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“No rugió el cañón”: Cruyff blaugrana contra o Arsenal

Ana Paula Florisbelo da Silva 1 de fevereiro de 2021
 
Johan Cruyff com a camisa do Barcelona, contra o Arsenal no dia 12 de março de 1974, no Highbury. Foto: Reprodução Twitter

Quem está a procura de dados sobre confrontos entre Barcelona e Arsenal, em uma rápida busca na internet, provavelmente pensará que jogos entre ambos os times nasceram através da Champions League, em seus dois primeiros confrontos em 1999, no estágio de grupos da temporada 1999/00. Se tratando de partidas não oficiais, no entanto, os dois primeiros encontros entre blaugranas e gunners são bem mais antigos, e remontam a temporada de 1973/74, de um Arsenal medíocre e um Barcelona avassalador, orquestrado por Johan Cruyff.

No tempo que antecedeu a regularização de Johan Cruyff pelos culés, o F. C. Barcelona buscou participar de amistosos, para que o craque holandês pudesse jogar assiduamente e manter a forma física, até que sua situação fosse regularizada. O impasse, na demora de sua estreia, se devia ao desejo da federação holandesa de ter o jogador focado no jogo de classificação para o mundial de 1974, contra a Bélgica, que ocorreria em 18 de novembro.[1]

Sua primeira partida com a camisa blaugrana foi no dia 5 de setembro de 1973, contra o Cercle Brugge da Bélgica, no Camp Nou frente a 75 mil espectadores. Cruyff marcou dois gols na vitória arrasadora por 6 a 0.[2] Sua segunda partida seria contra o Kickers Offenbach da Alemanha, no dia 26 de setembro, marcando um gol na partida, que termina em 2 a 0 para os catalães.[3] E em sua terceira partida, contra o Arsenal, ocorrida em 16 de outubro de 1973 no Camp Nou, Cruyff não marcaria pela primeira vez em uma partida com a camisa do Barça.

Escalações de ambos os times e substituições feitas ao longo da partida. Fonte: El Mundo Deportivo, p. 8, 17 out. 1973.

Na análise da partida, o jornal El Mundo Deportivo destaca a atuação apagada do time de Londres, no subtítulo No rugió el cañon, na página 8 de sua edição do dia seguinte ao encontro. Uma das explicações, segundo o texto, se devia a ausência de seis jogadores titulares e pela natureza do próprio encontro (um amistoso).[4] Afirmam ainda que, pela baixa de jogadores ter afetado mais ao ataque do Arsenal, este foi o setor do time com mais dificuldades, que poucas vezes conseguiu chegar com perigo ao gol de Sadurní. As baixas foram por lesões (Alan Ball, John Radford e Jeff Brockley) e porque alguns jogadores foram convocados pela seleção inglesa principal e sub-23 (Peter Storey, Charlie George e Ray Kennedy), segundo informou o técnico Bertie Mee, em entrevista pós-jogo.[5]

Pelo Barcelona, dois jogadores foram novidades: O atacante peruano Aicart, que jogou apenas o primeiro tempo por conta de uma lesão que sofreu em campo, e o meio campista Tomé, que só havia jogado anteriormente pelo Barcelona em uma oportunidade. Ambos não teriam espaço no time barcelonês: Pedro Aicart não jogaria nenhuma partida oficial com o Barcelona, e seria emprestado ao Hércules em janeiro de 1974. Manuel Tomé ficaria no clube até 1976, jogando apenas 34 partidas na liga espanhola com o time barcelonês.

No subtítulo Cruyff como siempre, afirmam que mesmo que o holandês não tenha deixado o seu gol, não há nenhum problema em assumirem que atuou bem como sempre, criando boas jogadas e demonstrando sua visão de jogo, afetado pelo fato de não encontrar a colaboração necessária de seus companheiros. Ao seu lado, dão destaque às atuações de três veteranos: Sadurní (goleiro no clube de 1960 a 1976), Rifé (volante, jogou no clube entre 1964 e 1976) e Marcial (atacante no clube de 1969 a 1977, vindo do Espanyol).[6]

Equipe titular do Barcelona na temporada 1973-74. Fonte: Reprodução

No próprio título da matéria sobre a partida, o El Mundo Deportivo já opina que o clube barcelonês mereceu vencer por um placar maior, pois dominou um Arsenal medroso e inoperante no ataque, discreto no meio campo e regular na defesa. Só destaca, entre os jogadores dos gunners, a boa atuação defensiva de Batson, lateral direito que foi o primeiro jogador negro da história do Arsenal. O jogador, no entanto, não seria muito utilizado na equipe principal, pois o titular absoluto de sua posição era Pat Rice, um dos maiores ídolos da história do clube de Londres. Tendo chegado ao Arsenal em 1971 e jogado apenas 10 partidas na liga inglesa, Brendon Batson iria para o Cambridge United em janeiro de 1974.[7]

