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Nilmar entre a Alienação de si e a Melancolia

Em 2017, uma notícia surda e silenciosa, saltava nos portais de notícias. O assunto era, de forma resumida, que o jogador Nilmar estava se desligando do Santos Futebol Clube em comum acordo sem ônus[1] para este. O jogador realizaria ali, um melhor tratamento para a depressão, doença que estava afetando o seu preparo e prazer para com a prática futebolística. O fim agridoce de Nilmar parece nos apresentar o lado oculto do esporte, a produção esportiva que parece trazer prazer, lazer, divertimento e alegria também pode levar, a quem o pratica profissionalmente, a dor, repetição, angústia, ansiedade e até depressão. Mertesacker, zagueiro alemão e campeão mundial em 2014, revelou o drama que se passava com ele acerca do futebol “Nos momentos antes dos jogos, meu estômago se revira como se eu fosse vomitar. Aí faço tanta força para me segurar que meus olhos lacrimejam…” afirmou o jogador em uma entrevista[2] que fora concedida em 2018, um pouco antes de encerrar a carreira aos 33 anos.

A cobiça em ser um grande jogador, ter condições de desenvolver e potencializar o seu talento, esbarram em alguns pontos que serão tratados aqui no texto. Ao estimado leitor, o que se propõe é o paradoxo entre felicidade e a tristeza do jogador de futebol profissional de alto nível e como este pode ser acometido por problemas. Aliás, a abordagem destes problemas serão dadas por meio do conceito de alienação que fora trabalhado por Marx em seus escritos e, para se juntar ao alemão, o estudo sobre luto e melancolia em um ensaio desenvolvido por Freud. Se aparenta muita coisa, contudo, a intenção aqui é um ensaio que realize um pontapé nas discussões acerca da pessoa jogador e o seu adoecimento.

Nilmar Chicão
Nilmar em partida pelo Internacional em 2014. Foto: Armando Paiva / Fotoarena / Wikipédia

Os bons tempos

“Você vai rir/Vai perceber/Felicidade é só questão de ser(…)” com estes versos da canção Felicidade do cantor Marcelo Jeneci, dá-se o pontapé acerca de Nilmar. Nascido em Bandeirantes no interior do Paraná, o jogador iniciou a sua carreira no Internacional de Porto Alegre. Jovem, rápido e habilidoso, o jogador ganhava destaque pela sua capacidade de sair e entrar dentro da área, com bons dribles e arrancadas e, principalmente, gols. O jogador logo chamou a atenção do Velho Continente e foi transferido em 2004 para o Lyon. Vale ressaltar aqui alguns fatores, o primeiro que o Lyon era um time forte, vitorioso e seu grande destaque era o jogador Juninho Pernambucano, outro fator é que, diferentemente do Internacional, o Lyon não estava passando por uma reestruturação ou grave após cair, pelo contrário, a equipe francesa viva o seu auge com um tricampeonato seguido e surpreendendo na Uefa Champions League, logo, um ambiente tranquilo e calmo para que o jogador pudesse desenvolver o seu vistoso futebol por fim, a compra de Nilmar resultava numa modificação na maneira europeia de aquisição de jogadores, agora de forma mais massiva, em suma, ir ao atletas mais jovens e promissores de determinadas equipes os adquirirem antes que sejam um sucesso consolidado e assim, realizarem vendas no próprio mercado europeu e atingirem um lucro exorbitante.

A difícil adaptação no Lyon fez com que o jogador voltasse ao mercado brasileiro, precisamente, o Corinthians. Nilmar tinha o sonho de ser convocado para a lista de reservar que participariam da Copa do Mundo de 2006 e escolheu o Corinthians por ter um time forte, o aporte financeiro da MSI e para ficar aos olhares de Parreira com mais minutagem em campo e, consequentemente, ser lembrado. Essa passagem foi documentada em uma série[3] exibida na MTV acerca de jogadores jovens e promissores. Em uma série, mostrasse Nilmar e o seu cotidiano, treinamentos, habilidade e os jogos para chegar à Copa de 2006, em suma, o jogador desempenhava o papel esperado dentro do que se espera, a alegria com a bola, os sorrisos, a valorização de estar jogando, o glamour, o prazer e tudo aquilo que o futebol proporciona àqueles que estão no topo do esporte. A juventude contrastada com as duras rotinas não parecia importar para Nilmar, pois este tinha um objetivo pessoal maior que a adversidade rotineira. Ao olharmos detalhadamente, no início se já via um alheamento da formação humana do jogador para apresentar-lhe como um produto.

A carga afetiva veio junto da cobrança, o lance alimentado e retroalimentado, uma reprodução da sensação como diria Christoph Türcke(2010) em seu belo livro Sociedade excitada: filosofia da sensação, a essa veio a cobrança, a busca por um desempenho espetacular e a reafirmação do talento. Expropriado de suas questões pessoais, Nilmar passou a responder demandas alheias e, portanto, a se alienar de seus desejos, prazeres e a viver em função do objetivo social, um jogador de futebol em que se espera o desabrochar da habilidade. Quando Marx relata em seu célebre Manuscritos Econômicos-Filosóficos trata da expropriação dos campesinos pelos capitalistas e os tornando força de trabalho, logo, os campesinos se tornavam alienados de sua condição de posse, da terra e da não exteriorização de seu trabalho.

