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Milton Pedrosa e o Gol de letra: por uma historiografia literária do futebol brasileiro

Proponho aqui uma análise brevíssima das relações entre futebol e literatura a partir do livro de Milton Pedrosa, Gol de letra: o futebol na literatura brasileira[1], publicado pela editora Gol, em 1967. Isso tomando o artigo com que Milton Pedrosa apresenta a antologia, intitulado O futebol na Literatura Brasileira, como marco inicial e conceitual deste texto. Neste artigo explicito os argumentos do autor para compor a publicação. Ao contextualizarmos o texto em uma análise historiográfica, torna-se possível pensar melhor as relações entre futebol e literatura e rastrear como o autor montou a sua antologia.

Inicialmente, apresento a figura de Milton Pedrosa, que nasceu em 17 de novembro de 1911, na cidade de Mossoró, no Rio Grande do Norte. Formou-se como professor primário, em 1929, na Escola Normal do Rio Grande do Norte e atuou como jornalista em jornais de Belo Horizonte e Rio de Janeiro. Destaca-se na trajetória de Pedrosa, seu trabalho pioneiro como editor de livros de futebol pela editora e livraria Gol, fundada na década de 1960 e que não durou muito, reforçando na época o estigma da não sintonia entre futebol e literatura. Das edições publicadas pela editora, destaco quatro livros: Gol de letra: o futebol na literatura brasileira (1967), uma antologia literária,; O olho na bola (1968) coletânea de crônicas de futebol; De apito na boca (1968), uma série de artigos de árbitros de futebol; e Na boca do túnel (1968), obra que reúne textos de treinadores de futebol.

Em Gol de letra: o futebol na literatura brasileira, Milton Pedrosa fez uma cuidadosa antologia com 59 textos. O jornalista dividiu os textos por gêneros literários em seções com a seguinte composição: contos, com 5 textos; romance (excertos), com 4 textos; teatro, com 3 textos; poemas, com 10 textos; artigos, crônicas e trechos de ensaios, com 37 textos. A antologia é organizada na lógica de um inventário cultural e memorialístico, organizando os textos por gênero literário. Em cada gênero os textos são apresentados por ordem alfabética dos nomes dos autores. No cabeçalho da página anterior a cada texto, Pedrosa faz uma breve apresentação do trabalho do respectivo autor, relacionando-o com o futebol e o referido texto. Por vezes a apresentação contextualiza a produção do autor na literatura brasileira. Essa antologia, em suma, propõe uma apresentação do panorama da literatura que tematizou o esporte compreendendo o período que vai do final do século XIX à década de 60, mesclando textos que ora exaltam o futebol e ora o questionam.

Detalhe da capa do livro Gol de Letra
Detalhe da capa do livro Gol de Letra

Como justificativa para a organização e publicação do livro, Milton Pedrosa afirma que :

Temos então que este esporte, hoje nacional, ainda não foi capaz de interessar os autores brasileiros na medida correspondente ao prestígio e à penetração que alcança nas camadas da população brasileira. Suscitar o problema e estudar as causas do fenômeno, parece-nos tarefa interessante para os que ocupam com as questões relativas ao desenvolvimento cultural em nosso País, de um modo geral, e, em particular, com o que se refere ao futebol e suas implicações vida brasileira[2].

Pela leitura do texto de apresentação, O futebol na Literatura Brasileira, pode-se ter uma ideia da visão que Milton Pedrosa tem do futebol como fenômeno cultural. Pedrosa propõe uma leitura analítica de cunho culturalista das origens e da formação do futebol no Brasil. Ele inicia por sua caracterização dramática, passa pela origem elitista do futebol no Brasil, e alcança sua popularização como esporte de massa. Na sequência o autor se debruça sobre por que escritores brasileiros não se interessaram pelo futebol como tema de seus trabalhos. Na análise de Pedrosa, observa-se uma influência grande de textos de autores como Mario Filho, Gilberto Freyre, Nelson Werneck Sodré e Sergio Buarque de Holanda.

Observando as proposições de Milton Pedrosa, podemos projetar uma problematização comparada entre a literatura e o futebol. Pensando aqui como construção cultural de identidades coletivas, destacando a figura do escritor e relacionando-o com o leitor/torcedor, para assim proporcionar a construção de imagens e memórias do futebol. Como propõe aqui Milton Pedrosa no seu texto,

Drama individual e drama coletivo. O futebol como esporte de massas formadas por estudantes, pequenos funcionários, operários, militares subalternos e modestos comerciários, que vão para as gerais, e gente de alta posição que vai para as cadeiras cativas e arquibancadas. As relações de cada um com a bola couro, e suas próprias relações e reações recíprocas, as sensações nascidas no gramado, projetadas sobre toda uma população, os pormenores da vida dos craques, dos técnicos, dos árbitros, dos paredros, dos torcedores – tudo isso representa um filão inesgotável à disposição dos criadores em qualquer gênero literário. Fonte de temas que interessam ao mesmo tempo aos campos da literatura, da música, da pintura, da escultura, do cinema, da arquitetura, a toda sorte de manifestações artísticas – ocorre-nos a pergunta: como e em que medida o futebol se reflete na literatura brasileira?[3]

Nessa tese de Pedrosa sobre as relações entre futebol e literatura, podemos caminhar na análise proposta por Hilário Franco Júnior, quando o mesmo reflete que:

Se Albert Camus pôde encontrar o grande mestre da vida no futebol, talvez seja porque este contém a contradição básica da existência. De um lado é a expressão do absurdo, a dimensão existencial que mais atraiu o escritor franco-argelino. De outro é o ensaio para se lutar contra esse absurdo, pois “a revolta é próprio movimento da vida, que não pode ser negada sem que se renuncie a viver”. Quando ele afirma que a vida é “longa obstinação” na qual “nenhum ser pode salvar-se completamente sozinho”, talvez tivesse em mente o futebol. Quando pensa no absurdo, talvez se lembrasse, por ter sido goleiro (amador, a tuberculose impediria a carreira profissional), “que a bola nunca vinha do lado que se imaginava”. Realmente, a mensagem básica da obra de Camus é a do próprio futebol – a felicidade é tão preciosa porque caminha ao lado da tragédia[4].

