viii].

Obdulio Varela, o jogador violento. Foto: Wikipedia.

No campeonato pan-americano de 1952, os brasileiros ganharam dos uruguaios “na mão e na marra”. Porém, não era justo vencer daquela forma. Uma equipe para conquistar um campeonato tinha que jogar com valentia e bravura. Mas também tinha que jogar dentro das regras do jogo, sem excessos de violência, respeitando o adversário. A vitória tinha que ser justa.

A ideia do “jogo justo” foi defendida por Mário Filho através de uma crônica, na verdade, uma parábola, que contava a história de uma partida entre o grande time do Vasco e o modesto Andaraí. Era nas Laranjeiras, em pleno verão carioca e chovia torrencialmente. A equipe do Andaraí já estava em campo esperando pelos adversários. Eles sabiam que iriam perder o jogo, a equipe vascaína era muito boa. O que eles queriam era jogar dignamente e, se possível, perder de pouco. Porém, os vascaínos não chegavam. O jogo estava marcado para começar às nove horas da noite. O juiz, os bandeirinhas, a equipe do Andaraí, estavam todos em campo esperando o início. E nada do time do Vasco aparecer. Se eles não chegassem em quinze minutos, o Andaraí, se quisesse, ganhava por desistência. Nesse momento, souberam através do dirigente do Vasco que os jogadores estavam presos na chuva, que tinham sofrido um acidente, que alguns estavam machucados, mas que outros tinham partido do pronto-socorro para as Laranjeiras. O dirigente vascaíno conclamou o pessoal do Andaraí para esperar o time chegar. Nesse momento, um jogador do Andaraí se meteu na conversa dos dirigentes e disse “Eu só peço uma coisa: que o Vasco não abuse”[ix]. Abusar de quê? Do escore. O Andaraí já ia perder, e ficava apanhando chuva, esperando pelo Vasco. “Se o Vasco vencer”, disse o dirigente vascaíno, “será por um escore pequeno”. Finalmente o Vasco apareceu, entrou em campo e pediu para o juiz iniciar o jogo. Mal começou e o Vasco foi fazendo gols. “A chuva não parou de cair. Nem a chuva de cair, nem o Vasco de fazer gols”[x]. O Vasco só parou de fazer gols quando o placar chegou aos 12 a 0.

Nesse momento, Arubinha, o jogador do Andaraí, ajoelhou-se, juntou as mãos, e olhou para cima. “Lá em cima estava o céu, devia estar Deus também. Arubinha não via o céu, não via Deus. Assim mesmo pediu, alto, bem alto, para que Deus escutasse: ‘Se há um Deus no céu, o Vasco tem de passar doze anos sem ser campeão’”[xi].

Algumas pessoas começaram a dizer que Arubinha não se contentou com isso. Que um dia foi a São Januário e enterrou um sapo no campo do Vasco. Os dirigentes do Vasco souberam da praga de Arubinha, e ficaram assustados. Só o Arubinha poderia desfazer a praga. Não desfez. Os anos passaram e nada de ser campeão. “Era o sapo, não podia ser outra coisa. O Vasco mandou revolver o campo, procurou-se uma múmia de sapo por todo canto, não se encontrou sapo algum”. Os vascaínos meteram a mão no bolso para o Arubinha contar onde tinha enterrado. O Arubinha disse que não tinha enterrado sapo nenhum. “Estava falando a verdade? Era o que não se sabia”. O Vasco organizava uma equipe, “gastava um dinheirão com o time, aliás, timaço. Parecia que com praga, sapo e tudo, ia ser campeão e não era, não havia jeito de ser”[xii].