O jornal catalão La Vanguardia concorda com as análises do El Mundo Deportivo, de uma atuação pobre do time londrino. Afirma que o Arsenal, que no passado era estandarte do futebol inglês, se mostrava então em terras espanholas um time fraco, firme para defender mas sem ideias no ataque. Elogia Tomé, o trio de ataque barcelonês Cruyff, Marcial e Sótil, e no lado londrino apenas o capitão e lateral esquerdo McNab. Pelo La Vanguardia vemos que o Barcelona também estava desfalcado de peças titulares, com as ausências de Juan Carlos, Asensi, Gallego e Costas. As ausências impactaram na atuação barcelonesa, que o La Vanguardia descreve como um Barcelona experimental, que com suas deficiências anulou a atuação do bom trio de ataque. Uma atuação monótona de um ataque que, salvo alguns momentos de finura, somente rodava com a bola ao redor da área com passes curtos.[8]

O único gol da partida saiu no primeiro minuto do segundo tempo, pelos pés de Juanito com assistência de Sótil, após o Arsenal trocar no intervalo seu goleiro titular, Wilson, pelo reserva Barnett. Sótil recuperou uma bola perdida pelo time inglês, correu em velocidade lançando a bola a Juanito pela direita, que avançou alguns metros e finalizou forte. Houveram 14 escanteios para o Barcelona ao longo da partida, e apenas dois para o Arsenal. Alguns detalhes curiosos da partida são destacados na ficha técnica do jogo. Aos 30 minutos quase aconteceu uma agressão do capitão dos ingleses, McNab, a seu colega Nelson, por perder a bola diante de Cruyff. A quatro minutos do final, Nelson foi substituído e tentou voltar a campo, sendo impedido pelo árbitro da partida.[9]

Equipe principal do Arsenal na temporada 1973-74. Foto: Reprodução

A segunda partida entre Arsenal e Barcelona, ocorrida no dia 12 de março de 1974, era um amistoso na casa do Arsenal, em homenagem aos 500 jogos do ponta George Armstrong pelo Arsenal, ao longo de seus 14 anos no clube londrino. Naquele momento, na rodada 33, os gunners estavam em má situação na liga inglesa, na décima sétima colocação, com 10 vitórias, 10 empates e 13 derrotas, tendo marcado 33 gols e levado 40. O líder do campeonato era o Leeds United, que levaria o título. Arsenal terminaria a temporada em décimo lugar.

Capa do programa da partida amistosa.

Já para o Barcelona, tudo eram flores: Na rodada 25 do campeonato espanhol era líder absoluto, acumulava 16 vitórias, 6 empates e apenas 3 derrotas, tendo marcado 61 gols e levado apenas 17. Após 14 anos sem conquistar a liga, o F.C. Barcelona termina a temporada se sagrando campeão, justamente no ano em que comemoravam as bodas de diamante do clube. Nessa temporada entraria para a história, ainda, a goleada de 5 a 0 sobre o Real Madrid no próprio Bernabéu, que terminaria o espanhol de 1973-74 em oitavo lugar.

A diferença vivida entre os times seria expressada naquele encontro entre culés e gunners no Highbury, com uma vitória por 3 a 1 do Barcelona sobre o Arsenal. O El Mundo Deportivo aponta que, aqueles que foram ao jogo apenas para assistir Cruyff, se deram conta de que todo o time catalão era sólido, sem fissuras, com boa preparação física e uma moral à prova de qualquer adversidade. E isto tendo em conta que, focados no campeonato, o técnico holandês Michels preferiu escalar um time misto: Marcial e Asensi jogaram apenas um dos tempos, Sótil entrou somente no segundo, Cruyff deixou o campo na metade do segundo tempo e Juan Carlos, lesionado, não foi relacionado para a partida.[10]

Escalações de ambos os times para a partida. Fonte: La Vanguardia, p. 44, 13 mar. 1974.

A falta desses jogadores, no entanto, não importou ao Barcelona, que jogava bom futebol coletivo. O autor do texto enfatiza que, durante a partida, os jogadores do Arsenal corriam atrás da bola, mas não a tocavam. Destaca as atuações de Sadurní no gol; do zagueiro Gallego, que demonstrava estar em perfeita forma; Marcial em sua atuação no primeiro tempo; Asensi que o substituiu no segundo tempo e manteve o alto nível no ataque; Sótil com boa profundidade e visão de jogo; Rexach, responsável pelo início de duas jogadas que resultaram em gols; e claro, Cruyff, que aterrorizou a defesa gunner em cada vez que tinha a bola nos pés. Rovira finaliza o texto dizendo que o Barcelona levou mais que a vitória em Londres: Conseguiu também deslumbrar o público e a crítica inglesa.[11]

Capa do jornal El Mundo Deportivo, do dia 14 de março de 1974.

