142.12

O jogo paralelo ao Mundial de Clubes – Quando as redes sociais usaram o jornalismo contra jornalistas

Buscamos, aqui, investigar a utilização, por sujeitos das redes sociais, de instrumentos, historicamente, associados ao jornalismo, para contraporem-se à narrativa dominante nos veículos tradicionais de imprensa. Recorreu-se ao estudo de caso da disputa na produção de sentidos da final do Mundial de Clubes 2019, entre Liverpool e Flamengo. Naquela ocasião, as redes sociais expuseram capas, matérias, vídeos e opiniões pretéritas de jornalistas e veículos de imprensa, para contestar, a partir de material produzido no passado pelos próprios veículos, a gramática que exaltava o clube carioca como detentor da “melhor exibição de um sul-americano contra um europeu”. Ou na jocosidade das torcidas, “o melhor vice-campeão”.

Mundial da FIFA
Taça do Mundial de Clubes na FIFA disputada entre Flamengo e Liverpool em 2019 no Catar. Foto: Twitter Liverpool/Fotos Públicas

Existem alternativas novas ao jornalismo?

O efeito disruptivo das novas tecnologias na maneira de as pessoas informaram-se levou muitos, dentro e fora do universo do jornalismo, a questionarem se essa prática social tornou-se obsoleta. Dominante durante cerca de cinco séculos, o jornalismo encontra-se acossado por razões de ordens tão distintas, como a insolvência do modelo de negócios sem que, até o momento, tenha surgido um novo formato de financiamento; a facilidade para produção de conteúdo a partir de equipamentos móveis; e o espraimento de fakes news. Este último, talvez, seja o principal competidor do jornalismo, por não apenas disputar financiamento digital, incluindo postagens caça cliques. Mas, também, por, ajudado pela formatação das bolhas nas redes sociais, produzir informações e visões de mundo que, por mais que soem disparatadas aos não nativos daqueles universos, são sancionadas por milhares e até milhões de sujeitos.

No entanto, embora todos esses fatores tenham contribuído para revirar o jornalismo de ponta-cabeça, nenhum, até o momento, foi capaz de forjar uma prática social que, para além da miríade de bolhas, seja amplamente aceito socialmente como seu substituto no papel de informar e ordenar os sentidos dos sujeitos. Por seu caráter fragmentário e prenhe de possibilidades, inexiste, ao menos até aqui, uma visão totalizante sobre as múltiplas formas de comunicação que circulam pelo universo digital. Assim, não deixa de ser uma contradição curiosa que muitas das práticas surgidas nas redes sociais que buscam suplantar e substituir o jornalismo recorram a aspectos da gramática deste para obterem – ou reforçarem – maior legitimação, e aval do público.

Com experiências mais ou menos bem-sucedidas, em termos de fidelização e amplitude de audiência, mesmo os canais que, mais recorrentemente, produzem fakes news têm o cuidado de buscar algum verniz no modelo jornalístico. Provavelmente, não por coincidência, muitos dos produtores e replicadores de notícias falsas adotam em suas nomeações ao menos alguma palavra historicamente associada a veículos de imprensa, como “Correio”, “Diário”, “Folha”, “Gazeta” e “Jornal”.

Além de recorrerem a nomeações jornalísticas, os responsáveis por esse tipo de publicação buscam legimitar seus discursos tentando associar-se a veículos tradicionais. São recorrentes chamadas como “Foi publicado no Globo!”; “Olha o que a Folha não publicou!”. Tais estratégias revelam que, além de a memória do jornalismo e de seus agentes permanecer relevante para parcelas importantes do público, o novo “modelo”, ainda, não conseguiu forjar um paradigma com procedimentos suficientemente distintos. Ainda que, recorrentemente, substituam informação por opinião nas “matérias”, seus autores parecem considerar que a segunda produz maior efeito quando associada à primeira. Ou, ao menos, contenha camadas da outra.

Ao adotarem roupagem jornalística, tais discursos, tenham como plataformas sites na internet, sejam replicados em aplicativos de mensagens, têm maior possibilidade de seduzir e confundir parcelas do público. A gramática das fake news, no entanto, também deixa pistas sobre sua origem, justamente pela contradição de misturar procedimentos jornalísticos com práticas antijornalísticas, como publicar, predominantemente, matérias não assinadas – dificultando, portanto, a localização do seu autor – e rechear as “notícias” com uma plêiade de opiniões atribuídas a autores também não identificados ou identificáveis. Mais importante: tais “notícias”, dificilmente, têm o contexto – o famoso quem fez, o quê, quando, onde, por quê – o que torna a subjetividade especulativa seu principal paradigma.
Tais pontas soltas permitem aos que dominam o discursos jornalístico identificar e/ou denunciar esses textos como não jornalísticos, embora possa-se questionar a eficácia e/ou o alcance efetivo dessa denúncia sobre os não iniciados ou os propensos a acreditarem em textos que reforçam as próprias crenças. Além disso, como dito, o universo digital é prenhe de uma miríade de possibilidades discursivas, das quais as fakes news, embora representativas de um segmento numeroso, estão longe de darem conta de todas elas.