Com a história do sapo de Arubinha, Mário Filho procurou exemplificar como deveria se comportar um brasileiro, jogador ou torcedor, perante o adversário, o time tinha que jogar de forma limpa, sem quebrar nenhuma regra, ou acordos estabelecidos anteriormente. Era o ideal da vitória limpa. O fair play era o indicado para que aceitássemos os resultados dos jogos sem querer “virar a mesa”. Seria tal comportamento que nos faria mais disciplinados e controlados. Se tais princípios não fossem aceitos, haveria punição. A punição era mais moral do que em abstinência de vitórias. A punição era a desonra por não ter agido dignamente.

O mesmo podia ser dito em relação ao “16 de Julho”. Segundo Mário Filho, do que adiantaria ganhar do Uruguai na pancada, dando bofetadas e pontapés, xingando e agredindo os adversários? Não adiantaria de nada. O torcedor sentiria vergonha. Não era esse o caminho da redenção, pois os brasileiros já ultrapassaram esta fase. Já deram pontapés e bofetões no passado, na Copa de 1938. Perderam a taça por isso. Aprenderam. Em 1950, não ganharam o título; mas ganharam dignidade. Lembraram da crônica de Willy Meisl elogiando o comportamento dos atletas e dos torcedores. Segundo Mário Filho: “Recebemos elogios do mundo inteiro. O Brasil soubera perder. O mundo, realmente, ficou de boca aberta”. Se os brasileiros tivessem levantado o campeonato do mundo, “a Europa ainda estaria na mais completa ignorância a respeito da esportividade brasileira”[xiii].

Não era porque Bigode não revidou a “bofetada” de Obdulio Varela, que os brasileiros dali por diante teriam que enfiar o pé na cara de qualquer um que lhe atravessasse o caminho. A Copa de 1954 era um exemplo disso. De que adiantou a macheza, a valentia, a violência contra os húngaros; depois dos brasileiros tremerem nos primeiros minutos? Ganharam alguma coisa? Não. Perderam? Sim, a dignidade perante o mundo.

Na verdade, tentavam consertar os erros de 1938 em 1950, e os de 1950 em 1954. Segundo o cronista: “Depois da derrota de 38 nos convencemos de que a grande vantagem era apanhar na cara, caladinhos, e depois da derrota de 50 verificamos que não era nada disso, que tínhamos mesmo era de tacar a mão”[xiv].

Então, se não era para apanhar calado e nem tacar a mão na cara do adversário, qual o caminho que os brasileiros deveriam seguir? Deveriam seguir a Inglaterra como sendo um país de pessoas educadas, respeitosas e dignas? Ou deviam seguir o exemplo do Uruguai, formado por um povo valente, corajoso, raçudo e frequentemente violento?

A solução encontrada por Mário Filho era de que o futebol brasileiro deveria encontrar o seu próprio caminho. “É que não deixamos, até agora, o jogador jogar o jogo dele. Nunca o colocamos à vontade”. Era a experiência que faltava ao futebol brasileiro: “o da libertação do scratch. O scratch precisa ser responsável por si mesmo para que possa jogar o jogo dele para ele. É como nos pode trazer um campeonato do mundo”[xv].

O brasileiro deveria parar de seguir os exemplos de outros povos, de copiar os outros. O que ele deveria fazer era procurar conhecer a si mesmos. O brasileiro valorizava em excesso o comportamento estrangeiro. Em contrapartida, sentia vergonha de si mesmos. Achava-se inferior a outros povos. Segundo o jornalista: “A gente é que tem, pelo menos no esporte, o complexo de ser brasileiro. Achando que se fôssemos ingleses nos comportaríamos com muito maior descrição”[xvi].

Garrincha, o jogador ideal. Foto: Wikipedia.

Para vencer, o brasileiro teria que se aceitar por inteiro, nem mais nem menos. Nem jogar como os ingleses, nem jogar como os uruguaios. Nem dar bofetões, nem jogar passivamente. O ideal de jogador brasileiro deveria ser como Garrincha. “Se tivéssemos uns Garrinchas em 54, tudo seria diferente. Pelo menos não tremeríamos em Berna. Garrincha jogaria contra os húngaros de 54 como se estivesse jogando contra um Madureira”. Driblar um húngaro ou outro qualquer, a curiosidade seria a mesma. “Preferíamos, talvez, outra noção de responsabilidade, outra compenetração, mas Garrincha nos dá uma grande lição: é preciso aceitar o jogador como ele é”[xvii].

