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Mas, futebol é coisa de “índio”?

Somos os Baniwa, vivemos no Alto Rio Negro, Amazônia. Andamos pelados. Nosso único esporte é caçar. Não temos pátria nem religião. Comemos com as mãos e cortamos o cabelo sempre igual…Isso, pelo menos, em 1.500. De lá para cá, tudo mudou. E, se mesmo assim, você continua a ser ‘homem branco’, por que nós não podemos continuar a ser índio?[1]

Esse é o questionamento do líder indígena Baniwa em um vídeo produzido pelo Instituto Socioambiental (ISA) no ano de 2017, produção que faz parte da campanha “menos preconceito, mais índio”. A provocação resume um dos principais preconceitos que os mais de 250 povos indígenas existentes no Brasil sofrem no contexto atual: o estereótipo do “índio autêntico”, que decorre da falsa ideia de que os indígenas permaneceram em uma espécie de congelamento cultural, parados no tempo[2].

Sob essa ótica, imagina-se que, quando um indígena incorpora em seu modo de viver hábitos e/ou objetos de outras culturas, perdem a sua identidade, e por consequência perderiam também o direito de reivindicar um tratamento específico e diferenciado, como uma educação bilíngue e intercultural, bem como o direito à ocupação de suas terras tradicionais.

A ideia de congelamento cultural trata da cultura como uma coisa estática, quando na verdade, podemos dizer o contrário: a cultura é dinâmica. Roque Laraia propõe uma comparação para melhor entendermos isso:

Num exercício de imaginação, suponhamos que um dos missionários jesuítas do século XVI, durante a sua permanência no Brasil, tenha dividido as suas observações entre o comportamento dos indígenas e os hábitos das formigas saúva. Quatro séculos depois, qualquer entomologista poderá constatar que não houve qualquer mudança nos hábitos dos referidos insetos. Durante quase meio milênio, as habitantes do formigueiro repetiram os procedimentos de suas antecessoras, obedecendo apenas às diretrizes de seus padrões genéticos. Supondo, por outro lado, numa hipótese quase absurda, que um dos grupos indígenas observados tenha sobrevivido aos quatro séculos de dizimação, graças a um isolamento em relação aos brancos, o que constataria um antropólogo moderno?[3]

Laraia afirma que, para os leigos, o antropólogo moderno tiraria as mesmas impressões que o missionário, entretanto, de acordo com o autor, tal dedução é falsa. O antropólogo moderno em um espaço de tempo de quatro séculos sem dúvida encontraria mudanças nesta sociedade indígena, pois “os homens, ao contrário das formigas, têm a capacidade de questionar os seus próprios hábitos e modificá-los”[4].

Além dessa mudança cultural interna, que de acordo com Laraia decorre da dinâmica do próprio sistema cultural, existe um segundo tipo de modificação que, por sua vez, é o resultado do contato de um sistema cultural com um outro. Laraia afirma ainda que entender essa dinâmica das mudanças culturais é importante para evitar preconceitos.

E é neste sentido que este texto se propõe, entendendo a cultura de forma dinâmica. O uso do celular, da calça jeans ou a prática de jogar futebol, que será o caso deste texto, por exemplo, não fazem do indígena menos indígena.          

Para entendermos melhor a relação entre as práticas corporais e os diversos grupos indígenas, tomando sempre muito cuidado, pois, sabemos que as etnias são diferentes, e não queremos cair no erro de generalizar esses mais de 250 grupos, podemos citar os Jogos dos Povos Indígenas e as produções sobre este evento como um importante instrumento para entendermos essa relação. Os Jogos, que no ano 2013 chegaram à sua XII edição, de acordo com informações do site do Ministério do Esporte, ocorrem desde 1996, contando com a participação de diversos grupos. Ferreira e Camargo[5] apontam uma média de 800 a 1000 indígenas, e cerca 30 etnias em cada edição. O relatório dos Jogos de 2011 aponta que a iniciativa partiu dos próprios indígenas, especificamente dos irmãos Marcos e Carlos, da etnia Terena/MS.

O evento já foi sediado em cidades como: Goiânia/GO (1996), Guairá/PR (1999), Marabá/PA (2000), Campo Grande/MS (2001), Marapani/PA (2002), Palmas/TO (2003), Porto Seguro/BA (2004), Fortaleza/CE (2005), Recife/PE (2007), Paragominas/PA (2009), Porto Nacional/TO (2011) e Cuiabá/MT (2013). Dentre as modalidades praticadas, podemos citar: arco e flecha, arremesso de lanças, cabo de força, canoagem, corrida de 100 metros, corrida de fundo, corrida de tora, futebol masculino e feminino e natação/travessia.

