Mulheres: o respeito por quem luta há mais de cem anos por um lugar na bancada
Durante esta Copa do Mundo, um dos fatos que chamou a atenção foi o assédio de torcedores direcionado às mulheres. Dois casos se tornaram bastante comentados. Um deles foi o da repórter Júlia Guimarães, da Rede Globo. Na manhã de domingo, 24 de junho, ela se preparava para uma chamada ao vivo da Rússia para o Programa Esporte Espetacular, quando um torcedor tentou beijá-la. Julia Guimarães ficou furiosa e, em inglês, falou assertivamente com o homem: “Não faça isso! Nunca mais faça isso de novo, ok? Não faça isso. Eu não permiti que você fizesse isso. Nunca. Ok? Isso não é educado, isso não é certo. Nunca faça isso. Nunca mais faça isso com uma mulher, ok? Respeito”.
O segundo caso, envolveu brasileiros que assediaram uma simpática russa que decidiu entrar na brincadeira dos brasileiros, e cantar uma música com eles fazendo alusão à cor da vagina da mulher. Os machões fizeram isso e, claro, mandaram para seus grupos de whatsapp para se vangloriarem de seus atos em terras russas. O vídeo viralizou e rapidamente um dos envolvidos foi identificado. Tratava-se de Diego Valença Jatobá, advogado, ex-secretário de Turismo, Cultura e Esportes da cidade de Ipojuca (PE), município de uma das praias mais famosas do Brasil: Porto de Galinhas. Jatobá, quando foi Secretário, foi acusado e condenado pelo Tribunal de Contas do Estado por celebrar 12 contratos para eventos culturais sem licitação e no valor de mais de R$ 2 milhões. Sua última filiação partidária: Democracia Cristã.
O tema do assédio sexual nos esportes há muito é discutido na academia norte-americana. Dou aqui dois bons exemplos de livros que abordam esta temática.
Michael Messner publicou em 2002 o livro Taking the Field: Women, men and sports. Messner aborda que a situação da mulher melhorou muito no esporte norte-americano desde a publicação do chamado Title IX (lei federal que proíbe a discriminação ou impedimento de acesso a programas esportivos financiados pelo governo por conta do sexo). No entanto, para este autor as atitudes fundamentais engendradas pelas instituições esportivas e pelos aparatos sociais que dão corpo ao esporte (os meios de comunicação, as corporações, as escolas e faculdades, os parques locais, os serviços de recreação, entre outros) continuam impregnados de uma heteronormatividade masculina. Além disso, aponta para um “complexo da mídia esportiva comercial” orientado fundamentalmente para esportes masculinos.
Já no livro Spoilsports: understanding and preventing sexual exploitation in sports, de Celia H. Brackenridge (2001), a autora mostra que a questão da exploração sexual e do assédio se tornaram um debate importante no contexto da publicação da obra, mas concentrando-se quase que exclusivamente em casos de pedofilia. Brackenridge mostra a grande dificuldade de obtenção de dados para estas pesquisas. Advoga uma abordagem qualitativa e fornece, ao mesmo tempo, ferramentas para uma pesquisa social do tema e um guia de políticas de prevenção.
Acredito que esta questão precisa começar a ser debatida com mais ênfase por parte de nós, pesquisadores e pesquisadoras. Aqui no Ludopédio há bons textos sobre a temática, como o de Aira Bonfim e Carolina Moraes, ou o de Bárbara Gonçalves Mendes. E o que dizer da excelente iniciativa que foi o 1o Encontro Nacional de Mulheres de Arquibancada, realizado em junho de 2017 no Museu do Futebol? 350 mulheres de mais de dez estados brasileiros e que pertencem a mais de 50 coletivos e torcidas, reunidas e levantando a bandeira: resistência e empoderamento.