Nilmar passou a não exteriorizar o seu talento com a bola, isso fica evidente quando olhamos a sua carreira posteriormente e vemos que não conseguiu se firmar como um jogador decisivo, superestrelado e midiático – como foi no começa da carreira – sendo vez ou outra lembrado pela seleção e convivendo com lesões e amargas experiências. Um ponto seria a condição para que se chegue a ser jogador de futebol, em alguns casos mais facilitados que outros como acesso ao centro de treinamento, circulação, aquisição de produtos para a prática, mercadoria, os custos para determinado aspecto técnico ou físico, dinheiro, e um bom empresário que faça ligações com clubes, pontes entre estes, distribuição. Olhando bem de perto, mesmo não sendo uma mercadoria, o jogador perpassa todos os aspectos do processo de uma dentro do capitalismo, logo, é difícil percebemos e, alguns até utilizam o termo, do jogador como “mercadoria” do mundo do futebol – outros usam o termo “ativos” – para designar a venda, compra e circulação dos andarilhos da bola.

O outro ponto envolve a prioridade dessa prática, com rotinas, treinos, desenvolvimento físico, técnico, tático, a alimentação, descanso e cuidados que extrapolam somente a realização esportiva naquele determinado espaço. Naturalmente, ao priorizar tais aspectos, outros vão se deixando secundários e aí vemos a dificuldade no prosseguimento escolar, a diminuição de uma vida social mais profícua, a troca de certos eventos pelo foco na competição e um distanciamento do que cerca o mundo para um maior desempenho. Em suma, o processo civilizador que foi concebido o esporte e aqui falo de Eric Dunning em seu livro Sociologia do Esporte e os Processos Civilizatórios mostra as tensões que foram ocultadas com o avanço desse processo, em suma, a capacitação maior, um maior envolvimento do atleta levou a um abismo entre o que se prática na sociedade e que se tem no âmbito profissional. O nível de treino, a ideia competitiva levada as consequências mais intensas como o caso do dopping transformaram o esporte em aspectos distintos, em que as ideias legitimadas pela prática esportiva ganhassem terreno, também, no convívio social. A sua reprodução foi ampla levou a um processo mais competitivo e em alguns casos, sem civilidade das partes que se envolvem num tratamento lúdico. Contudo, isso levaria a uma discussão que não é a proposta deste ensaio e será trabalhado em outro.

 Após passagens ao redor do mundo, Nilmar voltava ao Brasil e foi no litoral, em Santos, que o jogador buscou apresentar seu prazer, se resolver com o esporte e a profissão, buscar aquela sensação e o divertimento. Aqui vale o apontamento de como a mídia produz uma narrativa despretensiosa, aparentemente, para ocultar as questões relevantes como diria Noam Chomsky em Controle da Mídia: Os Espectadores feitos de Propaganda ao demonstrar o papel da mídia em suavizar ou esconder aspectos que contribuem para o entendimento e a aparência do esporte, dando a esse um ar de facilidade, tranquilidade como se todos fossem felizes e realizados em sua condição, esquecendo dos inúmeros problemas físicos e psíquicos que podem acarretar na carreira do atleta, Aliás, este será o ponto tratado sobre Nilmar e como a depressão trouxe à tona uma discussão marginalizada no esporte, a falta de prazer e exteriorização no futebol e a não realização por meio deste.

Nilmar
Nilmar em 2012 pelo Al-Rayyan. Foto: Wikipédia

A Grande Liquidação

“Somos um povo infeliz, bombardeado pela felicidade. O sorriso deve ser muito velho, apenas ganhou novas atribuições. Hoje, industrializado, procurado, fotografado, caro (às vezes), o sorriso vende. Vende creme dental, passagens, analgésicos, fraldas, etc. E como a realidade sempre se confundiu com os gestos, a televisão prova diariamente, que ninguém mais pode ser infeliz. Entretanto, quando os sorrisos descuidam, os noticiários mostram muita miséria. Enfim, somos um povo infeliz, bombardeado pela felicidade”, as palavras de Tom Zé na contracapa do álbum A Grande Liquidação (1968) parecem a nós tão atual e visceral quando foi escrita. Somos pessoas infelizes pela pobreza que nos assola, pela miséria apresentada e pela condição que o outro se apresenta ao nosso cotidiano. A nossa incapacidade de resolução desses fatores é ofertada por momentos que consumimos e deixamos nos levar para um parcial desligamento daquilo que nos aflige. Seja um filme, um esporte, uma música, um teatro, as práticas de lazer parecem soar como uma recompensa pelo árduo esforço em sacrificar pela semana. Se possuímos infelicidade, aqueles que julgamos não serem infelizes – pessoas aparentemente realizadas pelo sentido financeiro e pessoal – também demonstram estar, pois o conforto não gera felicidade. Com essa breve colocação – ou seria uma advertência – ao trecho de Tom Zé, foi como uma bomba a notícia pública do caso de depressão de Nilmar e como esse possui dificuldades na execução daquilo que muitos julgam um lazer. Psiquicamente esgotado por práticas repetitivas, cansativas e levas à exaustão, pela ansiedade, adrenalina e toda a produção hormonal liberada pelo nosso cérebro, Nilmar viu o seu corpo pedir descanso de tanta carga para um prazer alheio ao seu.

