98.10

Não vim aqui só pra te ver campeão, eu vim aqui porque eu te amo!

[…] Habituei-me a uma paisagem confinada e a um horizonte quase doméstico. No seu âmbito poucas são as imagens do presente, e muitas as do passado. E se tal vida é melancólica, trata-se de uma sorte de melancolia a que meu espírito se adaptou e que, portanto, não desperta novas reações. A variação violenta dos quadros, numa noite de carnaval em que fomos abandonados pelos amigos e em que nossa porção de espaço foi invadida por outros seres, leva-nos a um mergulho mais profundo nos nossos abismos. Novas melancolias são despertadas, o homem sofre, e o amanuense põe a alma no papel.

O amanuense Belmiro, Cyro dos Anjos.

 

Ele gosta muito de ler crônicas que nos revelam figuras mais descoladas da “realidade” e dramatizam outras nuanças da vida além do próprio jogo de futebol. Afinal, quando um personagem é criado, ele se torna real e passa a existir no meio de nós, funda-se no ato da leitura, costuma pensar o nosso professor aposentado de educação física; hoje, um diletante do futebol e da literatura que versa sobre ele.

Todos o chamam de Miro, redução de Belmiro, nome dado por sua mãe em homenagem ao seu tio-avô, um amanuense a serviço do Estado, típico burocrata da cidade de Belo Horizonte, e contumaz escritor de diários. Miro conviveu com ele esporadicamente, mas com muita intensidade, até os dez anos de idade. Alguns dos diários escritos nas décadas de 1930 e 1940 sobejaram nas mãos do sobrinho-neto que os lê frequentemente à procura de respostas (ou mesmo perguntas) para a sua existência. Os diários de Belmiro têm função oracular para Miro, conectando-o aos tempos longínquos de sua infância.

Miro conserva alguns dos hábitos do tio, como ler o jornal todos os dias, andar a pé pela cidade, frequentar festas populares e ir ao estádio para acompanhar o Atlético, além de igualmente escrever seu diário, secretamente. “Tomo o café. Leio o Minas. Lá fora, na cidade, a manhã deve estar alegre e o parque cheio de gente. Veio-me a ideia de sair um pouco, para espairecer. Depois, à tarde, talvez o futebol. Os jornais anunciam um encontro sensacional”, transcreveu para o seu diário, a lápis, este trecho de um domingo qualquer dos cadernos do tio, conferindo ao passado aspectos cotidianos e, em contrapartida, falando do presente a partir de formas pretéritas.

Miro herdou a pequena casa do tio Belmiro, localizada na Rua Erê, no Prado, na zona oeste da cidade, com a condição de pagar meio salário mínimo por mês para sua única prima de primeiro grau da família dos Borbas, porque, igualmente, tem direito à metade do imóvel.

Belmiro Borba foi um solteirão convicto, não teve filhos e dividia a casa com duas irmãs, Francisca e Emília. Já, Miro, que também não teve filhos, mora sozinho e, por gratidão pela casa que nunca teria condições de adquirir, busca mimetizar reiteradamente traços e comportamentos que imagina serem peculiares de seu antepassado, como o temperamento melancólico expresso com força em seus escritos líricos, sensíveis e nostálgicos. Além do mais, ele guarda uma fotografia do tio-avô no alto da parede da cozinha, para a qual dirige a palavra todos os dias. Assim, mantém viva pela casa a memória de seu antepassado.

Miro não tem fotografias de Francisquinha e Emília, ambas, como sempre disseram parte da família, eram de “outro mundo”, e não ligavam para isso. Chiquinha foi para o cemitério do Bonfim primeiro, em 1935, e a outra irmã juntou-se a ela depois. “Tia Emília, dizem, enlouqueceu de vez no dia em que o Atlético ganhou a Copa dos Campeões ao enfiar 5 a 1, de virada, no Rio Branco do Espírito Santo, com gols do Guará, o “Perigo Louro”, craque do time, Bazzoni, Nicola e dois do Paulista”, Miro, aos goles, costuma recontar essa história ao amigo Silviano, como se parte sua também estivesse presente no Estadinho de Lourdes naquela quarta-feira, dia 03 de fevereiro de 1937. “O Athletico levantou o título do primeiro certame entre clubes campeões regionais que a Federação Brasileira de Football instituiu para o corrente ano”, Miro encontrou essa manchete dentro de um dos diários do seu tio Belmiro, num recorte do Jornal dos Sports, que ele transferiu para dentro de seus próprios cadernos.

