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“Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar”: viver não é preciso, surfar também não

Fidel Machado 17 de julho de 2021

Antes de qualquer argumento aqui exposto, afirmo que sou um admirador de manobras agressivas, do high score, da performance e instigo-me com a pressão dos drops e das cavadas, vibro com manobras na parte crítica da onda e tento, de forma amadoramente iniciante, aprender a manobrar. Todavia, o que aqui tentarei expressar, visa questionar a tentativa do controle ordinário, do apreço ao mensurável e da racionalização extremada da prática em detrimento da imprevisibilidade do surf e da sua dimensão extra-ordinária.

Acompanhei a última etapa do campeonato mundial de surf assiduamente. Nutro uma relação ambígua, conflituosa e paradoxal com o evento na piscina de ondas. O texto que se segue já havia sido escrito na inauguração do Surf Ranch. Após uma releitura, mudei alguns elementos, endossei outros e resolvi compartilhar.

Sediada não mais em uma praia como convencionalmente o é. A etapa se deu no Surf Ranch. Local idealizado e materializado pelo genial surfista Kelly Slater e a sua equipe. Em que pese todo o lado de possibilitar a prática para um número maior de pessoas; poder levar o surf para locais geograficamente desprivilegiados e buscar uma certa equanimidade na competição, temos que tal movimento pode incorrer no risco de reduzirmos e simplificarmos o surf no que diz respeito a algumas características que aqui adjetivo como preciosas para a prática. A saber, o dado do imprevisível e do imponderável. Não serei leviano, na piscina tais atributos também ocorrem. Contudo, não me refiro, especificamente ao resultado… sigamos.

Surf Ranch Pro
Surf Ranch Pro. Foto: Dennis A. Amith/Flickr

A onda no Surf Ranch é produzida por uma locomotiva que mobiliza uma quantidade absurda de água pelo seno do cateto ao quadrado, multiplicado pela hipotenusa e dividida pela massa vezes a aceleração. A proposta é incrível e, como já anunciei, genial. A onda, certamente, é uma coisa de louco com sessões tubulares e outras mais manobráveis. A primeira para a direita, a segunda para a esquerda. Contudo, tais pressupostos caminham paralelamente com uma vontade de poder exasperada do ser humano de reproduzir a vida e controlar a natureza.

Tenho um certo apreço à presença impertinente do surfista na cidade com suas pranchas em dias úteis (o próprio conceito de útil aqui pode adquirir uma outra dimensão se pensada sob a ótica do surf), em plena segunda-feira antes de ir ao trabalho ou em alguma possível janela que apareça no decorrer do dia. Vejo tal comportamento como uma afronta às demandas urgentes do cotidiano, ao ritmo megalomaníaco que impele um preciosismo do ocupado dada a velocidade e acúmulo de afazeres. Obviamente, compreendo que o surfista profissional e o free surfer talvez estabeleçam uma outra relação com a prática dada a elasticidade semântica e os efeitos de apropriação, como bem nos lembra Pierre Bourdieu. Todavia, o argumento aqui exposto não se dá, restritamente, nessa direção, mas tenta problematizar a circunscrição e até a ampliação da burocratização da prática. A areia pode virar arquibancada e o mar já virou piscina.

 A relação que se estabelece com a praia, o contato com o mar, o encontro, a abertura ao acaso, o conflito com as frustrações, os erros dada a característica inconstante do mar. O tato com a natureza, a intensidade da onda, extensão, a forma e o formato. O posicionamento no outside, a espera, a ansiedade e, sobretudo, a relação com a vontade própria da natureza. Talvez, nessa minha visão com tendência ao preciosismo, resida nessa dimensão as características potencializadoras e possibilitadoras de uma comunhão mais intensa, mais intimista e mais apaixonante com os riscos da modalidade.