Memes e lacrações são apenas duas das muitas outras facetas da fragmentada gramática virtual. Tanto fake news quanto as outras formas discursivas mencionadas distinguem-se da gramática jornalística, principalmente, por aquela que é considerada a pedra angular desta prática social: a objetividade, reivindicada por esse universo como principal fator distintivo em relação ao discurso não jornalístico.

Por isso, chama-se a atenção, aqui, para uma outra curiosidade: o que pode acontecer quando sujeitos, a partir dos territórios das redes sociais, recorrem a práticas jornalísticas visando a contraporem-se à narrativa da imprensa tradicional? Mais ainda: e quando utilizam tais procedimentos com o objetivo de desconstruir a objetividade reivindicada por jornalismo e jornalistas, situando-os, também, no campo da subjetividade, ainda que de forma distinta das apontadas acima?

Flamengo Mundial
Foto: Alexandre Vidal/Flamengo/Fotos Públicas

Jornalismo ou jocosidade jornalística?

É o que se busca demonstrar pelo estudo de caso da disputa de narrativas entre integrantes de redes sociais e setores da imprensa tradicional brasileira na cobertura da final do Mundial Interclubes de 2019, entre Liverpool e Flamengo. Para balizar o que, aqui, entende-se como prática jornalística tem-se como referência os cinco procedimentos estratégicos que servem à busca pela objetividade na profissão: o ouvir os dois lados; a técnica do lead; o recurso a provas auxiliares; o uso de aspas e a separação de fatos e opinião, o que reforçaria o caráter objetivo e neutro da primeira em contraponto à subjetividade e à editorialização da segunda (TUCHMAN, 1993).
Surgidos nos Estados Unidos, na segunda metade do século XIX e replicados em países ocidentais, tais procedimentos são acionados, e reivindicados, pelo jornalismo e pelos jornalistas, em contraponto ao subjetivismo explícito, identificado por esse universo como uma prática não profissional. Foi a esses itens constitutivos do paradigma jornalístico a que recorreram alguns sujeitos das redes sociais.

Nessa empreitada, para colocar a cobertura em perspectiva, eventualmente, foi necessário que recuassem no tempo, para tentar mostrar como, já na cobertura da conquista da Libertadores de 2019, havia fortes constrastes com a gramática dedicada, por exemplo, ao título do mesmo torneio obtido pelo Vasco, em 1998. Assim, por exemplo, em 23 de julho daquele ano, o jornal O Globo anunciava, sem qualquer ilustração, numa discreta coluna de rodapé de página: “Vasco está na final da Taça Libertadores”.

O mesmo jornal, 21 anos depois, manchetou, em cinco colunas: “Goleada histórica põe Fla na final da Libertadores”. A matéria era acompanhada por uma foto, em quatro colunas, do Gabigol celebrando um dos dois gols que marcara na vitória de 5 x 0 sobre o Grêmio. No caso do Vasco, a classificação para a final veio após empatar, na Argentina, em 1 x 1, com o River Plate, a quem vencera por 2 x 1, em São Januário.

Vasco x Fla - Vices no Mundial

O tratamento distinto provoca maior estranheza por tratar-se de dois times do Rio, mesma praça do jornal responsável pelos dois títulos. Então, qual seria a justificativa objetiva para dois tipos de abordagem em relação ao mesmo tema envolvendo dois atores diferentes? Talvez, possa argumentar-se que, por tratarem de um tema mais leve, editorias de esportes estejam autorizadas, ainda que implicitamente, a não seguirem os mesmos rigores da objetividade exigidos em outras seções. Tal “licenciosidade”, quem sabe, possa ser reforçada pelo senso comum de que “todo brasileiro gosta de futebol”, o que ajudaria o jornalista a expor suas opiniões sobre o tema, sem necessidade de escudar-se na objetividade (SOUTO, 2007).

