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No tempo em que os esportes não queriam as mulheres

Que História! 7 de maio de 2021

Não se preocupe, pois não estamos nos referindo ao tempo presente – apesar de que não é difícil encontrar exemplos contemporâneos que se enquadrem em tal título. Vamos retornar a um tempo que deu origem a diversos preconceitos com os quais convivemos e que ergueu os alicerces do abismo que existe entre homens e mulheres nos esportes.

Vamos falar do começo da popularização das práticas esportivas e de como, já de partida, a presença de mulheres foi rechaçada e até mesmo combatida. Trataremos de acontecimentos que parecem distantes, mas que estão conectados ao presente com a força de correntes, que pouco a pouco vão cedendo, mas não sem muita luta.

Não espere um apanhado histórico com uma pesquisa aprofundada, não é a proposta. O texto é até superficial nisso, pois nosso foco maior é a reflexão. Em suma, é um texto sobre mulheres no esporte, mas diz muito sobre a sociedade que construímos e precisamos desconstruir diariamente, para fazer dela algo melhor.

Não é normal que as mulheres não quisessem experimentar

O subtítulo é uma apropriação de uma fala da historiadora Aira Bonfim em sua participação em nosso canal do Youtube. Originalmente se referia ao futebol, mas cabe perfeitamente ao contexto de diversos esportes.

As práticas de exercícios físicos sempre estiveram no cotidiano das mulheres, seja correndo, nadando ou dançando… Com todo o avançado conhecimento adquirido pelo ser humano (sim, contém ironia), já podemos afirmar com segurança que o corpo feminino é capaz de realizar atividades. E também é sabido que isso sempre foi assim, mesmo nas eras mais primitivas. Não seria diferente com o esporte.

Entretanto, isso foi contestado (como veremos mais adiante) e quando os esportes começaram a aparecer, iniciando uma organização com regras e realizando encontros, primeiro para lazer e depois para competição, o tratamento dispensado para homens e mulheres não foi o mesmo. Na verdade, não houve um tratamento para as mulheres e sim, uma exclusão.

A antiguidade clássica e o esporte para homens na Grécia

A Grécia antiga é o berço dos Jogos Olímpicos, por ter idealizado e realizado a competição que reúne diversos esportes. Essa mesma Grécia tinha uma sociedade que marginalizava as mulheres, excluindo-as de qualquer protagonismo ou papel de decisão – inclusive sobre elas próprias. Não é de se surpreender que a participação delas fosse proibida nos esportes.

Mulheres não podiam participar e sequer assistir aos Jogos Olímpicos, sob a pena de morte (isso mesmo), excetuadas as sacerdotisas, cuja presença era permitida apenas para trazer boa sorte aos participantes e realizar a entrega da coroa de oliveiras aos vencedores.

mulheres na Grécia antiga
Representação das mulheres na sociedade grega antiga. Foto: domínio público

Vem dessa época o argumento que, salvo as várias adaptações, perdura até hoje: a fragilidade dos corpos femininos. Na época, como o acesso ao Stadium se dava via uma região muito montanhosa, dizia-se que o trajeto acarretaria danos fisiológicos às mulheres. Tão nocivo quanto, era o fator político, levantado em diversas pesquisas. Só eram considerados “cidadãos” os que guerreavam, no caso, os homens. Como só esses “cidadãos” podiam ter acesso à política e aos esportes, as mulheres eram submetidas apenas à vida doméstica.

Ao contrário do que se consolidou ao longo dos anos, existem registros de participação de mulheres em competições no período antigo, inclusive com a realização dos Jogos Heranos. Mas o registro histórico da época é muito escasso, no que diz respeito a falar das práticas esportivas por mulheres, principalmente por ter sido documentado por homens, numa ótica que já deixamos claro que relegava a mulher ao último plano.

Bom, dando um pulo histórico, confessado aqui como algo de pouco critério cronológico, vamos para a prática de jogos por mulheres, mesmo que na clandestinidade e sem apoio.