Fico a questionar se uma tarde no Surf Ranch supriria essa carência, essa saudade. Certamente, em alguma medida mais objetiva, sim. Porém, penso que tal vivência solucionaria apenas uma abstinência do surf, da prática, da remada e das vacas. A frequência de um mesmo formato de onda, certamente, possibilitaria um desenvolvimento mais acelerado, o aprendizado de novas técnicas, arriscar manobras, aprimorar algum gesto, ter a consciência do erro, repetir e repetir. Entretanto, aqui, como já anunciei anteriormente, penso na dimensão do surf sob outro viés. Um olhar mais relacional, mais dialógico e, portanto, menos objetivista, utilitário ou até mesmo mais distante de uma visão mais funcionalista. Uma perspectiva mais balizada e interpretada pela ótica das afecções, compreendida como aquilo que afeta. Penso pela lente do clima propiciado pela praia, pela incerteza, pela raiva por não ter onda. Talvez o imprevisível seja a lógica própria da natureza em dissonância com a tentativa inglória de objetividade e controle humano. Elementos esses que divergem dessa dimensão sempre previsível, mensurável e controlada da onda do Surf Ranch.

Ao entrar em contato com o mar, o controle passa a ser, constantemente, negociado, borrado e incessantemente revisitado. Ondas mais fortes, mais fracas, para a direita, para a esquerda, tubulares, “fechadeiras”. Praias com o fundo de pedra, fundo de areia, muita remada, ondas pequenas, cavadas ou ondas grandes. O surf se constitui por essas negociações, por esses ajustes, por essas adaptações e por esse cont(r)ato. Dias de onda, dias de marola, dias de remadas, de furadas, de frustrações e de alegrias. Entre drops, manobras e vacas, a prática do surf vai se configurando como uma dimensão ética e estética. O surfista, em negociação com as condições do mar e com as suas próprias disposições, pode fazer disso tudo algo belo que não necessariamente precisa se resumir em manobras e high scores. Um convite a afirmação do ris(c)o iminente, uma possibilidade de enfrentamento de medos e talvez a superação de traumas. Ratifico que a prática não é messiânica, ainda que discursos de salvação sejam amplamente disseminados. Penso que um distanciamento desses fatores pode culminar em uma visão simplista e reducionista. Uma aproximação em demasia com os fatores decorrentes da hiperbolização da técnica e do espetáculo.

É claro que aqui não cabe demonizar a criação do Surf Ranch, proposta genial de um ser genial que consegue manter uma relação de amor e ódio com o mar. Cabe-nos entendê-la como mais uma maneira de experienciar e não de institucionalizar e burocratizar ainda mais a prática. É fato que o acesso a lugares desse tipo ainda se resume a uma elite do surf mundial e posteriormente, talvez, estenda-se a uma elite financeira. Outro fator que por si é problemático e potencializador de discussões.

O nível de dificuldade das manobras executadas, o lugar a realizar os movimentos, o início e a conclusão do gesto com maestria são alguns dos muitos exemplos de como o surf chegou a um patamar elevado. Todavia, não posso me furtar a reflexão: expostos a situações semelhantes o nível de performance tende a ser ampliado ou as condições variadas das ondas exercem papel crucial nesse quesito e exigem mais dos atletas?

Assim como na vida há uma dimensão de precisão no surf, mas não se esgota nisso. Tais características, aqui elencadas, correlacionam-se em alguma medida com a dimensão inconstante e porque não dizer caótica da vida além de fazer do ato de surfar uma prática intrigantemente apaixonável. De toda forma, a proposta e o convite aqui proposto é pensar sobre o que pensamos e quais são os (des)usos que fazemos com o surf. Seja como surfista, espectador, admirador ou como o somatório dos três.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fidel Machado

Bacharel em Educação Física pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestre em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Filosofia e Estética do Movimento (GPFEM - Unicamp).

Como citar

MACHADO, Fidel. “Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar”: viver não é preciso, surfar também não. Ludopédio, São Paulo, v. 145, n. 32, 2021.
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