Time do Atlético Mineiro, campeão da Copa dos Campeões, em 1937.
Time do Atlético Mineiro, campeão da Copa dos Campeões, em 1937.

 

À época, houve muito algazarra pela cidade. A festa foi maior do que a cidade, cuja população girava em torno de duzentos mil habitantes. “Dizem que a tia Emília surtou por causa dos fogos da torcida do Atlético, por causa da barulhada que durou sete dias”. O título ocorreu às vésperas do Carnaval e, muito eufóricos, os atleticanos emendaram de vez na folia ao cantar inúmeras vezes o último sucesso de Francisco Alves: “Favela oi, favela / favela que trago no meu coração / ao recordar com saudade / a minha felicidade / favela dos sonhos de amor / e do samba-canção // Minha favela querida / onde eu senti minha vida / presa a um romance de amor / numa doce ilusão / em uma saudade bem rara / na distância que nos separa / eu guardo de ti esta recordação”.

  

Quarta-feira, 19 de agosto de 2017

[…] Este caderno, onde alinho episódios, impressões, sentimentos e vagas ideias, tornou-se, a meus olhos, a própria vida, tanto se acha embebido de tudo o que de mim provém e constitui a parte mais íntima de minha substância.

O amanuense Belmiro, Cyro dos Anjos.

Hoje à noite, Miro vai ao jogo do Atlético pelas quartas de final da Copa Libertadores. Para seguir na competição, é preciso, ao menos, ganhar do Jorge Wilstermann pelo placar mínimo para igualar o marcador da partida de ida no altiplano boliviano (e disputar os pênaltis). A torcida anda meio tensa, pois o time não vem obtendo bons resultados nos últimos jogos do Brasileirão, figurando mais perto da zona de rebaixamento para a série B do que da classificatória para a Libertadores, além de ter sido eliminado da Copa do Brasil pelo Botafogo, que, ao lado do Goiás, tornou-se o maior algoz dos alvinegros mineiros nessa competição. Mesmo assim, como sempre se espera, o público no Mineirão será gigante, cerca de quarenta mil torcedores já garantiram presença.

São quase 17h, Miro está indo ao centro da cidade para adquirir o bilhete. Dia de jogo do Galo é sempre um dia diferente, com rituais próprios. Depois, pretende passar na casa de Silviano, jantar e seguir a sós pra Pampulha. Está contente por poder presenciar mais um jogo importante do seu time (e isso basta), independente do resultado. Afinal, não vai ao campo só pra vê-lo ser campeão.

Miro também frequenta alguns jogos do América no Independência e costuma dizer que não é anticruzeirense, pois às vezes se priva com amigos torcedores celestes para assistir aos jogos da Raposa. Ser atleticano é só mais um componente de sua identidade, não é tudo. Ele fica muito alegre quando o seu time ganha, mas a tristeza não é proporcional quando se dá o revés. Ele tem muitas preocupações na vida. Gosta de tratar o jogo de maneira lúdica, sem com isso diminuir sua importância.

O nosso professor não é torcedor de sofá. Quando não vai ao estádio, prefere ouvir o jogo pelo rádio, momento em que também lê, cozinha ou caminha. O Atlético concentra e comunica muitas coisas que lhe interessam. Gosta de todos os rituais que envolvem o espetáculo. Gosta de ver as pessoas bebendo ao se deslocarem em direção ao estádio – ele sempre vai de ônibus. Gosta dos cânticos e gritos dos torcedores, Miro muitas vezes chora ao cantar o hino. Gosta da Charanga do Galo, dos fogos de artifício, do aquecimento dos jogadores e do feijão-tropeiro ao redor do estádio. Gosta das inesgotáveis narrativas produzidas a cada confronto – das motivações. Gosta da multidão, pois sempre parece estar numa espécie de transe. E, sobretudo, ele gosta das jogadas que se constroem na mesma medida em que vão se desconstruindo para se fixarem na memória, como aquele pênalti defendido por São Victor na Libertadores de 2013. Ali, sem saber exatamente o que, mudou algo em sua vida.  Na verdade, suas recordações, como as do tio, transformam-se em romance, e os fatos, logo consumados, ganham outro contorno, são acrescidos de mil acessórios. Romance trágico, cômico, disparatado, conforme cada um de nós, monstros imaginativos.