Desde os primórdios do esporte brasileiro, as mulheres estão presentes no esporte, principalmente nas arquibancadas, foco desta coluna. No livro A Torcida Brasileira, Victor Andrade de Melo e eu abordamos um pouco desta presença feminina histórica nas arquibancadas. Victor abordou a questão na virada do XIX para o XX, com a presença das mulheres nas arquibancadas do turfe carioca. Eu, no segundo capítulo, tento mostrar toda a surpresa por parte dos homens cronistas esportivos e desenhistas das principais revistas brasileiras com a presença feminina nos estádios na primeira metade do século XX. Mas foram apenas aproximações. Nada mais do que isso.
Na Primeira República, Lima Barreto desancou as mulheres que falavam palavrões nas arquibancadas em artigos para a revista Careta: “Vejam como as ‘torcedoras’ dos grandes clubs usam um vocabulário viril, até o próprio calão, para animar os do seu partido ou desnortear o do adverso” (“Uma Conferência Sportiva”, Careta, 1 de janeiro de 1921, p.15).
J. Carlos, um dos principais chargistas do Brasil na Primeira República, publicou na mesma revista Careta inúmeros desenhos colocando as mulheres torcedoras como aquelas que “carregavam” os jogadores da seleção ao longo dos difíceis jogos do Sul-Americano de 1919. As torcedoras se contorciam nas arquibancadas e davam a J. Carlos todo o gestual que o mesmo precisava para seus desenhos.
Estamos longe de estudar em sua potencialidade este fenômeno. Nos últimos tempos, tenho me dedicado a estudar o turfe no século XIX e início do XX. E é claro que me deparo com crônicas da imprensa e outros documentos que fazem referência à mulher neste espaço. A participação de “joquetas” gaúchas, disputando provas com jockeys homens aparece vez ou outra. Muito mais referências se fazem em relação à presença feminina na arquibancada. Na maior parte das vezes (ou em todas as que eu tive contato) são fontes produzidas por homens e reforçam o estereótipo da beleza feminina (as mulheres “embelezam o ambiente”, “perfumam as arquibancadas”) ou atribuem à mulher um papel específico naquele ambiente: a de filha a ser apresentada a bons partidos para casamento.
Com o futebol, começam a aparecer crônicas de uma participação diferente. São as torcedoras, agitadas, falando os palavrões a que Lima Barreto se refere e se contorcendo nas arquibancadas como mostra J. Carlos. Subvertem qualquer possibilidade de ser apresentada como bom partido para um moço de família.
No entanto, uns dias atrás deparei-me com uma fonte inesperada. Uma crônica do jornal Opinião Pública, de Pelotas, publicada no dia 21 de março de 1908. O cronista anônimo contava um episódio envolvendo uma mulher que, sozinha, nas arquibancadas do Prado Menino Deus, em Porto Alegre, teve de enfrentar o assédio de dois homens. Não conto mais nada. Deixo a fonte falar. Mantenho até a escrita da época. 1908, pessoal. Viva a mulher na arquibancada! Ontem, hoje e sempre.
“Por occasião de corridas realizadas no Prado Menino Deus, deu-se, há dias, um interessante conflicto nas archibancadas da direita. Dois individuos, dados a conquistadores, metteram se a importunar uma mulher que assistia à diversão.
A mulher supportou as graçolas dos marmanjos até quando poude. Afinal, exgotando-se-lhe a paciencia, ella ferrou duas valentes bofetadas nos D. Juans. Estes tentaram reagir, mas, a mulher em questão, utilizando-se do guarda-chuva que trazia, fustigou-os tão de rijo que os dois conquistadores se viram obrigados a fugir.
A referida mulher ficou apenas com um pedaço do cabo do seu guarda-chuva, que se achou reduzido a frangalhos.
Quando ella, victoriosamente, desceu das archibancadas, o povo, que, em galhofa, assistiu a toda scena, abriu alas á sua passagem e lhe fez uma ovação de palmas e bravos” (Porto Alegre, 21 de março de 1908, p. 2).
*Dedico este texto a duas grandes amigas, as duas torcedoras mais vorazes que já conheci em uma arquibancada: Vanessa Amaral e Jess Cetinich.
*A imagem em destaque da coluna também é de J. Carlos, da revista Careta de 17 de maio de 1919, p. 8.