Existem ainda os esportes de demonstração e celebração, como classifica o Ministério do Esporte, são eles: akô (prova de velocidade semelhante ao revezamento 4×400), corrida de tora, jãmparti (corrida de tora praticada pelos povos Gavião Parkatêjê e Kyikatêjê do sul do Pará), jawari (modalidade praticada com 15 ou mais atletas de cada lado, em campo aberto de tamanho similar ao do futebol), kagot (atividade coletiva com flecha), kaipy (tiro com flechas), katukaywa (“jogo de futebol” em que o “chute” é feito com o joelho), ronkrã (semelhante ao hóquei sobre grama), tihimore (jogo de arremesso), xikunahaty (“futebol de cabeça”), zarabatana e lutas corporais.

Leila Pinto destaca que por meio desse evento, além de se buscar reconhecer e prestigiar os valores e a construção simbólica herdada dos antepassados através das práticas esportivas indígenas, um dos maiores legados dos Jogos do Povos Indígenas “é também reconhecer-se na elaboração de futuras utopias, que irão influenciar decisões sobre rumos de seus destinos”[6]. É por isso que os Jogos incluem modalidades não indígenas, como por exemplo o futebol. A inclusão desse esporte no programa dos Jogos dos Povos Indígenas evidencia como essa modalidade não indígena é muito popular entre diversas etnias.

Indígenas do Paraguai jogaram contra a etnia Gavião, do Brasil. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil.

Essa capacidade dos indígenas adaptarem-se aos esportes modernos sem perder a indianidade é denominada por Fassheber como etno-desporto. Para esse autor, mais do que adaptar-se e transformar, o etno-desporto expressa um “processo de ressignificação de valores culturais e uma reinserção com o mundo dos brancos”[7]. Assim, cada grupo faz um uso específico deste esporte, o que permite pensar a afirmação da identidade étnica de uma forma singular.

Em nossa opinião, a equipe Gavião Kyikatêjê, que possui o status de ser o primeiro time indígena profissional do Brasil, seria outro exemplo desse etno-desporto defendido por Fassheber, ganhando novos significados a partir do seu próprio movimento natural e do contato com outras culturas como no caso do futebol. E não uma degeneração do “verdadeiro índio”.

De acordo com informações de uma rede social do próprio Gavião Kyikatêjê Futebol Clube, o time é originário do antigo Castanheira Esporte Clube, sendo esta uma equipe tradicional no futebol marabaense, no Pará. A antiga equipe foi fundada por volta de 1980 e disputou cinco finais do campeonato local (liga marabaense), ganhando-o três vezes. Em 2007, o povo Gavião Kyikatêjê adquiriu os direitos do antigo Castanheira EC para competir na primeira divisão do municipal. Entretanto, o Gavião continuou com o antigo nome, Castanheira EC, pois a liga marabaense não permitiu a menção do nome do povo indígena no título da agremiação.

Após importantes conquistas, como o vice-campeonato em 2007 e o título de campeão da liga local em 2008, os Kyikatêjê decidiram profissionalizar o time em 2009. Em entrevista para o “Lance!”, no ano de 2014, questionado sobre como teria surgido a ideia da profissionalização, o cacique e presidente do time na época, Pepkrakte Konxarti, relatou o seguinte: “o time contava com índios de diversas tribos e disputava campeonatos amadores. Vi que muitos tinham potencial e arrisquei criar um time profissional. Todos teriam uma chance de jogar assim.”.

Em sua primeira temporada como um clube de futebol profissional, o Gavião Kyikatêjê disputou a segunda divisão do Campeonato Paraense, terminando na sexta colocação. Em 2010, novamente na segundona do Paraense, o time conquistou o terceiro lugar e por apenas uma posição não conseguiu avançar para a primeira divisão. Nos anos de 2011 e 2012, o clube permaneceu em sétimo lugar. E finalmente em 2013 o Gavião conquistou o acesso à primeira divisão do Campeonato Paraense.

No ano de 2014, o time estreou na elite do futebol paraense contra o tradicional Paysandu. Naquela ocasião, foram derrotados por 2×1. Entretanto, parece que o resultado ficou em segundo plano. Em mais uma entrevista para o “Lance!”, Pepkrakte Konxarti demonstrou orgulho, afirmando que o jogo “foi histórico. Mostramos um pouco da nossa cultura através do futebol. Nossa população sofre. Queremos, com o futebol, uma interação com o Brasil.”.