Milton Pedrosa
Milton Pedrosa

Para Milton Pedrosa, o fato de não haver na literatura brasileira, em seu tempo, uma grande obra de ficção que retratasse o universo do futebol estava ligado à origem aristocrática dos escritores brasileiros da época, que viam neste esporte um caminho para a alienação política dos cidadãos. Pedrosa ainda destaca o preconceito existente em relação aos trabalhadores braçais no Brasil, uma herança do regime escravocrata. Portanto, nessa perspectiva, o futebol era visto como ocupação de pessoas de segunda classe, malandros e outros outsiders[5]. Na construção simbólica da sociedade brasileira, são considerados cidadãos de segunda classe aqueles que desempenham funções não diretamente ligadas ao intelecto. A divisão entre o trabalho manual e o trabalho intelectual no Brasil possui origens na sua colonização pelos portugueses, como bem afirma Sérgio Buarque de Holanda:

O trabalho mental, que não suja as mãos e não fatiga o corpo, pode constituir, com efeito, ocupação em todos os sentidos digna dos antigos senhores de escravos e dos seus herdeiros. Não significa forçosamente, neste caso, amor ao pensamento especulativo ― a verdade é que, embora presumindo o contrário, dedicamos, de modo geral, pouca estima às especulações intelectuais ― mas amor à frase sonora, ao verbo espontâneo e abundante, à erudição ostentosa, à expressão rara. É que para bem corresponder ao papel que, mesmo sem o saber, lhe conferimos, inteligência há de ser ornamento e prenda, não instrumento de conhecimento e de ação.[6]

Pedrosa analisa a luta de classes nos campos de futebol desde o início do futebol no Brasil, com os filhos da elite de um lado e os “varzeanos” de outro. Depois os clubes de elite da zona sul contra os times pequenos dos subúrbios, passando pelas divisões dos torcedores nos setores dos estádios e chegando ao embate físico do futebol profissional. Nesta etapa é reafirmada a ginga brasileira e a reinvenção do futebol como uma forma de resistência e subversão ao padrão colonizador europeu. Muito influenciado pela leitura de autores como Mario Filho e Gilberto Freyre, Pedrosa reflete sobre a reinvenção do futebol no Brasil. “E como não compreender toda essa magistral invenção brasileira que são o futebol-astúcia, a ginga-de-corpo, a negaça, o drible manhoso, as rasteiras sutis; “os jeitos sambísticos de enganar”, de que fala Mário de Andrade e que caracterizam o nosso futebol […]”[7]

Detalhe do miolo do livro Gol de Letra
Detalhe do miolo do livro Gol de Letra

Para concluir esta brevíssima análise do texto de apresentação do livro Gol de letra, como um índice para a publicação, cito esta análise de José Miguel Winisk que repercute as vertentes de análise em que o futebol possibilita se pensar uma alegoria do Brasil:

Para além do bem e do mal, o futebol brasileiro insiste, desafiadoramente e ironicamente, como o emplasto de Brás Cubas que deu certo. Quando os sinais legíveis do Brasil são interpretados no mundo como levemente inconsequentes no seu chamado prazer, ao mesmo tempo que o país, regido pelos frívolos e os graves – “as duas colunas máximas da opinião” –, se torna superficial e pesado, ele testemunha ainda, ou testemunhou, junto com a música popular, e não deslocado da literatura, uma das mais originais propostas do nosso esboço de civilização: a respiração do fora do produtivismo sem trégua, a capacidade de comunicação entre lógicas múltiplas, e a leveza profunda.[8].

[1] PEDROSA, Milton (org.). Gol de letra: o futebol na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Gol, 1967.

[2] PEDROSA, Milton (org.). Gol de letra: o futebol na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Gol, 1967.p.16

[3] PEDROSA, Milton (org.). Gol de letra: o futebol na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Gol, 1967.p.12-13

[4] FRANCO JÚNIOR, Hilário. A dança dos deuses: futebol, sociedade, cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.p.395

[5] ELIAS, N & SCOTSON, J.L. Os estabelecidos e os Outsiders. Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro, 2000.

[6] HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.p.83

[7] PEDROSA, Milton (org.). Gol de letra: o futebol na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Gol, 967.p.30

[8] WISNIK, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.p.430

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Thiago Carlos Costa

Professor e Pesquisador. Doutorando em Estudos do Lazer (EEFFTO-UFMG), Mestre em Estudos Literários (UFMG), Graduado em História (PUC-MG).  Membro do Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagens e Artes (FULIA), da UFMG e também participa do Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT) da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional da UFMG.

Como citar

COSTA, Thiago Carlos. Milton Pedrosa e o Gol de letra: por uma historiografia literária do futebol brasileiro. Ludopédio, São Paulo, v. 75, n. 4, 2015.
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