Em seu ensaio Luto e Melancolia, Freud apresenta os conceitos como estes são inseridos para analisar o indivíduo em seu processo de superação da perda ou no caso da não superação, as patologias que podem levar a reviver essa dor. Nilmar deve ter vivido alguns momentos de luto com a palavra o próprio[4],

“Eu tenho quatro cirurgias no joelho, duas muito sérias que foram na época do Corinthians (em 2006 e 2007). E eu tinha 21 anos, então praticamente a minha carreira toda eu convivi com isso. Joguei em nove clubes. Para eu passar em qualquer exame médico, eram dois a três dias de exame porque tinha essa desconfiança. Entendo que a imprensa tem que informar, mas por eu ser atacante, o meu biótipo, fui tachado de frágil. Estigmatizado não sei, mas eu convivi com isso a minha carreira toda. Mas consegui ir a uma Copa do Mundo, jogar na Europa, realizar os sonhos que eu tinha de criança… de poder jogar na seleção brasileira, conquistar títulos. Foi uma carreira de altíssimo nível e eu sou feliz, o futebol me deu tudo na vida. Saí do interior e vim para cá para Porto Alegre há 20 anos.”

Como citado, em sua vida houveram alguns lutos, vale destacar o ponto não colocado pelo jogador, a não convocação para a Copa de 2006 foi para o jogador um balde de água fria em suas pretensões – até pelo envolvimento midiático como o documentário já citado – contudo, nada disso abalou o prosseguimento da carreira do jogador que seguiu um curso natural na carreira de um atleta.

No caso da melancolia e esse reviver de experiências, na mesma entrevista Nilmar fala sobre,

“Eu desconectei totalmente e entrei naquele mar que é tipo uma bolha. Quem viveu isso sabe o que eu estou contando. Eu só chorava. Todos os sintomas que vocês puderem pesquisar, eu vivi; insônia, eu não conseguia dormir, mas isso já depois desse caso da concentração. (…) – Depois da concentração passei, dois dias no hospital, não diagnosticaram nada e entendi que eu precisava procurar os profissionais. O pessoal do Santos me auxiliou, colocou psicólogo, psiquiatra, comecei a fazer tratamento com medicação. Então aquilo para mim foi um choque muito grande. Eu sou um cara tranquilo e eu me cobrava muito em não querer estar naquela situação, foram três meses ali num processo muito difícil, só quem passa sabe a dor que é.”

A repetição das inúmeras situações repetitivas, treino, cobrança, concentração, uma repetição de carga intensa pelo atleta que é até descrito pela esposa “- Quando voltamos ao Brasil ele estava com uma carga superforte de treinos. Dava para perceber que ele estava bem cansado, com a rotina de treinos que ele praticamente só tinha folga domingo à tarde durante 40 dias”, demonstra a exaustão que levou o jogador. A melancolia se fez presente pela alienação se prazer, uma relação de quase máquina por parte do jogador e do clube, aliado a isso, uma cobrança interna de levar a exteriorizar aquele sacrifício pelo prazer de milhares que consome o lazer do futebol. A melancolia levou a uma patologia mais grave em Nilmar, a depressão que precisou de um acompanhamento psicológico e psiquiátrico por parte do jogador para que, enfim, pudesse superar esse momento. A retirada dessa carga intensa, da cobrança e vivenciar um ambiente mais calmo e suave, trouxe ao jogador o não reviver da melancolia que passou a ser a rotina de ser jogador de futebol. Rotina essa ocultada e, às vezes, colocada como sacrifício em busca do algo maior, do prazer.

Portanto, vale pensar a saúde mental ao qual o jogador de futebol é submetido, mesmo com o status e o glamour que são alçados, lembremos que são trabalhadores e vendem sua força de trabalho por meio do aprimoramento da parte técnica e física. Com essa rotina pesada, cargas excessivas e pressões demasiadas por resultados, o jogador pode vir a sucumbir para algumas sensações de escape como álcool, drogas, festas entre outros. A atitude de Nilmar joga luz em um problema que será cada vez mais comum e recorrente dentro do esporte e da sociedade pós-pandemia, o cuidado mental em meio a uma situação de tensão, medo e recorrente.

 

Notas

[1] Santos e Nilmar rescindem contrato

[2] “Quero vomitar antes dos jogos”; O drama de um alemão campeão do mundo

[3] Corintiano Nilmar é uma das estrelas de documentário da MTV

[4] Nilmar fala sobre luta contra a depressão: “Eu só chorava. Por que comigo?”

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

OLIVEIRA, Luiz Fernando Pereira de. Nilmar entre a Alienação de si e a Melancolia. Ludopédio, São Paulo, v. 144, n. 32, 2021.
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