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O ato de protesto

José Paulo Florenzano 6 de maio de 2021

No final de março de 1978, a Seleção Brasileira excursionava pela Europa, preparando-se para a Copa do Mundo. O major Cléber Camerino tinha sido enviado antes para discutir com a gerência do Hotel Sheraton, em Montparnasse, a melhor maneira de “preservar os jogadores de qualquer ameaça à sua integridade ou privacidade.”[1] Em Paris, poucos dias antes do amistoso com a França, uma manifestação de protesto diante da embaixada da Argentina pôs em alerta os tenentes, capitães e majores que cuidavam da segurança do selecionado nacional.[2] Reinaldo, por sua vez, não escondia à reportagem da revista Placar suas apreensões com a mobilização em curso na Europa:

Fiquei até com medo, quando cheguei a Paris. Uns jornalistas de lá vieram me procurar para falar do assunto.[3]

Tratava-se do boicote à Copa na Argentina.[4] A entrevista de Reinaldo ao jornal Movimento, naquele mesmo mês de março, reivindicando os direitos políticos que haviam sido suprimidos pela ditadura militar, ultrapassara as fronteiras nacionais, transformando o atleta em uma referência crítica.[5] Em Hamburgo, próxima parada da turnê brasileira, os jornalistas voltaram a campo, tentando convencê-lo a assinar o “manifesto de Breitner” em “protesto contra o regime argentino”.[6] Conforme admitia o centroavante: “foi um momento de tensão”. Com efeito, a entrevista ao jornal Movimento tinha colocado em risco a presença de Reinaldo no Mundial e um novo gesto de rebeldia poderia selar de vez o corte do elenco. Compreende-se, assim, a sua reação diante da visita inesperada dos jornalistas no hotel onde ele se encontrava hospedado em Hamburgo:

Fiquei até louco. Disse que não podia assinar, que estava fora, que não topava.[7]

Reinaldo
Ilustração: Xico.

 

Os periodistas insistiram no argumento do boicote, avisando que o aguardavam, caso mudasse de ideia, em um jornal de Hamburgo: “Não fui”, acrescentava o jogador, perguntando-se, ademais, como eles “conseguiram entrar no hotel para falar comigo”. A reportagem da revista Placar, assinada pelo repórter Sérgio Carvalho, transmite-nos uma atitude que a princípio não se coaduna com a imagem combativa que hoje cultivamos de Reinaldo. Sobretudo porque entre a destemida entrevista concedida ao jornal Movimento e a recusa apreensiva ao manifesto de boicote, não havia se passado sequer um mês. Sendo assim, supondo-se correto o relato do semanário esportivo, como interpretar a aparente reviravolta na posição política do jovem atleta?[8]

A análise da questão em tela deve considerar ao menos três aspectos importantes, a saber: primeiro, situar a recusa de Reinaldo no contexto histórico do país; segundo, considerar a correlação de forças no campo futebolístico; e, por fim, avaliar o capital simbólico que ele havia acumulado até aquele momento.   

No que concerne ao primeiro aspecto, precisamos ponderar, antes de mais nada, que o Brasil ainda se encontrava sob uma ditadura militar, com todo o corolário de arbitrariedade, violência e coação que tal regime implica. Se a margem de atuação das organizações populares da sociedade civil se achava ampliada, isto não eliminava os riscos envolvidos na tomada de posição contra o poder, fosse o do Palácio do Planalto, fosse o da Rua da Alfândega.

No que diz respeito ao campo esportivo, já se verificava no final dos anos setenta uma articulação incipiente da categoria ao redor das associações de atletas de São Paulo e do Rio de Janeiro e os atos de rebeldia se multiplicavam, fustigando o exercício do poder. A correlação de forças, no entanto, estava longe de pender a favor dos atletas profissionais. O autoritarismo no aparelho de produção dos clubes, o mecanismo jurídico da lei do passe e o discurso conservador da imprensa esportiva, constituíam obstáculos importantes na luta dos trabalhadores da bola.

Por último, mas não menos importante, o almirante Heleno Nunes ameaçava enquadrar o atleta cujo comportamento não estivesse de acordo com a norma do jogador-soldado. Nesse sentido, o presidente da CBD dizia abertamente que Reinaldo possuía “remotas possibilidades de ser aproveitado na Copa”.[9] Os motivos alegados eram os “problemas físicos” que de fato atormentavam a carreira do centroavante mineiro. Mas parece-nos evidente que a pressa em emitir uma sentença política, disfarçada de veredicto médico, devia-se à corajosa e incômoda entrevista por ele concedida ao jornal Movimento.