No entanto, tanto os interesses econômicos movimentados pelo futebol que, apenas ano passado, somou R$ 52,9 bilhões, equivalentes a 0,72% do produto interno bruto (PIB) do Brasil, quanto o forte investimento afetivo de milhões de brasileiros em seus clubes – este um valor imensurável – parece sinalizar em outra direção. Em lugar de uma exceção na engrenagem da objetividade jornalística, talvez, as seções de esporte devam ser encaradas como um locus privilegiado para fornecer uma visão mais transparente do processo que, em outras editorias, é mais velado.

Entendida a questão a partir dessa abordagem, a argumentação do principal jornal do Rio de Janeiro para justificar tratamento tão assimétrico para dois clubes da mesma cidade em que tem sede parece dar razão à percepção dos internautas que postaram as duas capas de que outras razões, que não a objetividade, informariam as decisões editoriais do veículo. Exemplos equivalentes repetiram-se em profusão nas redes sociais, antes e, principalmente, após a vitória do Liverpool, nos convocando a tentar localizar quais seriam tais razões.

Um dos exemplos que parecem colocar em xeque a objetividade jornalística comparava a exaltação “ao melhor vice-campeão sul-americano contra um europeu” ao tratamento desdenhoso destinado ao Vasco, quando derrotado pelo Real Madri, em 1998. Naquela ocasião, o jornal “Extra”, também do Grupo Globo, titulou: “Flamengo em festa com o vice do Vasco”. Vinte e um anos depois, o mesmo veículo tinha entendimento bem distinto sobre que tipo de sentimento deveria corresponder ao segundo lugar: “Orgulho do tamanho do mundo”.

No primeiro caso, além de introduzir a comemoração do rival no título, a matéria era ilustrada pela foto de um jogador do Vasco com as mãos na cabeça, numa expressão associada a dor. Ou seja, não apenas a nomeação parecia rebaixar o vice-campeonato vascaíno. No segundo, uma fotografia exibia atletas do Flamengo – ainda que com ar abatido – aplaudindo a própria atuação e a torcida. Como é pouco provável que os rivais estivessem tristes com a derrota rubro-negra, os editores do jornal, dificilmente, poderiam escudarem-se na objetividade para justificar a ausência da jocosidade clubística – presente na profusão de memes que deram vazão à gozação dos adversários – que abrigara no outro caso.

E, como recorda a edição dos melhores momentos encontráveis na internet, o time de São Januário fez um jogo muito mais parelho – para muitos, superior – com o rival espanhol, como mostram as inúmeras chances claras de gol. Já o goleiro do Liverpool, Alisson, fez uma solitária defesa ao longo dos 120 minutos, entre o tempo regulamentar e a prorrogação.

Além disso, como se sabe, a distribuição de matérias em espaços acima ou abaixo de uma página representam a hierarquização da importância da notícia por cada veículo. Ao vice-campeonato do Vasco foi destinada a metade de baixo do jornal. Como muitas bancas – plataforma, então, relevante de vendas para um jornal popular com baixo número de assinaturas como o “Extra” – costumavam, por questão de espaço físico, expor os periódicos dobrados, isso significa que muitos leitores sequer tomaram conhecimento do segundo lugar, que, na nova gramática do jornalismo, deixa de ser “pior do que do que o último”.

Uma curiosidade particularmente reveladora e emblemática é que, quando da final vascaína, o “Extra”, criado em março daquele ano, tinha pouco mais de seis meses de existência, e lutava para se firmar contra “O Dia”, então dominante no segmento popular. Tal condição, talvez, pudesse ser um estímulo a mais para o jornal “vestir a camisa do time que era o Rio no Mundial”, como costuma acontecer com veículos de outros estados. Mais adiante, questionaremos essa metonímia, bem como veremos que o jornal parece ter feito a opção de agradar a outro tipo de público que não os torcedores do clube na final.

Obviamente, não se ignora que, como regra, a contranarrativa das mídias sociais no caso aqui examinado tem em seu DNA a paixão clubística, como mostra a sua forte viralização por torcedores não rubro-negros. Ela distingue-se, porém, da interminável partida da jocosidade entre as torcidas, também fortemente presente do lado dos torcedores do Flamengo – neste caso, brincando com a clara superioridade em relação aos concorrentes exibida pelo clube ao longo de 2019.

No entanto, diferentemente dessa, cujo principal combustível é a paixão clubística e não tem qualquer compromisso com fatos, apuração, contradições, contexto, as críticas baseadas na gramática jornalística deixam o jornalismo esportivo numa posição incômoda. Ao compararem – e comprovarem – como os mesmos veículos e seus profissionais agem de formas assimétricas diante de fatos semelhantes quando vivenciados por atores diferentes, elas expõem uma subjetividade que, ao menos em tese, deveria limitar-se ao universo descompromissado dos torcedores, em contraponto à objetividade reivindicada pelo jornalismo.