Garrincha, o ingênuo de pernas tortas, que muitos criticavam por sua falta de responsabilidade, ia encarnando o ideal de brasileiro: aquele que se aceitava como era[xviii].

Assim, as crônicas esportivas de Mário Filho desenvolvidas na década de 1950 trouxeram o elemento da provação cristã como novidade em relação aos seus textos publicados nas décadas de 1930 e 1940. Se, nestes, a perspectiva de um evolucionismo culturalista da sociedade brasileira era mais evidente; agora, tal narrativa ganhava um parêntese, um obstáculo necessário para a transformação qualitativa do brasileiro em povo civilizado.

Nas crônicas das duas épocas, a valoração da disciplina se manteve. Contudo, agora, seu entendimento do que era uma atitude disciplinar mudara. Se antes ele via como essencial a existência de uma hierarquia rígida para a manutenção da disciplina, no caso a existência de técnicos de personalidades fortes, centralizadores e disciplinadores, como Flávio Costa e Ondino Vieira, com o objetivo de conter o ranço rebelde e selvagem de muitos craques como Leônidas da Silva ou Fausto dos Santos; agora ele dividia a responsabilidade com todos, com os técnicos, jogadores e torcedores. Somente quando a sociedade conseguisse introjetar o valor da disciplina em suas atividades cotidianas era que teria condições de ser civilizada. Nesse sentido, o futebol possuía um papel fundamental: era espelho da sociedade e, ao mesmo tempo, era escola. Era uma espécie de termômetro social, mas também ensinava a civilizar. Mesmo um Garrincha, associado, nas últimas crônicas anteriores a Copa de 1958, como o caminho que se deveria seguir para deixar de copiar os outro e começar a se autoconhecer; mesmo um Garrincha poderia representar a redenção do brasileiro através do futebol. Esse mesmo Garrincha, considerado irresponsável por grande parte dos cronistas e dirigentes esportivos, sendo educado pelo futebol e assessorado pelos companheiros, poderia aprender a importância da disciplina, a importância de se trabalhar em equipe sem deixar de ser ele mesmo, sem deixar de ser brasileiro[xix].

Às vésperas da Copa do Mundo da Suécia, em 1958, Mário Filho concluía com Garrincha uma reflexão que iniciara na derrota brasileira em 1950: que o brasileiro precisava se descobrir. Mais do que isso, o brasileiro precisava saber passar pela provação a que foi submetido. A história do futebol brasileiro possuía um sentido. Era preciso desvendar as razões das derrotas para as equipes da Itália em 1938, da Hungria em 1954 e, principalmente, do Uruguai em 1950. Somente assim se entenderia os problemas que os brasileiros deveriam suplantar para atingirem um outro nível, uma outra dimensão enquanto nação. Somente através da conscientização da própria historicidade é que os brasileiros poderiam aprender a ser moderados em suas reações e a equilibrarem dentro de si diferentes aptidões. O sofrimento e a dureza da vida eram provações necessárias, pelas quais poderiam testar seu caráter e forjar sua personalidade, com o objetivo de enfrentar, de cabeça erguida, todos os obstáculos da vida.

Entre os anos de 1950 e 1958, a obra jornalística de Mário Filho se caracterizou por procurar uma resposta aos fracassos do futebol brasileiros nas Copas de 1938, 1954 e, principalmente, de 1950. O fracasso no futebol representava o fracasso da sociedade brasileira enquanto nação civilizada. Encontrar uma resposta para as derrotas no futebol levava invariavelmente a encontrar uma resposta para o Brasil. As características soteriológicas cristãs ganharam destaque, na mesma medida que perderam força as influências de Gilberto Freyre e de seu futebol dionisíaco. Era preciso assimilar as derrotas como oportunidades de autoconhecimento dos “pecados” praticados anteriormente. Somente assim os brasileiros poderiam reivindicar o “perdão” através da constituição de um homem caracterizado pela sobriedade, industriosidade, maturidade e disciplina, prontos para atingirem um novo grau de civilidade perante as outras nações, prontos para atingirem a condição de campeões mundiais de futebol.


