136.54

#MeuRival: Ode ao uruguaio

Alejandro Wall 24 de outubro de 2020
Ilustração: Gonza Rodriguez.

Eu parava a dois passos da bola, sem pegar impulso, caminhava e então chutava. Sabia que tinha que ser um movimento imperceptível, um truque do pé. Para minha imaginação, o que acontecia depois era isso: a bola fazia uma pequena curva e entrava no ângulo de um gol que não existia, e o goleiro invisível voava mas caía vencido. Eu saía gritando o gol do Racing pelo quintal da minha casa com uma mão levantada, qualquer que seja, e me pendurava em um portão que poderia ser um alambrado. Vi mil vezes essa imagem e outras mil vezes quis imitá-la, queria que fosse minha. Queria ser como Rubén Paz. Quando corria, criando o grito de uma multidão com minha voz de garoto, o que se escutava era: u-ru-guaio, u-ru-guaio, u-ru-guaio.

O grito e o pulo para se pendurar no alambrado não havia visto depois de uma cobrança de falta. Lembrava depois de um gol contra o Independiente, um chutão do Fillol que é escorado por Medina Bello e que quando chega no Rubén Paz, se ativa uma dança: coloca no meio da área com a canhota, deixa o Monzón girando e chuta rasteiro com a mesma perna. Eu comprei a revista El Gráfico por causa deste jogo. A capa era o Rubén Paz nessa jogada. “Racing, dono de Avellaneda”, era o título que nunca mais esqueci, como nunca esqueci outros títulos da El Gráfico com Rubén Paz. O melhor foi “O futebol que traz Paz”. Mas houve uma matéria melhor: “Eu chuto assim”. Rubén Paz explicava suas cobranças de falta sem pegar impulso, como se posicionava paralelamente à bola, de perfil para o gol, para dar esse detalhe que um dia o narrador Marcelo Araujo resumiu assim: “Rubén Paz acaricia a bola, daqui a pouco vai beijá-la”.

Quantos anos eu tinha? Tinha nove anos, mais ou menos. Rubén Paz era meu primeiro amor no futebol, meu primeiro pôster com a Nashua no peito. Um amor que se alimentou não apenas das cobranças de falta, mas também do impensado, do olhar para um lado e lançar a bola para o outro, de uma elegância que para mim, nascido em 1979, era desconhecida com a camiseta do Racing. Porque até este momento, até Rubén Paz, os grandes jogadores, os estilistas, jogavam em outros times.

Por Rubén Paz — é impossível chamá-lo apenas pelo sobrenome, também não posso chamá-lo apenas pelo primeiro nome, então, às vezes, dizia completo: Rubén Walter Paz — eu soube da cidade de Artigas, onde ele havia nascido. Li em uma revista que ela ficava na fronteira uruguaia com o Brasil e eu a imaginava no mapa. Lembro de outros uruguaios naquele Racing, não sei se tinha mais: Chupete Vázquez, Víctor Rabuñal e Julio Balerio. Do Balerio, eu sabia que havia nascido em Piriapolis.

O futebol também pode ser uma lição de geografia.

A primeira vez que Rubén Paz pisou no campo do Racing, ainda que não para jogar, foi o mesmo dia que o Racing ganhou do Boca por 6 a 0 em Avellaneda. Poucos dias depois, li na revista do Racing uma pequena matéria com uma foto na qual apresentavam ele como o jogador que fez os argentinos tremerem quando entrou no Argentina x Uruguai da Copa de 86. Também diziam que tinha começado no Peñarol, que tinha jogado no Brasil, no Inter de Porto Alegre, e que vinha do Racing Matra de Paris, onde tinha jogado com outro uruguaio, Enzo Francescoli.

Mas eu não me importava com ninguém a não ser Rubén Paz, por quem levei as mãos à cabeça na arquibancada quando ele marcou um golaço no Gimnasia, o melhor gol em cobrança de falta que já vi. Volto a assisti-lo no You Tube. Tudo é perfeito nesta cena, a sincronia dos cinco que estão na barreira em virar e conseguir assistir o iminente, o voo do goleiro (acho que é o Gustavo Moriconi) que acaba se chocando com a trave, a avalanche dos torcedores atrás do gol e, é claro, Rubén Paz, o que ele faz com essa bola teledirigida. Se você colocar em pausa é um Picasso.