Outras matérias contribuíram para consolidar o entendimento das vozes que questionaram tal assimetria, como a manchete de O Globo: SONHO DO BI ADIADO – EM PARTIDA EQUILIBRADA, FLA PERDE MUNDIAL DE CLUBES PARA LIVERPOOL NA PRORROGAÇÃO. O mesmo jornal, quando do vice do Vasco para o Real Madri, titulara, em 2 de dezembro de 1998: Uma derrota para esquecer no ano do centenário, seguida do soutien: Vasco perde para o Real Madri em Tóquio e a festa é de Sávio, Roberto Carlos e dos rubro-negros. Afinal, para o jornal, derrotas são para serem comemoradas ou para serem esquecidas? O vice-campeonato é apenas o adiamento de um sonho ou um fato que se encerra em si mesmo? Quando o adversário perde é sempre essencial ou não destacar a alegria dos rivais?

Tais questionamentos, implícitos, nas críticas e nos contrapontos dos internautas não se limitaram aos veículos do Grupo Globo. Em junho de 2019, quando o Corinthians foi eliminado pelo Flamengo, nas quartas de final da Copa do Brasil, também por 1 x 0, o portal Terra, de raízes paulistas, exaltou a atuação do time do Parque Antártica, apesar da derrota: “O dia em que o Corinthians ganhou sem ter vencido. No jogaço contra o Flamengo, Timão lava a alma da torcida e traz esperanças de dias melhores.” No Twitter, Mauro Cezar Pereira, então na ESPN Brasil, reproduziu o tweet do Terra, mas encabeçado pela crítica: “Glamourização da derrota.”

O mesmo jornalista, no entanto, tuitou sobre a derrota do Flamengo para o Liverpool: “Grande partida do Flamengo, com coragem, com a bola e, enquanto tinha gás, chegou a dominar a partida contra um campeão europeu com força máxima.” E decretou: “Vitória justa do Liverpool, atuação digna do Flamengo. Orgulhoso deve ficar o torcedor.” O tweet foi amplamente replicado nas redes sociais, indexado à observação crítica anterior de Pereira sobre o Corinthians: “A glamourização da derrota.”

Também a Fox, que chegou a narrar a decolagem do avião da delegação do Flamengo rumo ao Catar, como se simulasse um gol (https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2019/12/13/fox-poe-vinheta-de-gol-e-hino-do-fla-em-decolagem-e-divide-reacoes-na-web.htm), enquanto despertou admiração dos torcedores do clube, que viram no procedimento um sinal de prestígio ao rubro-negro, foi alvo de cobranças por não ter adotado a mesma prática em relação a outros clubes brasileiros também finalistas do Mundial: “Kkkkkkk que coisa patética. Não vi isso com Corinthians, Santos, Grêmio, Galo, Inter… Times que foram recentemente…”, cobrou um internauta na enxurrada de comentários que se seguiram à matéria do UOL sobre a emissora. “Que vergonha alheia o Fox Sports colocar um narrador para narrar a decolagem do avião que leva a delegação do Flamengo ao Quatar (sic.)…”, ironizou outro perfil.

Ainda que seja, mais uma vez, indispensável tributar à tradicional jocosidade das torcidas grande parte das reações antagônicas à atitude da Fox, isso não anula o fato de que, no centro das críticas dos torcedores de outros times, encontra-se, implícita, a cobrança pela objetividade reivindicada pelo universo do jornalismo.

A eloquência e a estridência das cobranças da internet, mas, talvez, principalmente, a essência da crítica colocar em questão paradigma tão caro ao universo jornalístico acabou reverberando em programas como o “Redação Sportv”, dirigido pelo jornalista Marcelo Barreto. Outro jornalista, André Risek, que comanda o “Seleção Sportv” – umas das principais mesas esportivas da emissora – foi ao Twitter chamar a atenção sobre a contradição exposta pelo programa, e protestou: “É ultrajante a diferença no tratamento dispensado aos dois clubes, em situações muitos parecidas.”

Paulista radicado há alguns anos no Rio, Risek, já manifestara, em outras ocasiões, seu descontamento com o que considera uma forte distinção no tratamento da imprensa carioca ao Flamengo em relação aos outros três times grandes do Rio: Botafogo, Fluminense e Vasco: “Tem a cultura que o Flamengo tem de ser soberano. Para o Flamengo ser soberano, tem de ridicularizar os outros. Os feitos dos outros são menos comemorados, são menos vibrados, menos enaltecidos”, afirmou em áudio que circula pela internet.

