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O arcabouço do M1to

Victor de Leonardo Figols 14 de dezembro de 2015

O futebol é capaz de propiciar o surgimento de ídolos e heróis. Se o ídolo é aquele que desperta amor, respeito e admiração, além de ser uma pessoa conhecida e reconhecida; o herói é aquele que se distingue dos demais, sua imagem está ligada a grandes façanhas, e mais do que isso, o herói, diferentemente do ídolo, aceita e suporta exemplarmente um destino incomum, destino esse que é recheado de dificuldades e superações. Enquanto o ídolo é o protagonista das ações, aquele que chama atenção nos espetáculos esportivos, o herói só assume a condição de protagonista quando determinada situação o coloca em destaque.

O ídolo normalmente aparece como uma figura midiática, que extrapola o campo esportivo, ganhando, sobretudo, lugar nos anúncios publicitários. Hoje, talvez o maior ídolo do futebol brasileiro seja Neymar. O jogador do FC Barcelona desperta amor, respeito e admiração pelo seu talento com a bola nos pés, mas o fato dele ser conhecido e de ser carismático tem a sua imagem constantemente explorada em anúncios publicitários.

São Paulo 11/12/2015 Estádio do Morumbi , Rogério Ceni no jogo de despedida como jogador de futebol do São Paulo Futebol Clube. Foto Paulo Pinto/saopaulofc.net
São Paulo 11/12/2015 Estádio do Morumbi , Rogério Ceni no jogo de despedida como jogador de futebol do São Paulo Futebol Clube. Foto: Paulo Pinto/saopaulofc.net.

Do outro lado, está o herói, que não é necessariamente uma figura carismática ou reconhecida. Aliás, o futebol está repleto de heróis anônimos, como por exemplo, o autor do gol do Corinthians que deu o título Campeão Paulista, em 1977. Com um gol, Basílio acabou com o jejum de 23 anos sem o Corinthians conquistar nenhum torneio. Longe de ser um jogador excepcional, Basílio também não era ídolo alvinegro, mas o jogador aceitou o chamado para resolver determinada situação, e se tornou um herói. Nesse sentido, ser herói, não é necessariamente uma escolha, na verdade é um chamado, no qual o atleta enfrenta e superas as dificuldades impostas pelas circunstâncias, e, assim, transcende a sua própria condição.

É importante ressaltar que um ídolo pode assumir a condição de herói, por exemplo, Ronaldo, que é ídolo e herói da Seleção Brasileira. O jogador assumiu o papel de ídolo na Copa de 1994, e tomou o posto de herói com a conquista do Mundial de 2002, e com o recorde de gols marcados em Copas do Mundo, em 2006. Todavia, o fato de Ronaldo ser ídolo e herói, concomitantemente, não lhe dá o status de mito. A propósito, a condição de mito no futebol brasileiro só é atribuída a um personagem, a Rogério Ceni.

O goleiro do São Paulo FC é ídolo da torcida tricolor, na medida em que tem o seu talento conhecido e reconhecido, em que desperta amor, respeito e admiração; Rogério Ceni é um herói do São Paulo, pois superou as dificuldades impostas e conquistou diversos títulos com a camisa do tricolor paulista. Porém, para entender como Rogério Ceni atingiu a condição de mito é necessário entender a sua trajetória enquanto herói.

São Paulo 11/12/2015 Estádio do Morumbi , Rogério Ceni no jogo de despedida como jogador de futebol do São Paulo Futebol Clube. Foto Paulo Pinto/saopaulofc.net
São Paulo 11/12/2015 Estádio do Morumbi , Rogério Ceni no jogo de despedida como jogador de futebol do São Paulo Futebol Clube. Foto: Paulo Pinto/saopaulofc.net.

O caminho percorrido pelo herói se divide em três momentos: partida, realização e retorno. A parida aconteceu quanto o jovem goleiro vindo do pequeno time de Sinop chegou ao São Paulo. Foi nesse momento em que Rogério foi enfrentar o mundo desconhecido de se tornar jogador de futebol profissional. Foram três anos jogando nas categorias de base do tricolor paulista, alternando entre a titularidade do time reserva do São Paulo, com a reserva do time principal. Aquela altura, Rogério Ceni já havia convivido tempo suficiente com os maiores jogadores que vestiram a camisa do São Paulo até então, e também já tinha experimentado as glórias de ser campeão da Libertadores da América e do Mundo. Esses títulos podem ser entendidos como o chamado, já que seriam perseguidos ao longo da carreira do goleiro.

Entre 1993 a 1996, Rogério viveu entre o time reserva e o time principal da equipe do São Paulo. Foi nesse período que o jogador passou a chegar mais cedo nos treinos e chutar bolas despretensiosamente em direção do gol. A atividade foi aprimorada quando se acrescentou uma barreira, simulando, assim, uma cobrança falta. Um ano depois, em 1997, Rogério já era o goleiro titular do tricolor paulista, é a partir desse momento em que Rogério Ceni começou a realização da caminhada heroica.