Notas:

[i] RODRIGUES FILHO, Mário. O horror ao vice-campeonato. Jornal dos Sports, 30 mai. 1958, p. 5.

[ii] RODRIGUES FILHO, Mário. Vitória e derrota. Jornal dos Sports, 1 mar. 1957, p. 5.

[iii] RODRIGUES FILHO, Mário. A tremedeira. Manchete Esportiva, 28 fev. 1958, p. 21.

[iv] RODRIGUES FILHO, Mário. O único mal do foot-ball brasileiro. Jornal dos Sports, 9 abr. 1957, p. 5.

[v] Idem.

[vi] Idem.

[vii] RODRIGUES FILHO, Mário. Para a salvação do foot-ball brasileiro. Jornal dos Sports, 5 abr. 1957, p. 5.

[viii] RODRIGUES FILHO, Mário. A igualdade do futebol. Manchete Esportiva, 31 mai. 1958, p. 21.

[ix] RODRIGUES FILHO, Mário. A história verdadeira do sapo de Arubinha. Manchete Esportiva, 9 nov. 1957, p. 39.

[x] Idem.

[xi] Idem.

[xii] Idem.

[xiii] RODRIGUES FILHO, Mário. A igualdade do futebol, op. cit., p. 21.

[xiv] RODRIGUES FILHO, Mário. O grande enigma. Manchete Esportiva, 22 mar. 1958, p. 21.

[xv] RODRIGUES FILHO, Mário. A única experiência que não foi feita ainda. Jornal dos Sports, 28 mai. 1958, p. 5.

[xvi] RODRIGUES FILHO, Mário. A igualdade do futebol, op. cit., p. 21.

[xvii] RODRIGUES FILHO, Mário. Garrincha. Manchete Esportiva, 26 abr. 1958, p. 21. Essa crônica foi feita em abril de 1958, antes do início da Copa, quando o titular absoluto da ponta direita, Júlio Botelho, desistiu de participar do certame mundial, e a posição passou a ser disputada por Garrincha e Joel.

[xviii] Ver: ANTUNES, Fátima Martin Rodrigues Ferreira. Com Brasileiro, Não Há Quem Possa! Futebol e identidade nacional em José Lins do Rego, Mário Filho e Nelson Rodrigues. São Paulo: EdUNESP, 2004.

[xix] Ver: SOUZA, Denaldo Alchorne de. Pra Frente, Brasil! Do Maracanazo aos mitos de Pelé e Garrincha, a dialética da ordem e da desordem (1950-1983). São Paulo: Intermeios, 2018, p. 53-85.

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Denaldo Alchorne de Souza

Denaldo Alchorne de Souza fez pós-doutorado em História pela USP, doutorado em História pela PUC-SP e mestrado, especialização e graduação em História pela UFF. É autor dos livros Pra Frente, Brasil! Do Maracanazo aos mitos de Pelé e Garrincha, 1950-1983 (Ed. Intermeios, 2018) e O Brasil Entra em Campo! Construções e reconstruções da identidade nacional, 1930-1947 (Ed. Annablume, 2008), além de diversos artigos publicados em revistas, jornais e sites. Atualmente é pesquisador do LUDENS/USP e Professor Titular do Instituto Federal Fluminense, onde leciona disciplinas na Graduação em História.

Como citar

SOUZA, Denaldo Alchorne de. Mário Filho e o Maracanazo (1950-1958)(2ª e última parte). Ludopédio, São Paulo, v. 121, n. 5, 2019.
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