Apesar do papel relevante que ocupa no jornalismo esportivo do Rio, ele, no entanto, parece ser voz quase isolada, entre seus pares, no questionamento a tal comportamento. Tal percepção parece ser corroborada pelo constrangimento exibido pelos jornalistas que debateram o tema – escolhido pelos telespectadores via internet – “1998 x 2019 – Dois pesos duas medidas? Vascaínos questionam tratamento diferente em capas 21 anos depois”. Os participantes do programa – além de Barreto, os jornalistas Aydano André Motta e Pedro Moreno – tentaram contextualizar as coberturas assimétricas, para enquadrar os questionamentos dos internautas numa perspectiva mais ampla no tempo e no espaço.

Ao introduzir o debate, Barreto observou que “os anos 90 eram mais provocativos”, numa referência ao comportamento de alguns jogadores daquela época em relação aos adversários. O próprio jornalista ressalvou, no entanto, que o tema em debate não eram as provocações dos atletas, mas o comportamento da imprensa. E exibiu postagens, no Twitter, do atual editor do “Extra”, Thales Machado, que, em defesa do jornal, argumentava não ser a primeira vez que este dava “manchetes positivas” para times eliminados:

“Para quem reclama que a imprensa exalta o vice do Flamengo, uma pesquisa histórica. Há derrotas e derrotas e algumas merecem o tratamento adequado de contexto ao perdedor: “Claro, não são todas”, ressalva Machado. E cita, aparentemente, colocando todas no mesmo patamar de reconhecimento do jornal: Botafogo, em 2017, Fluminense, em 2008 e Flamengo em 2019, mencionando três títulos do jornal que se enquadrariam nessa concepção, bem como uma em que o Flamengo era estigmatizado.

Torcida Flamengo
Foto: Alexandre Vidal/Flamengo/Fotos Públicas

Capa x territórios ocultos

A primeira manchete citada foi “Foste herói em cada jogo”, referente à eliminação do Botafogo, nas quartas de final da Copa Libertadores em 2017, ao ser derrotado pelo Grêmio por 1 x 0, na casa do rival, após empate em 0 x 0, no Rio. Barreto acrescentou, porém, que o título não fora a manchete da capa do jornal, mas do “Jogo Extra”, o suplemento de esporte do periódico. Já a “Deu LDU. Injusto castigo”, sobre o vice-campeonato do Fluminense na Libertadores, em 2008, ao ser derrotado na disputa por pênaltis pela equipe equatoriana , foi destinado espaço ainda menos nobre: o de manchete interna de uma das páginas do caderno de esportes.

Na mesma linha, de reconhecimento aos derrotados pelo jornalismo esportivo, Barreto exibiu o título de uma das páginas do caderno de esportes de “O Globo”, sobre o vice vascaíno de 1998: “Categoria do Real Madri supera coragem do Vasco”: “Mostrando que, nas páginas internas, o título foi mais respeitoso e fazia referência apenas ao Vasco”, observou, num comparativo com a manchete do mesmo dia: Uma derrota para esquecer no ano do centenário – Vasco perde para o Real Madri em Tóquio e a festa é de Sávio, Roberto Carlos e dos rubro-negros.

Com ambas também restritas ao caderno de esportes do “Extra”, o programa revisitou duas outras manchetes em que o veículo incorporava expressões irônicas das arquibancadas rivais em relação ao Flamengo: “Mesmo patamar”. Assim, distante da manchete da primeira página, o veículo referiu-se à derrota para o Liverpool, acompanhada de uma foto que mostrava Gabigol com as duas mãos à cabeça, num signo associado ao desespero.

Outra manchete do mesmo caderno que mostraria que o jornal também fora “jocoso com o Flamengo” – na expressão de um dos participantes – exibia a foto do atacante Paquetá abaixado, com ar abatido, junto à bandeira de escanteio encabeçada pelo título “Vice. De novo”, após o clube perder o título da Sul-Americana 2018, para o argentino Independiente, na disputa de pênaltis, num Maracanã lotado.

A argumentação de que uma abordagem mais holística comprovaria uma cobertura mais equilibrada do jornal enfrentou, porém, uma limitação ligada à hierarquização editorial: nenhum das capas e/ou dos títulos mobilizados por Machado ou pelo programa foram lidos pelos leitores que se limitaram à primeira página do jornal. Se na era pré-digital, a forma de distribuição das matérias, acompanhadas ou não de ilustrações, o tamanho dos títulos e o número de colunas, entre outros procedimentos do processo jornalismo, indicavam como os veículos hierarquizavam a importância de cada tema, bem como o tipo de tratamento e ênfase dados, em tempos de internet, a primeira página passa a ser, praticamente, o único espaço acessado pelos leitores. Em não raros casos, esse território restringe-se à manchete ou a alguns títulos da homepage.