Nessa vez eu estava no estádio, mas teve uma outra que não fui e fiquei com muita raiva quando meu irmão voltou e me contou o quanto Rubén Paz tinha jogado. Foi em um 3 a 1 contra o Estudiantes. Em um dos gols, ele deu um chapéu em um rival fazendo a volta e, já de frente para o gol, colocou com a canhota pertinho da trave. Agora eu percebo que Rubén Paz é um homem impossível para um texto, é um homem para ser visto. O único que conseguiu descrevê-lo foi — óbvio! — outro uruguaio, Víctor Hugo Morales, que o chamava de Rúben — acento no u — e que contou poeticamente pelo rádio em outra vez que não fui ao estádio, contra o San Lorenzo, no campo do Huracán. Era 11 de setembro, dia do professor na Argentina, e depois de um gol de falta, Víctor Hugo disse algo assim: “No dia do professor, Rúben Paz”.

Jogadores como Rubén Paz desarmam a garra charrúa, o mito de que o futebol uruguaio se construiu apenas na base do esforço e da coragem. Mas não é somente ele, é a história. Para derrubar essa ideia, o jornalista Diego Bonadeo sempre lembrava que no Maracanazo de 50 estava o mágico Pepe Schiaffino. Mas como não admirar Obdulio Varela, o Negro Jefe, parado diante dos brasileiros — enfrentando o gigante — com a bola debaixo do braço reclamando com o árbitro depois do primeiro gol do Brasil. Ou indo se embriagar com os brasileiros inundados pela tristeza depois da derrota que ele havia sido um grande responsável. O Negro Jefe desprezou os dirigentes uruguaios, lutou por seus companheiros jogadores em uma greve que parou o futebol deste país por sete meses, e foi o líder da fundação do sindicato.

Essa tradição de luta continua até hoje com a seleção uruguaia em conflito com a Tenfield, a empresa dona dos direitos de transmissão. E com jogadores como Santiago “Bigote” López, que escreve sobre essa consciência: “Ser jogador de futebol é ter uma arte interna, como um bailarino de ballet; e dentro da arte, o jogador é um operário do esporte. Não temos educação em dizer que somos trabalhadores, que temos direitos e obrigações. Jogar o futebol é uma arte ou também é meu trabalho? Somos essas duas faces: o artista e o trabalhador”. Obdulio Varela já sabia.

Para muitos, o Uruguai deve ser Montevidéu e a avenida 18 de Julio, as delícias que produz a Cooperativa Nacional dos Produtores de Leite, Conaprole, a sobremesa chajá, a maconha legalizada, o chivito, Punta del Este, o carnaval, a Pilsen, seu laicismo, o Centenario, Zitarrosa, Viglietti, Galeano, Jaime Roos, e para mim também são os verões em La Paloma, e meu amigo Olivier me levando para comer na Ciudad Vieja. Há argentinos que forçam no “uruguaismo”, uma idealização do Uruguai, do vamo arriba la Celeste, de lugares comuns que se convertem em absurdo. Mas essa é outra história. Para mim, o Uruguai foi a fantasia da minha infância. Porque daí vinha Rubén Paz.

Se os millenials do Racing tiveram Diego Milito, nós que crescemos nos anos oitenta tivemos Rubén Paz. Artigas nos deu o mago que fez feliz uma infância futebolística com a Supercopa e esse time do Coco Basile, mas que também teve o rebaixamento e os anos sem títulos locais. O mago que a banda de rock Bestia Bebé dedicou a canção “El uruguayo”: “Poderão trazer novas estrelas, poderão gastar muitos milhões, mas o grande uruguaio nunca poderão igualar”. A música termina com uma verdade para a nossa geração: “Não é maior que Rubén Paz”.

Amar essa canhota artiguista também é amar o Uruguai.