Mulheres jogando ou pelo menos tentando

Da Idade Média até o século XIX, as mulheres viveram num efeito sanfona de hora ter mais espaço, hora perder tudo. Daí vieram os primeiros registros da prática de jogos de bola por parte delas, assim como a inserção em outras práticas, como xadrez, caça e falcoaria.

Em diversos povos asiáticos, africanos, da Oceania e das Américas, muitas vezes ignorados no registro eurocêntrico da história, existem indícios da inserção das mulheres em práticas físicas de caráter recreativo, inclusive com participações junto dos homens.

O Renascentismo e os pensamentos de cunho mais humanista que começavam a surgir na Europa também contribuíram para que as mulheres tivessem acesso a práticas de lazer e esporte, mas logo isso seria tolhido.

Justificando o efeito sanfona citado, temos que lembrar que no século XVII, em diversos contextos e povos, as mulheres não tinham seus direitos civis, sendo tratadas como posses de seus maridos, ou do parente homem mais próximo. Se pensarmos que as práticas da sociedade europeia se espalharam por diversos territórios colonizados, dá pra imaginar o estrago causado.

Isso mudou muito lentamente e só no século XIX as mulheres voltaram a ter acesso a competições esportivas como espectadoras, ainda na condição de acompanhantes de homens. É claro que esse processo se deu de formas diferentes em cada canto do mundo, mas em linhas gerais, a presença e a tutela de homens sempre foi uma constante.

Com esse espaço, as moças passaram a se interessar por esportes e a presença de mulheres começou a ser notada no boliche, cricket, bilhar, arco flecha, futebol e até em jogos na neve. Elas até praticavam, mas de uma forma basicamente recreativa e sob uma espécie de gestão e regulação masculina.

É. O mundo patriarcal cedia um pouco aqui, mas tomava ali. E isso não foi diferente no século XX. As mulheres continuavam a querer praticar esportes, como lazer ou competição, mas precisavam continuar a lutar para ter esse direito.

As Olimpíadas e o esporte regido por homens rejeita as mulheres

Homens decidindo sobre o que as mulheres podem ou não fazer é uma realidade constante ao longo da história. Se em pleno 2021 ainda precisamos debater e combater isso, não é difícil de entender como isso influenciou os esportes no início do século XX.

A organização esportiva, com regras e formatação de competições com as características que viriam a se consolidar nos esportes que temos hoje, é um fenômeno mais evidente no fim do século XIX e começo do século XX. E ela se deu sob controle e orientação de homens, na sua ampla maioria ricos, brancos e europeus. Assim, predominou a ótica masculina e, não por menos, as mulheres não tiveram seu espaço garantido.

Alice Milliat foi uma das pioneiras do esporte feminino moderno
Alice Milliat foi uma das pioneiras do esporte feminino moderno. Foto: Milliat Fondation

Construiu-se uma lógica muito difundida e embasada em preconceitos e muito machismo, de que alguns esportes eram mais adequados às mulheres. Destacam-se nesse raciocínio, o tênis e o golf, por não implicarem em contato físico, algo que ameaçava os frágeis corpos femininos (olha aí o argumento de novo).

Essa ideia levou o patrono dos Jogos Olímpicos da Era Moderna, Pierre de Coubertin, a deixar as mulheres de fora dos Jogos de Atenas, 1896, mesmo com atletas mulheres querendo competir. Ele exaltava os ideais clássicos do esporte, inclusive, para negar esse direito às mulheres. Na verdade, ele reconhecia que elas tivessem acesso à educação esportiva e até liberdade para competir, desde que isso fosse feito longe dos olhos dos homens. Muito progressista o aristocrata francês de bigode… Ele viria a ceder e, a partir de 1900, a presença feminina passou a acontecer, com mais ou menos intensidade, mas muito longe de uma equiparação em número de atletas homens e mulheres.

Registro de Pierre de Coubertin próximo do ano de 1900.
Registro de Pierre de Coubertin próximo do ano de 1900. Foto: Domínio Público.