Como observa a teoria construcionista (TUCHMAN, 1993), jornalistas atuam como gatekeepers, que, ao abrirem as portas a determinadas abordagens, temas e protagonismos, abandonam outras possibilidades, que passam a serem invisibilizadas aos olhos da maior parte do público. Num jornal voltado para o público popular e que, como enfatizado no próprio programa, não vive de assinaturas, dependendo fundamentalmente do interesse despertado por suas manchetes, essa é uma diferença seminal.

A comparação parece fortalecer a percepção de que a primeira página do “Extra”, de acordo com o próprio levantamento do seu editor atual, não se apresenta como espaço para o reconhecimento aos times eliminados ou vice-campeões. Quando entende haver necessidade de “tratamento adequado de contexto ao perdedor”, o jornal confina-o ao caderno de esporte, eventualmente à primeira página deste ou, ainda, as suas páginas internas. A única exceção, ao menos entre todos os títulos exibidos, foi reservada ao vice no Mundial do Flamengo, clube ao qual eventuais jocosidades foram endereçadas às páginas internas do jornal, território quase deserto de leitores em tempos de leituras aligeiradas da internet.

Tal assimetria foi apontada pelos internautas – e a resposta deles ao programa registrada por Barreto: “Nem todas essas capas foram parar na primeira página do jornal. Pois a comparação que está sendo feita é da capa do ‘Extra’ de 98 com a capa do ‘Extra’ de 2009”, ressalvou. Na verdade, como visto, nenhuma delas logrou alcançar esse espaço nobre, segundo o material exibido pelo próprio Redação SporTV. O comandante do programa lembrou, ainda, a existência de “uma dificuldade adicional”, ser a primeira vez que uma cidade brasileira tem dois times vice-campeões.

Diante de tais questões, Aydano André Motta atribuiu opções tão distintas a decisões individuais: “Jornalismo não tem certo, errado. Tem a convicção dos jornalistas que fazem os trabalhos.” E propôs uma revisão histórica: “Eu, se fosse editor da primeira página do ‘Extra’ no dia seguinte ao vice-campeonato mundial do Vasco, eu não daria uma manchete como esta. Escolheria destacar o Vasco, a luta do Vasco, o equilíbrio do jogo mais do que a festa do Flamengo.”, acrescentando que o time de São Januário “quase ganhou” do Real Madri.

O outro integrante da mesa, jornalista Pedro Moreno argumentou tratar-se de contextos diferentes: “A gente está separado por 21 anos, são contextos absolutamente diferentes, pessoas (NA: jornalistas) diferentes, formas diferentes de fazer jornalismo. Hoje, o jornalismo está impregnado de várias outras novidades, como as redes sociais, mas eu concordo, eu também não teria utilizado dessa forma.” E aduziu: “Acho até que o Vasco esteve mais perto da vitória nesse jogo do que o Flamengo no sábado agora.” Conclusão que obteve a concordância de Motta: “Sim, sem dúvida. Acho até que o Vasco esteve mais perto da vitória do que o Flamengo.”

As explicações, no entanto, não pareceram convencer os internautas sobre o exercício da objetividade pelos veículos, o que levou Barreto a levantar a hipótese de que as cobranças seriam por “uma coerência absoluta”: “A obrigação do ‘Extra’ e do ‘Globo’ não seria também dar uma capa negativa para o Flamengo, porque há 21 anos foi dada uma capa negativa para o Vasco?” Mas levantou uma segunda hipótese: “O certo é tratar um clube, seja ele qual for, como o Flamengo foi tratado, e não como o Vasco foi tratado? Que o erro seja o passado, e não o presente?”

Mais do que divulgadores de fatos e ordenadores de sentidos, os jornais são senhores da memória, que fixam uma determinada memória como um documento histórico. Ao exigir “uma coerência absoluta” – ou seria objetividade jornalística? – o tribunal da internet parece colocar em questão esse poder absoluto da imprensa, bem como o paradigma no qual essa diz basear-se. Nesse contexto, será que a argumentação de que caberia ao jornal incentivar o clube que “era o Rio no Mundial” deveria soar mais sedutora para um veículo como o “Extra”, pela circunstância de ainda buscar firmar-se na briga pelo público popular com “O Dia”? Voltaremos a tal ponto mais adiante, ao tratarmos de uma especulação de Motta sobre as razões da jocosidade com o Vasco.