*Tradução: Leo Lepri

Texto original:

Oda al uruguayo

Me paraba a dos pasos de la pelota, sin tomar carrera, caminaba y ahí le pegaba. Sabía que tenía que ser un movimiento imperceptible, un truco del pie. Para mi imaginación, lo que pasaba después era esto: la pelota hacía una curva breve y se metía en el ángulo de un arco que no existía, y el arquero invisible volaba pero caía vencido. Yo salía a gritar el gol de Racing por el patio de mi casa con una mano levantada, la que sea, y me colgaba de una reja que podía ser un alambrado. Vi mil veces esa imagen y otras mil veces la quise imitar, quería que fuera mía. Quería ser como Rubén Paz. Así que cuando corría, generando un grito de multitud con mi voz de niño, lo que se escuchaba era esto: u-ru-guayo, u-ru-guayo, u-ru-guayo.

El grito y el salto para colgarse del alambrado no se lo había visto después de un tiro libre. Se lo recordaba después de un gol a Independiente, un saque larguísimo de Fillol que peina Medina Bello y que cuando le llega a Rubén Paz, se activa una danza: la mete para el medio del área con la zurda, lo deja girando a Monzón y le pega al ras con la misma pierna. Me compré la revista El Gráfico por ese partido. La tapa era Rubén Paz en esa jugada. “Racing, capo de Avellaneda”, era el título que nunca más olvidé, como nunca olvidé otros títulos de El Gráfico con Rubén Paz. El mejor fue “El fútbol que trae Paz”. Pero hubo una nota mejor: “Así le pego yo”. Rubén Paz explicaba sus tiros libres sin carrera, cómo se paraba en paralelo a la pelota, de costado al arco, para darle ese toque que un día el relator Marcelo Araujo resumió así: “Rubén Paz acaricia la pelota, en un instante la va a besar”.

¿Cuántos años tenía yo? Tenía nueve años, más o menos. Rubén Paz era mi primer amor en el fútbol, mi primer póster con la Nashua en el pecho. Un amor que se alimentó no sólo a tiros libres, también a lo impensado, a mirar para un lado y meter la pelota para el otro, a una elegancia que para mí, que había nacido en 1979, era desconocida con la camiseta de Racing. Porque hasta ese momento, hasta Rubén Paz, los grandes jugadores, los estilistas, jugaban para otros equipos.

Por Rubén Paz –es imposible llamarlo sólo por el apellido, no puedo tampoco llamarlo sólo por el primer nombre, pero a veces lo decía completo: Rubén Walter Paz- supe de la ciudad de Artigas, donde había nacido. Había leído en una revista que estaba en la frontera uruguaya con Brasil y me la imaginaba en el mapa. Me acuerdo de otros uruguayos en ese Racing, no sé si había más: Chupete Vázquez, Víctor Rabuñal y Julio Balerio. De Balerio sabía que había nacido en Piriapolis.

El fútbol puede ser también una lección de geografía.

La primera vez que Rubén Paz salió a la cancha de Racing, aunque no para jugar, fue el día que Racing le ganó 6–0 a Boca en Avellaneda. A los pocos días, leí en la revista Racing una pequeña nota con foto en la que lo presentaban como el jugador que había hecho temblar a los argentinos cuando entró en el Argentina-Uruguay de México 86. También decían que había salido de Peñarol, que había jugado en Brasil, en el Inter de Porto de Alegre, y que llegaba desde el Racing Matra de París, donde había estado con otro uruguayo, Enzo Francescoli.

Pero a mí no me importaba nadie más que Rubén Paz, por el que me agarré la cabeza en la tribuna cuando le hizo un golazo a Gimnasia, el mejor gol de tiro libre que le haya visto. Lo vuelvo a ver en You Tube. Todo es perfecto en esa escena, la sincronización de los cinco que están en la barrera para darse vuelta a ver lo inminente, el vuelo del arquero (creo que es Gustavo Moriconi) que termina pegándose contra el palo, la avalancha de los hinchas detrás del arco y, por supuesto, Rubén Paz, lo que hace con esa pelota teledirigida. Le ponés pausa y es un Picasso.