Miro gosta tanto de futebol que sempre o praticou e o ensinou em suas aulas de educação física no ensino fundamental. O esporte é o seu ganha-pão, inseparável de sua existência. Um dia, ele reproduziu em seus diários, a seguinte passagem dos cadernos íntimos do tio: “Os dias de festa coletiva [futebol, no caso], introduzindo o elemento multidão na minha esfera e propondo-me novos espetáculos ou novas sugestões, interrompem o equilíbrio do meu pequeno mundo e nele vem produzir desnivelamentos que suscitam mais fundos movimentos interiores”. Miro até se enfeitiça pelo futebol, mas não é o seu ópio, não basta. Miro não projeta todas as suas desgraças nele, cria outros espaços com o intuito de construir outras metáforas, muito além (aquém) das automatizadas e maliciosas narrativas diárias que giram em torno desse jogo.

Enfim, ele não chega a ser um boleiro, mas entende do riscado, gosta das táticas, gosta de falar sobre futebol, gosta do instante extraordinário do gol, celebrado, por vezes, com um sorriso discreto, uma expiração. O futebol ajuda, mas não esconde todas as suas adversidades, as mazelas sociais.

Imagem: PeDRa LeTRa.
Imagem: PeDRa LeTRa.

 

Descendo ainda a rua da Bahia, ele para e escreve em seu caderno: “O Atlético Mineiro é minha única certeza, ele não morre antes de mim”. Ele caminha. Ele chora. Ele para de andar. Ele escrever. Ele caminha para a morte com a plena consciência disso. Ele caminha. Ele caminha só, mas com o profundo desejo e disposição para se irmanar. Explora geografias. Explora seu corpo, de fato, sua única morada. De súbito, ele vê uma criança parada a mirá-lo. Os dois estão com a camisa do Atlético. Ele se aproxima, agacha-se, toca em suas mãos. A mãe ao lado estimula a aproximação. A criança lhe dá um beijo.

Ele dá as costas para aquela criança, para aquela cena que nunca mais se repetirá. Ele segue descendo a Bahia, rumo a mais um jogo, uma festa sempre estranha. “Hoje, vamos botar pra foder, Galo!”, disse em voz alta. Caso contrário, Miro, de toda forma, terá um ganho, pois degustará a pimenta cumari-do-pará que ele mesmo preparou e deixou curtindo desde o início da Libertadores. Ao prepará-la, prometeu abrir o vidro no último jogo do Atlético na competição. Infelizmente, pode ser hoje. Futebol é assim, cheio de infortúnios, como a vida.

Hoje, provavelmente, o time entrará em campo com a potência máxima, do jeitinho que ele acredita ser a melhor formação: Victor; Marcos Rocha, Léo Silva, Gabriel e Fábio Santos; Adilson, Rafael Carioca, Elias; Cazares, Luan (Robinho) e Fred.

Ôôôôôôôôôôô-ôôô!, vai pra cima deles, Galô!

 

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Gustavo Cerqueira Guimarães

Doutor e mestre em Estudos Literários pela UFMG. É graduado em Psicologia e Letras pela PUC-Minas. Autor dos livros de poesia Língua (2004) e Guerra lírica (no prelo). Coorganizou os livros Futebol: fato social total (2020) e Problemáticas e solucionáticas do futebol em Minas Gerais (no prelo). Desenvolveu pesquisas sobre futebol e artes no pós-doutorado na Faculdade de Letras da UFMG (PNPD-CAPES, 2013-2018) e no Leitorado Guimarães Rosa em Maputo/Moçambique (2019-2023). Atualmente, atua na Secretaria Municipal de Educação de Lajinha/MG e como vice-líder do Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes, como coeditor-chefe da FuLiA/UFMG (https://periodicos.ufmg.br/index.php/fulia/issue/archive). 

Como citar

GUIMARãES, Gustavo Cerqueira. Não vim aqui só pra te ver campeão, eu vim aqui porque eu te amo!. Ludopédio, São Paulo, v. 98, n. 10, 2017.
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