De 1997 a 2005, o goleiro, agora na condição de artilheiro também, perseguiu a conquista da Liberadores, e consequentemente do título de Campeão do Mundo. Nesse período, Rogério somou apenas 34 gols e três títulos (Campeonato Paulista de 1998 e de 2000, e Supercampeonato Paulista de 2002), além de uma coleção de quedas em semifinais, no Campeonato Brasileiro de 1999, na Copa do Brasil de 2002 e Libertadores da América de 2004.

Mas em 2005 foi diferente, naquele ano, Rogério Ceni começou a realizar os seus feitos como herói, e passou a trilhar o caminho para se tornar um mito. Três títulos em um ano: um Paulista, uma Libertadores e um Mundial, além de ter marcado 21 gols em uma temporada. Se a trajetória da Libertadores e do Mundial foram momentos em que Rogério Ceni atendeu o chamado e realizou feitos heroicos, foi na final do Mundial que o goleiro superou todos os obstáculos impostos e ratificou a condição de herói. E mais do que isso, foi ali, fazendo o melhor jogo da sua carreira, levando o São Paulo ao título, vencendo o Liverpool – que aquela altura era o melhor time da Europa – que Rogério se tornou um mito. Os atos quase sobrenaturais realizadas naquela partida em 2005, elevaram o goleiro a outro patamar, para além do herói, colocando-o como um ser sobrenatural capaz de realizações impossíveis, excedendo os limites de um atleta de futebol.

São Paulo 11/12/2015 Estádio do Morumbi , Rogério Ceni no jogo de despedida como jogador de futebol do São Paulo Futebol Clube. Foto Paulo Pinto/saopaulofc.net
São Paulo 11/12/2015 Estádio do Morumbi , Rogério Ceni no jogo de despedida como jogador de futebol do São Paulo Futebol Clube. Foto: Paulo Pinto/saopaulofc.net.

Rogério Ceni é mito porque confere sentido a um determinado grupo, no caso a torcida do São Paulo. Diferentemente do herói clássico, o mito Rogério Ceni é um representante da comunidade são-paulina. Se na narrativa heroica o protagonista é guiado e orientado pela sociedade, no caso do futebol pela torcida, com Rogério Ceni é o contrário, o goleiro na condição de mito, lidera o São Paulo e levando-o às conquistas, porque Rogério compartilha dos mesmos desejos e anseios – para não dizer as mesmas obsessões – que a torcida do São Paulo.

O mito também tem em sua essência a subversão da lógica. Rogério Ceni subverte a lógica quando passa a marcar gols, para além de evitá-los, quando vira goleiro-artilheiro. Rogério Ceni subverte a lógica quando representa a torcida da qual faz parte, ou quando não só aceita a condição de herói que lhe é imposta, como persegue essa condição. Rogério Ceni é ídolo, é herói e é mito.

Referências

CAMPBELL, J. O herói de mil faces. São Paulo: Cutrix, s/d.

FIGOLS, V. L. “As Copas de Ronaldo: a imagem de um herói”. In: GIGLIO, Sérgio Settani; SILVA, Diana M. M.. (Org.). O Brasil e as Copas do Mundo: Futebol, História e Política. 1ed. São Paulo: Zagodoni Editora, 2014, v. 1, p. 97-108.

GIGLIO, S. S. Futebol: mitos, ídolos e heróis. 2007.162 f. Dissertação (Mestrado em Educação Física) – Curso de Educação Física, Departamento de Educação Física, UNICAMP, Campinas, 2007.

RUBIO, K. O atleta e o mito do herói: o imaginário esportivo contemporâneo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.

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Victor de Leonardo Figols

Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) (2022). É Mestre em História (2016) pela Universidade Federal de São Paulo - Escola de Filosofia Letras e Ciências Humanas (EFLCH) - UNIFESP Campus Guarulhos. Possui Licenciatura (2014) e Bacharel em História (2013) pela mesma instituição. Estudou as dimensões sociais e políticas do FC Barcelona durante a ditadura de Francisco Franco na Espanha. No mestrado estudou o processo de globalização do futebol espanhol nos anos 1990 e as particularidades regionais presentes no FC Barcelona. No doutorado estudou a globalização do futebol espanhol entre os anos 1970 a 2000. A pesquisa de doutorado foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Trabalha com temas de História Contemporânea, com foco nas questões nacionais e na globalização, tendo o futebol como elemento central em seus estudos. É membro do Grupo de Estudos sobre Futebol dos Estudantes da Unifesp (GEFE). Escreve a coluna O Campo no site História da Ditadura (www.historiadaditadura.com.br). E também é editor e colunista do Ludopédio.

Como citar

FIGOLS, Victor de Leonardo. O arcabouço do M1to. Ludopédio, São Paulo, v. 78, n. 6, 2015.
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