A própria Fifa fez, em 2017, um vídeo para o seu canal oficial no YouTube, o FifaTv, sobre o clube e seu time profissional, apresentando-os como a primeira equipe indígena a atingir o status profissional. Dentre os entrevistados, destacaram-se o cacique do povo Gavião Kyikatêjê, o presidente do clube, alguns jogadores e o treinador do time na ocasião, conhecido como “Professor Primo”, que relatou que, no lugar de utilizar academias e treinamentos convencionais para os atletas, utilizava práticas que fazem parte da cultura da etnia, como o arco e flecha.

Jogador da etnia Gavião do futebol masculino. Foto: Roberto Castro/ME.

Além disso, o atual presidente do time, Jakurere Pepkrakte, conta que diferente de outros times como Flamengo, Vasco, Palmeiras e São Paulo (exemplos citados por ele), no Gavião não é preciso pagar nenhum tipo de taxa para fazer o teste para o time e que, além disso, quando as pessoas chegam para o teste elas são alimentadas, ganham um lugar para ficar e são fornecidas chuteiras para os aspirantes à equipe. Por fim, Jakurere Pepkrakte complementa: “nós apoiamos eles [pessoas que chegam para fazer o teste], para que possam brilhar e também aproveitar”.

Atualmente o clube conta com uma equipe mista, ou seja, formada por indígenas e não indígenas e encontra-se na Segunda Divisão do Paraense. O principal jogador da equipe era o atacante Aru Sompré, que faleceu no início de 2018, vítima de um acidente de carro.

Ademais, aproveitamos para esclarecer que o uso do termo “índio” entre aspas no título deste texto foi proposital. Acreditamos que esse termo carrega uma visão preconceituosa do indígena. Como esclarece Daniel Munduruku, “índio” não é uma definição, é um apelido e para ele “apelido é o que se dá para quem parece ser diferente de nós ou ter alguma deficiência que achamos que não temos”[8]. Dessa forma, o autor acrescenta, não existem conceitos relativos a “índio”, apenas preconceito, assim como a própria pergunta, “mas, futebol é coisa de ‘índio’?”. E respondemos: sim, futebol também é para os indígenas. De acordo com nosso entendimento e, em conformidade com Daniel Munduruku, o conceito de “índígena” é mais interessante de ser utilizado, pois remete àquele que “pertence ao lugar”, isto é, afirma o pertencimento a uma tradição e/ou cultura, que, como esperamos ter deixado claro neste texto, pode modificar-se.


[1] INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. #MenosPreconceitoMaisÍndio. 2017. Disponível em: <https://goo.gl/pK1Hjq>. Acesso em: 25 dez. 2018.

[2] MANCINI, Ana Paula Gomes; TROQUEZ, Marta Coelho Castro. Desconstruindo estereótipos: apontamentos em prol de uma prática educativa comprometida eticamente com a temática indígena. Revista Tellus, Campo Grande, ano 9, n. 16, p. 181-206, jan./jun. 2009. Disponível em: <https://goo.gl/pjLtTm>. Acesso em: 25 dez. 2018.

[3] LARAIA, Roque de Barros. A cultura é dinâmica. In: Cultura: um conceito antropológico. 14. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 94.

[4] Ibid., p. 95.

[5] FERREIRA, Maria Beatriz Rocha; CAMARGO, Vera Regina Toledo. Povos indígenas, mobilizações e representações das práticas corporais. ComCiência. 07 nov. 2017. Disponível em: <https://goo.gl/KYPsZk>. Acesso em: 25 dez. 2018.

[6] PINTO, Leila Mirtes Santos de Magalhães. Legado dos Jogos dos Povos Indígenas. In: FERREIRA, Maria Beatriz Rocha; VINHA, Marina (Org.). Celebrando os jogos, a memória e a identidade: XI Jogos dos Povos indígenas. Porto Nacional – Tocantins, 2011. Dourados – MS: UFGD, 2015, p. 42-43. Disponível em: <https://goo.gl/AiKzEE>. Acesso em: 22 dez. 2018.

[7] FASSHEBER, José Ronaldo Mendonça. Etno Desporto indígena: contribuições da antropologia social a partir da experiência entre os Kaingang. 2006. (Tese de Doutorado) – Unicamp, Campinas, p. 87. Acesso em: 25 de dez. 2018.

[8] MUNDURUKU, Daniel. Usando a palavra certa pra doutor não reclamar. [201-]. Disponível em: <https://goo.gl/bqi7SF>. Acesso em: 25 dez. 2018.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Letícia Marcolan

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais da Fundação Getúlio Vargas. Participa do FULIA/UFMG e do Memória FC.

Como citar

MARCOLAN, Letícia; , . Mas, futebol é coisa de “índio”?. Ludopédio, São Paulo, v. 114, n. 29, 2018.
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