Ao analisar-se o papel da imprensa trabalha-se com a concepção de que ela exerce o papel de guardiã de determinada “tradição”, atuando como construtora da memória de determinada época, num processo de permanente reelaboração. É importante registrar que a trajetória do futebol, dos clubes e dos ídolos, ao longo dos anos, é, em grande medida, forjada, e eternizada, pela imprensa. Esse processo dá-se, ora pelo silêncio, ora pela lembrança de determinados fatos e acontecimentos, que vão sendo construídos, em sintonia com uma visão de mundo num processo não estático e dialético. Tanto o esquecimento, quanto a lembrança, bem como a forma como dá-se a lembrança, são construções que ajudam a referendar o poder simbólico e real da imprensa na sociedade. (SOUTO, 2007).

No jogo da jocosidade das arquibancadas, torcedores rivais – e não apenas rubro-negros – costumam associar o Vasco à pecha de vice, na concepção mais tradicional no Brasil, do “último dos últimos”, e, não – como em outras culturas – o segundo melhor. Ora, tal associação foi, em grande parte institucionalizada, ao ser referendada pelo jornalismo esportivo, do que são testemunhas as manchetes de “O Globo” e o “Extra”, ainda que levantamento dos vascaínos tenha apontado que o Flamengo tinha mais vices do que o clube de São Januário .

Dessa forma, o desdenhar o vice do Vasco e exaltar o mesmo feito quando obtido pelo Flamengo não pode ser resumido apenas ao “longo intervalo” ou à mera decisão individual dos jornalistas que “fazem o trabalho naquele momento”. Mas, sim, é provável que a pressão das mídias sociais, ao questionarem a objetividade jornalística, tenha, agora, estimulado críticas ao tratamento dado ao cruzmaltino, mas não, ainda, o reconhecimento das assimetrias.

A apresentação dos dois lados em um determinado conflito é um dos principais mitos fundadores da objetividade. Como, em geral, uma acusação é mais noticiável do que um desmentido – equação reificada por quase todo jornalista – a acusação é transformada em lead. Este, no entanto, em grande medida, é considerado fruto do news judgement (perspicácia profissional). Desse modo, ainda que ambos sustentem basearem-se na busca da objetividade, dois jornalistas podem produzir leads diferentes para uma mesma matéria, o que exporia uma fissura subjetiva naquele paradigma.

A solução para reduzir esse risco e garantir a homogenização no tratamento de assuntos está nas políticas editoriais das empresas, que ajudam a reforçar o controle profissional dos jornais sobre os jornalistas (SOLOSKI, 1993). Para ser mais eficiente, porém, a política editorial deve estar articulada com o profissionalismo exigido dos jornalistas. Para Soloski, tal método é mais eficiente e econômico para controlar os jornalistas, do que a censura explícita, por esta contrariar o profissionalismo.

Ele sustenta tal argumento defendendo que a outra alternativa para manter o controle sobre o trabalho dos profissionais, o estabelecimento de regras e comportamentos, além de burocrática, não daria conta de todas as situações. Esbarraria ainda em dois obstáculos importantes: limitaria a capacidade do jornalista para tratar do inesperado – fatal num setor que lida com uma realidade dinâmica – e no tempo gasto para socializar os jornalistas. Entendido aqui como profissionalismo o estabelecimento de normas e padrões – formato mais flexível do que o de regras gerais – e a institucionalização de sistemas de recompensa profissional, vital numa instituição piramidal como a imprensa.

Criticado no Twitter por internautas que acompanhavam o programa, Motta deu uma pista sobre as razões do “Extra” para desdenhar o vice vascaíno e associá-lo “à festa na Gávea”: “Eu não faria essa manchete, ainda que exista uma explicação de mercado sobre para quem compraria o ‘Extra’ no dia seguinte da derrota do Vasco. Os vascaínos?” Como o mesmo raciocínio sobre o público-alvo não foi aplicado “a quem compraria” o mesmo jornal no dia seguinte à derrota do Flamengo, temos um impasse na forma como jornalistas lidam com a objetividade.
Dessa forma, a explicação que justificaria os tratamentos assimétricos não estaria, então, nas hipóteses levantadas no programa, como “a distância de 21 anos”, “as mudanças das pessoas que fazem o jornal” e “as mídias sociais”, mas, sim, nos sujeitos a quem o “Extra” dirige-se, seja quando o Vasco é vice ou o Flamengo é vice?