Eis, em suma, os dois contextos inter-relacionados que nos ajudam a situar e compreender melhor as reações de Reinaldo no hotel da cidade de Hamburgo, diante dos apelos que lhe foram feitos pelo movimento de boicote à Copa da Argentina. Resta-nos avaliar o capital simbólico que ele havia acumulado até aquele momento.[10] Ora, no início de 1978, Reinaldo possuía projeção nacional como artilheiro do Campeonato Brasileiro, consolidava a condição de “rei” diante da torcida atleticana e arrebatara a eleição promovida pelo jornal O Estado de Minas como “craque” do futebol mineiro de 1977. Graças às suas atuações magistrais, Reinaldo tornava-se não somente um forte candidato ao posto de centroavante da Seleção, como, sobretudo, um personagem histórico coagido a desempenhar o papel lendário de um “novo Tostão”.[11] Ao mesmo tempo, porém, que se via alçado ao plano mítico do futebol, ele se debatia com o problema humano do joelho esquerdo -, flanco habilmente explorado pelo Almirante Heleno Nunes para ameaçá-lo de corte caso não se enquadrasse politicamente.

Reinaldo, portanto, enfrentava uma tripla ameaça. Ele precisava superar o problema físico de um joelho sem meniscos; encaixar-se como um novo Tostão no esquema tático do time; e driblar o apelo político do movimento de boicote. Sob este último aspecto, o jogador do Atlético Mineiro enfrentava o desafio de não abdicar do sonho de participar de uma Copa do Mundo, sem, contudo, trair o compromisso de viver em uma sociedade democrática.

A saída encontrada pelo jovem atleta de 21 anos foi simplesmente genial. Depois de separar esporte e política, recusando-se a aderir ao movimento de boicote à Copa da Argentina, ele utilizaria a audiência planetária proporcionada pelo evento para expressar uma mensagem de protesto no campo de jogo, celebrando o gol de empate contra a Suécia, na partida de estreia do Brasil, com o punho cerrado, símbolo da luta dos grupos subalternos na sociedade contemporânea.

A estratégia utilizada por Reinaldo remete-nos mais uma vez às questões centrais delineadas em nosso quadro de análise, a saber: quais são as condições de possibilidade do gesto de protesto no campo esportivo? Como explorar a potência do ato que ele encerra? Até que ponto o capital simbólico acumulado pelo atleta o protege dos riscos de represália?  Voltaremos ao tema no próximo artigo.


[1] Cf. “Franceses têm novo desfalque”, Jornal do Brasil, 28 de março de 1978.

[2] Cf. “Seleção enfrentará boicote”, O Estado de S. Paulo, 26 de março de 1978.

[3] Cf. “Três dribles no corte”, revista Placar, 5 de maio de 1978.

[4] Cf. “Na Europa, um plano para boicotar o Mundial”, O Estado de S. Paulo, 7 de dezembro de 1977. Sobre o tema, ver a obra da historiadora Lívia Gonçalves Magalhães: “Com a taça nas mãos: sociedade , Copa do Mundo e ditadura no Brasil e na Argentina”, Rio de Janeiro, Lamparina/Faperj, 2014. A autora analisa com acuidade a criação na França do Comitê de Boicote contra a Copa do Mundo na Argentina (COBA), no final de 1977, reunindo grupos de esquerda e exilados argentinos.

[5] Entrevista de Reinaldo ao jornal Movimento, nº 140, 6 de março de 1978.

[6] Cf. “Três dribles no corte”, revista Placar, 5 de maio de 1978. Paul Breitner foi jogador do Bayern de Munique, do Real Madrid e da Seleção Alemã, com a qual conquistou a Copa de 1974. Em abril de 1978 ele publicou um artigo na revista Stern, criticando a ditadura militar na Argentina. 

[7] Cf. “Três dribles no corte”, revista Placar, 5 de maio de 1978.

[8] Na biografia autorizada “Punho cerrado: a história do Rei”, Belo Horizonte, Letramento, 2016, escrita pelo filho do jogador, Philipe Van R. Lima, consta a seguinte menção ao protesto contra a Copa na Argentina: “Na Europa, intelectuais de esquerda como Jena Paul Sartre tentaram, sem sucesso, um movimento de boicote ao Mundial”, p.147.  Mais adiante, na mesma página, o texto corrobora o teor da matéria publicada pela revista Placar: “Em certos momentos” Reinaldo “até se incomodava de falar tanto de política”, uma vez que “sua atividade era o futebol” e naquele momento “esse era o seu foco”.

[9] Cf. “Heleno admite que Reinaldo é a maior preocupação”, Jornal do Brasil, 29 de março de 1978.

[10] O capital simbólico no campo esportivo deve ser pensado em relação com o capital futebolístico, conceito elaborado a partir do aparato teórico de Pierre Bourdieu pelo antropólogo Arlei Sander Damo. “Do dom à profissão: a formação de futebolistas no Brasil e na França”, São Paulo, ANPOCS/HUCITEC, 2007.

[11] Sobre o “novo Tostão”, Cf. Coluna: Campo Neutro, José Inácio Werneck, Jornal do Brasil, 5 de janeiro de 1978.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. O ato de protesto. Ludopédio, São Paulo, v. 143, n. 11, 2021.
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