O mesmo se viu nas outras competições esportivas, em nível regional, nacional, continental e mundial. E em praticamente todas as modalidades. Primeiro rejeitadas e depois se tornando uma opção. Isso, pelo fato de que as guerras do início do século XX, que levaram grandes contingentes de homens para os campos de batalha, deram às mulheres espaço na sociedade, seja para trabalhar nas fábricas ou para praticar esportes. Por interesse/necessidade, claro.

Dick, Kerr Ladies F.C. em 1921
Histórica equipe do Dick, Kerr Ladies F.C. em 1921. Foto: Domínio Público

Futebol, lutas, atletismo e natação, por exemplo, passaram a ter jogos demonstração e competições festivas, em que as mulheres competiam entre si. E com relativo sucesso, principalmente no futebol. Era um cenário promissor, mas o pós-guerra e a proliferação de governos conservadores e até mesmo ditatoriais, fez tudo retroceder novamente.

Vários países aprovaram leis que proibiram a prática de esportes vistos como inadequados às mulheres (mais uma vez, o papo dos corpos frágeis). Futebol, lutas, rugby e por aí vai. Tudo que envolvia contato físico era visto como incompatível com a graça e beleza da natureza feminina. Um atraso de décadas na evolução das modalidades femininas.

Proibição do futebol feminino
Decreto-Lei foi publicado em 14 de abril de 1941, no governo Getúlio Vargas. Foto: Divulgação/Museu do Futebol

Não fosse a conscientização feminina de seu papel ativo na sociedade, a organização de movimentos por direitos sociais e, no caso do esporte, aliadas à prática das competições, mesmo que marginalizadas, o quadro não mudaria. Luta, luta e mais luta. Assim, as proibições caíram e as mulheres puderam competir e continuar lutando. Por espaços para lazer, por chances de competir, por patrocínios, por respeito e por aí vai…

O que não muda é a presença dos obstáculos.

O “legado” de machismo e exclusão

Bom, atualmente ainda estamos em plena luta. Até hoje, esportes femininos são vistos como “inferiores”, mulheres atletas sofrem preconceitos de toda sorte e o abismo financeiro em relação aos homens não foi resolvido (na verdade, em alguns casos, até aumentou). Ser mulher no mundo dos esportes continua sendo difícil, mas, como vimos, já foi pior. E só é difícil ainda por causa do legado deixado por toda essa história de machismo e exclusão: o preconceito estrutural.

Ainda vivemos num mundo em que os homens são mais valorizados e sua narrativa prepondera sobre a da mulher. Mundo onde é mais fácil dizer que o esporte feminino é ruim do que olhar pra trás e ver que todos os obstáculos criados atrasaram seu desenvolvimento. Onde não se incentiva uma menina a praticar esporte pois ela será mal recebida nele ou não terá um futuro. Ou pior, que se incentiva, desde que não seja um esporte “para meninos”. Como foi dito no começo do texto, dá até pra pensar que o título se refere aos dias de hoje. Mas, temos que continuar lutando.

Por isso é essencial que seja feito um resgate dessa história, que nos debrucemos sobre ela e sejamos capazes de construir novos caminhos para as mulheres nas práticas físicas, seja de esporte competitivo ou simplesmente de lazer. Opções para educação esportiva, espaços acessíveis e receptivos e fomento ao alto rendimento. Mas tudo passa pelo reconhecimento do passado, que na narrativa dos que oprimem, interessa que seja esquecido.

Pra encerrar, uma dica: parte dessa discussão esteve presente também em nosso último episódio no canal do Que História! Contamos com a apresentação de Fran Pereira, do Canal FalaSis e da pesquisadora e historiadora do esporte, Aira Bonfim.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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O esporte explica a história e a história explica o esporte. O Que História! é um canal dedicado a analisar o contexto histórico por trás de grandes momentos esportivos.

Como citar

HISTóRIA!, Que. No tempo em que os esportes não queriam as mulheres. Ludopédio, São Paulo, v. 143, n. 12, 2021.
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