 No La Vanguardia encontramos mais detalhes sobre os gols: O primeiro tempo terminou em um empate de 0 a 0, e o gol inaugural da partida sairia aos 14 minutos, em um pênalti para o Arsenal, que Alan Ball converteu. Aos 18 minutos viria o empate do Barcelona pelos pés de Asensi, após cobrança de falta por Cruyff. Aos 21 minutos Cruyff lançou uma bola na área, que Sótil aproveitou e marcou de cabeça. O terceiro gol blaugrana viria aos 30 minutos, através de uma cabeçada de Tomé em um escanteio. Quarenta mil pessoas assistiram a partida.[12]

Na descrição sobre a partida, salienta que no primeiro tempo ambos os times fizeram um jogo rápido e bem jogado. Os ataques dos artilheiros do canhão londrino foram anulados pela defesa com Torres, Costas e Rifé, e no meio campo De la Cruz e Gallego roubavam a bola e a passavam para Cruyff se lançar no contra-ataque, lançando a bola aos extremos Rexach e Juanito. O goleiro gunner Wilson trabalhou intensamente para parar os chutes do ataque barcelonês. O ataque do Arsenal, baixo a direção de Alan Ball, morria na defesa barcelonesa ou nas mãos de Sadurní. Na segunda metade, o time inglês foi incapaz de parar um Barcelona criativo, combinado e profundo baixo a direção de Cruyff.[13]

Capa da revista Gunflash, destacando o amistoso entre Arsenal e Barcelona na sua capa. Edição de abril de 1974.

Enfrentando os gunners com a camisa blaugrana, Cruyff não marcou gols, mas deu duas assistências e deixou satisfeitos aqueles que queriam vê-lo brilhar. Em ambas as partidas amistosas contra o Arsenal, apesar dos olhares direcionados para o craque holandês, contratado como a transferência mais cara da época, as matérias dos dois jornais catalães aqui utilizados como fonte fazem questão de enfatizar o jogo coletivo do Barcelona. O onze barcelonês estava em uma das melhores fases de sua história, e nas mãos do técnico holandês Rinus Michels encantava não apenas telespectadores espanhóis, mas todos aqueles que tinham a oportunidade de conhecê-los. Azar dos times que tiveram que enfrentar um Barcelona orquestrado pelos holandeses protagonistas da laranja mecânica!

 

Notas

[1] DE LAS HERAS, Moreno. Según el secretario de la federación holandesa, Cruyff no podrá jugar hasta el 2 de diciembre. El Mundo Deportivo. Barcelona, p. 8, 28 set. 1973.

[2] SE CUMPLEN 43 años del debut de Cruyff con el barça. FC Barcelona.

[3] FARRERAS. 2-0: Cruyff, que jugó en solitario, maravilló de nuevo a los espectadores. El Mundo Deportivo. Barcelona, p. 3-4, 27 set. 1973.

[4] CALVO, Juan Antonio. No rugió el cañon. El Mundo Deportivo. Barcelona, p. 8, 17 out. 1973.

[5] CASANOVA, Juan Antonio. Tras los noventa minutos – Mr Mee: “Nos faltaban seis titulares”. La Vanguardia. Barcelona, p. 41, 17 out. 1973.

[6] CALVO, Juan Antonio. Cruyff, como siempre. El Mundo Deportivo. Barcelona, p. 8, 17 out. 1973.

[7] BRENDON Batson. Arsenal

[8] ICHASO, Jesús. Por un gol a cero el Barcelona ganó al Arsenal, en partido amistoso. La Vanguardia. Barcelona, p. 41, 17 out. 1973.

[9] FICHA técnica. La Vanguardia. Barcelona, p. 41, 17 out. 1973.

[10] ROVIRA, Ramón. El Barcelona deslumbró en Londres. El Mundo Deportivo. Barcelona, p. 2, 14 mar. 1974.

[11] ROVIRA, Ramón. El Barcelona deslumbró en Londres. El Mundo Deportivo. Barcelona, p. 2, 14 mar. 1974.

[12] TRIUNFO del F.C. Barcelona en Inglaterra sobre el Arsenal por 1-3. La Vanguardia. Barcelona, p. 44, 13 mar. 1974.

[13] LOS AZULGRANA, superiores a los “artilleros”. La Vanguardia. Barcelona, p. 44, 13 mar. 1974.

 


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Ana Paula Florisbelo

Graduada em História pela Universidade Federal de Goiás - Campus Catalão. Mestranda em História pela Universidade Federal de Goiás - Campus Catalão. Pesquisadora de História da Espanha Contemporânea, com foco nos temas Ditadura Franquista, nacionalismo, identidades, política e futebol. Artista.

Como citar

SILVA, Ana Paula Florisbelo da. “No rugió el cañón”: Cruyff blaugrana contra o Arsenal. Ludopédio, São Paulo, v. 140, n. 1, 2021.
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