Um contraponto aos veículos mencionados pode ser lido como exemplo de jocosidade iconoclasta na manchete de primeira página do jornal “Meia Hora”, no dia seguinte à final do Mundial 2019: “Fla: “O sonho acabou – já dizia Jonh Lennon”, encabeçada por uma ilustração do doce do mesmo nome sobre a foto dos jogadores rubro-negros após a partida. Fundado em 2005, o veículo ainda não existia quando do vice-campeonato do Vasco, mas, por mais de uma vez, referiu-se jocosamente, sempre na sua capa, a este time, bem como a Botafogo, Fluminense e Flamengo, em momentos de insucessos desses clubes.

Liverpool Mundial
Foto: Liverpool/Fotos Públicas

Conclusão

Embora reconheça-se a potência das jocosidades entre as torcidas e quanto esse tipo de jogo paralelo às partidas do gramado informa sobre padrões de comportamento da nossa sociedade, o foco deste trabalho concentrou-se em outro ponto: por que, em tempos em que se prega o fim do jornalismo, sujeitos das redes sociais resolvem recorrer, no embate com representantes daquele campo, justamente a procedimentos seminais daquela prática social? As contradições expostas, que apontam fissuras na objetividade, também ganham relevo por não se limitarem às seções de esporte.

Analogias entre as preferências esportivas exibidas nelas podem ser encontráveis, por exemplo, nas editorias de política e economia, sinalizando que, mesmo que os interesses editoriais possam ser mais explicitados na primeira, também devem comparecer nas outras duas, ainda que de formas menos identificáveis pelo público não nativo desses temas. Tais interesses estão presentes no tratamento distito destinado a políticos e partidos em temas equivalentes. Como exemplo pouco sutil: durante muito tempo a gramática jornalística dominante conjugava na mesma editoria o mensalão do PT x o mensalão mineiro – enquanto este último também envolvesse um partido, o PSDB, e não um fenômeno partidário típico de um estado.

Assimetria equivalente manifestou-se nas páginas de economia na cobertura sobre as mudanças demandadas para a Previdência, que tiveram na imprensa seu vocalizador mais estridente e catequisador. No vasto espaço destinado ao tema, o “Jornal Nacional”, principal telejornal do país, não ouviu um só argumento contrário à redução dos direitos à aposentadoria. Ou seja, o famoso ouvir os dois lados, um dos principais procedimentos estratégicos da objetividade jornalística. (TUCHMAN, 1993).

Muito mais do que um embate sobre a cobertura assimétrica do mesmo acontecimento quando envolve times/sujeitos diferentes, a abordagem do objeto revela pistas significativas para que sejam ampliados, e estendidos, os questionamentos à proclamada neutralidade/objetividade jornalística. E, o que parece mais emblemático: recorrendo aos próprios procedimentos que informam a gramática jornalística, o que, também, sinaliza que, embora acossada, essa prática social (ainda) não foi superada, ou ao menos substituída, por um novo paradigma que logre a autoridade de que desfrutou por cerca de cinco séculos.

 

Referências bibliográficas

GAYE, Tuchman. “A objectividade como ritual estratégico: uma análise das noções de objectividade dos jornalistas”. In: TRAQUINA, Nelson (org.). Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. Lisboa: Vega, 1993.

SOLOSKI, John. “O jornalismo e o profissionalismo: alguns constrangimentos no trabalho jornalóstico”. In: TRAQUINA, Nelson (org.). Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. Lisboa: Vega, 1993.

SOUTO, Sérgio Montero. Colunistas em campo pela tradição: as memóriass da seleção brasileira na Copa de 2007. In: RIBEIRO; FERREIRA. Mídia e memória: a produção de sentidos nos meios de comunicação. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007.

Sites

Extra

Globo

Globoesporte.globo.com

UOL

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Sérgio Montero Souto

Mestre e Doutor em Comunicação pela UFF; professor da Faculdade de Comunicação da Uerj; autor de Os três tempos do jogo - Anonimato, fama e ostracismo no futebol brasileiro (Graphia)

Como citar

SOUTO, Sérgio Montero. O jogo paralelo ao Mundial de Clubes – Quando as redes sociais usaram o jornalismo contra jornalistas. Ludopédio, São Paulo, v. 142, n. 12, 2021.
Leia também:
  • 178.20

    Groundhopping, colecionando ambiências de estádios de futebol

    Natália Rodrigues de Melo
  • 178.19

    Atlético Goianiense e Vila Nova – Decisões entre clubes de origem comunitária

    Paulo Winicius Teixeira de Paula
  • 178.17

    Onde estão os negros no futebol brasileiro?

    Ana Beatriz Santos da Silva