Esa vez estuve en la cancha, pero otra vez no fui y me dio mucha bronca cuando mi hermano volvió y me contó lo que había jugado Rubén Paz. Fue un 3–1 contra Estudiantes. En uno de los goles, le hizo un sombrerito al rival dándose vuelta, y ya de frente al arco la tocó con la zurda contra un palo. Ahora me doy cuenta de que Rubén Paz es un hombre imposible para un texto, es un hombre para ser visto. El único que lo pudo relatar fue -¡obvio!- otro uruguayo, Víctor Hugo Morales, que le decía Rúben –acento en la u- y que lo contó poéticamente por radio otra vez que no fui a la cancha, contra San Lorenzo, en Huracán. Era un 11 de septiembre, día del maestro en la Argentina, y después de un gol de tiro libre, Víctor Hugo dijo algo así: “En el día del maestro, Rúben Paz”.

Jugadores como Rubén Paz desarman la garra charrúa, el mito de que el fútbol uruguayo se construyó sólo en base al esfuerzo y el coraje. Pero no es sólo él, es la historia. Para derrumbar esa idea, el periodista Diego Bonadeo siempre recordaba que en el Maracanazo del 50 estaba el mágico Pepe Schiaffino. Pero cómo no admirar a Obdulio Varela, al Negro Jefe, parándose ante los brasileños –enfrentando al gigante- con la pelota bajo el brazo para reclamarle al árbitro después del primer gol de Brasil. O yendo a emborracharse con los brasileños inundados en la tristeza por la derrota de la que él había sido un gran responsable. El Negro Jefe desairó a los dirigentes uruguayos, luchó por sus compañeros futbolistas en una huelga que paró al fútbol de ese país durante siete meses, y fue el líder de la fundación del sindicato.

Esa tradición de lucha continúa hasta ahora con la selección uruguaya enfrentada a Tenfield, la empresa dueña de los derechos. Y con jugadores como Santiago “Bigote” López, que escribe sobre la conciencia: “Ser futbolista es tener un arte adentro, como un bailarín de ballet; y dentro del arte, el futbolista es un obrero del deporte. No tenemos educación en decir que somos trabajadores, que tenemos derechos y obligaciones. ¿Jugar al fútbol es un arte o también es mi trabajo? Somos esas dos facetas: el artista y el trabajador”. Obdulio Varela ya lo sabía.

Uruguay será para muchos Montevideo y la 18 de Julio, las delicias que produce la Cooperativa Nacional de Productores de Leche, Conaprole, el postre chajá, la marihuana legal, el chivito, Punta del Este, el carnaval, la Pilsen, su laicisimo, el Centenario, Zitarrosa, Viglietti, Galeano, Jaime Roos, y para mí también son los veranos en La Paloma, y mi amigo Olivier llevándome a comer a la Ciudad Vieja. Hay argentinos que sobreactúan uruguayismo, una idealización del Uruguay, del vamo arriba la Celeste, de lugares comunes que se convierten en absurdo. Pero esa es otra historia. Para mí Uruguay fue la fantasía de mi infancia. Porque de ahí venía Rubén Paz.

Si los millenials de Racing tuvieron a Diego Milito, los que crecimos en los ochentas tuvimos a Rubén Paz. Artigas nos dio al mago que hizo feliz una niñez futbolera que aunque tuvo la Supercopa y ese equipo del Coco Basile, también había tenido el descenso y los años sin títulos locales. El mago al que la banda de rock Bestia Bebé le dedicó El uruguayo: “Podrán traer nuevas estrellas, podrán gastar muchos millones más, pero al gran uruguayo nunca lo podrán igualar”. La canción se va con una verdad para nuestra generación: “No es más grande que Rubén Paz”.

Amar a esa zurda artiguista es también amar al Uruguay.


Puntero menorPublicado originalmente no Puntero Izquierdo em 2018. O Puntero em parceria com o Ludopédio publica nesse espaço os textos originalmente divulgados em sua página do Medium.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Como citar

WALL, Alejandro. #MeuRival: Ode ao uruguaio. Ludopédio, São Paulo, v. 136, n. 54, 2020.
Leia também: