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O centésimo a gente nunca esquece

Clayton Denis Alino da Silva 9 de abril de 2021

Sempre há aquele momento no futebol que a gente não esquece. Como foi a jogada completa daquele gol? Quais os atletas que estavam no plantel na final daquele título? Com quem e onde você estava durante aquela Copa do Mundo? Este texto, pois, falará de um dos meus momentos favoritos. Não valeu um troféu ao meu time, mas eu, contido, comemorei como se fosse um.

Para aqueles que gostam do esporte, o futebol contempla uma prazerosa área afetiva em que até o sofrimento satisfaz. Acionam emoções que são potencializadas em partidas e campeonatos disputados pelas equipes das quais se torcem. Mas o torcer é uma ação para além do momento esportivo. É algo cotidiano, porque se é torcedor e gosta-se do time durante a semana toda, independente do time estar jogando ou não.

É dentro dessa relação de emoção, e do caráter sociocultural do futebol, que podemos entender alguns aspectos do esporte, do torcer e das relações de sociabilidade que são fortalecidas por ele na sociedade brasileira e na paixão dos brasileiros.

Era 27 de março de 2011, um domingo. Eu era um jovem universitário de vinte anos e que, naquele dia, estava na cidade dos meus pais, no interior do Paraná. Lembro-me ainda que fui à festa de aniversário de um amigo, o João Luiz, que realizara um churrasco para comemorar a nova idade.

Eu conhecia pouca gente na festa além do aniversariante, mas era um lugar bonito, com piscina, boa comida e bastante cerveja para um dia de calor. Além do João, estava comigo também outro amigo, Herman, e alguns daqueles “conhecidos de vista” que eu não tinha e até hoje não tenho tanto contato. Havia cerca de 30 pessoas na festa, uma música animada e pequenas rodas de conversas que se espalhavam pelo salão e pela área da piscina e da churrasqueira.

Fiquei por lá curtindo a tarde, bebendo, comendo e acompanhando o Herman e passeando por entre pessoas, conversando com aqueles que o Herman tinha mais afinidades, conhecendo outros. Apesar de conhecer pouca gente lá, os churrascos em cidades pequenas sempre se apresentam como bons momentos para a interação.

Próximo às 16 horas, trouxeram uma televisão para o meio do salão e rapidamente a conectaram com o cabeamento elétrico e da antena parabólica, deixando-a pronta para o horário da partida. Alguns “piás” do churrasco se alinharam com as cadeiras em frente ao televisor e deixaram seu volume ao máximo, duelando com as músicas do churrasco. A partida era entre São Paulo e Corinthians.

O norte paranaense é uma região em que raramente encontramos torcedores dos times do estado, em exceção ao Londrina Esporte Clube, único time da região que sobrevive no tempo-espaço do futebol brasileiro. Por ser um local marcado por cidades jovens, população imigrante e distante da capital, os pés-vermelhos, denominados de acordo com a cor da terra da região, costumeiramente torcem para times do eixo Rio-São Paulo ou do Rio Grande do S/ul.

A grande adesão da torcida norte-paranaense por clubes de outros lugares e outros estados se dá, principalmente, por uma trinca de explicações que podem se fundir: a) o fraco desempenho das equipes locais diante de um macro e disputado cenário futebolístico nacional; b) o torcedor ou sua família não são de origem da reigão e torcem para times de sua terra natal; e c) a grande influência nos modos de torcer através das mídias como rádio e televisão que priorizam a transmissão nacional de partidas com conteúdo de equipes do sudeste, e que faz com que os torcedores locais criem laços com outras equipes. Há ainda, no Norte-Paranense, outros clubes de futebol de menor expressão ou não-profissionais e que disputam campeonatos de menor escala, excluindo o Londrina Esporte Clube que se destaca no cenário estadual e na disputa da série B do Campeonato Brasileiro (ALINO-SILVA, 2019). Alguns torcedores possuem uma bifiliação de equipes “do coração” para se torcer, onde comumente o torcedor se compromete a torcer para o time da sua cidade ou da região, de preferência aquelas equipes do interior e de menor investimento num cenário nacional, sem deixar de ter uma equipe nos grandes campeonatos nacionais, ou até equipes de outros países (VASCONCELOS, 2014).

Portanto, aquele Clássico Majestoso era importante para o cenário futebolístico local. Não somente pelo jogo em si, mas porque o Corinthians não perdia para o São Paulo havia quatro anos e, principalmente, pela possibilidade do centésimo gol de Rogério Ceni, que, pelo título do artigo, o leitor já pode ter a confirmação de que aconteceu.

E lá estava eu, torcedor são-paulino, tricolor, que acompanha a equipe sempre que pode por transmissões esportivas e noticiários digitais, já que a geografia me fez torcedor de sofá. Lembro de estar muito ansioso para o jogo e principalmente pelo gol 100 daquele que eu considero, até hoje, 10 anos depois, o maior jogador de futebol que já vi atuar – cujo clubismo eu deixo o leitor debater.

Não demorando muito após o início da partida, me sentei junto aos que formaram a linha em frente à tevê, mas me mantive pouco mais afastado. Os rapazes eram todos corintianos e de início eu não tive muita possibilidade de abertura para me aproximar. Meus amigos, João Luiz e Herman, são palmeirenses, então não me acompanharam na assistência à partida, preferindo ficar pela área da churrasqueira.

O jogo começou a mil, as duas equipes demonstravam muita vontade, o que gerava algumas conversas entre rapazes, que, aos poucos, entre a distribuição de cerveja nos copos e comentários técnicos e jocosos sobre alguns lances da partida, acabei por me incluir.

[…] o futebol funda uma sociabilidade assentada em um jogo de diferenças e oposições. Retomando o aspecto lúdico em suas várias dimensões, como fruição e festa, mas também como negociação e excesso, ele recria a cada jogo ou partida diferenças simbólicas entre torcedores. […] pensar o conflito no futebol é pensar na polissemia promovida por sua sociabilidade. Sociabilidade que consegue unir adversários em uma mesa de bar […] bem como segregá-los nas arquibancadas (TOLEDO, 1996, p.104).

Apesar do Corinthians estar melhor em campo, aos 29 minutos de partida Dagoberto acertou um belo chute de longe, que inaugurou o placar: 1 a 0, Tricolor. Um gol bonito, que me dava um ânimo maior. Já que, como disse, havia muito tempo que “meu” time não vencia o Corinthians. A atenção da partida era toda em cima de Rogério Ceni, que fez boas defesas e foi determinante para que a equipe deixasse o primeiro tempo na frente com o placar mínimo.

Durante o intervalo, saí da frente da televisão, fui conversar um pouco lá fora e encher meu copo mais algumas vezes. O sol ainda existia, mas já se apontava para o fim de domingo.

Rogério Ceni
Foto: Reprodução Facebook

Assim como o intervalo, regressei rápido e sentei-me no mesmo lugar. Com barriga e copo cheio, não foi preciso esperar muito. Aos oito minutos do segundo tempo, o juiz apitou falta à beira da área para o São Paulo e o goleiro se deslocou até o ataque para cobrar. A transmissão de televisão o acompanhava, dando ênfase também no grito da torcida: “Puta que pariu, é o melhor goleiro do Brasil!”. E assim o lance seguiu. O número 01 tomou a bola e a beijou antes de ajeitá-la com capricho sob a marca de spray do árbitro. Alguns segundos de preparação do goleiro para arrumar a barreira até o apito de permissão da cobrança. Até a conclusão do lance, ninguém mais respirava em frente àquela televisão.

De repente, quase todos os presentes no churrasco estavam ali para ver a cobrança de falta de Rogério, mesmo que só para aquele lance, ignorando o resto da partida. Ainda, pode se identificar alguns outros dois são-paulinos.

Com um chute de perna direita, a bola passou perfeitamente por cima da barreira e entrou no canto oposto de onde se posicionava o goleiro corintiano; esse que, apesar de ainda tocar na bola, não pôde evitar que o gol centésimo acontecesse.

Eu me levantei gritando e comecei a aplaudir. Não mais sozinho, mas junto a outros são-paulinos que também comemoraram comigo e me cumprimentaram em alegria. Fiquei sinceramente arrepiado de emoção com a festa do goleiro e da torcida pela televisão e de orgulho por ter sido um ídolo que tinha e ainda tenho no esporte. Nascido no começo dos anos noventa, até o momento de aposentadoria de Ceni, eu nunca vi outro goleiro ser titular do time que torço, e foi assim por mais de vinte anos.

Os corintianos ali reclamaram, disseram que a falta não havia existido, que o gol não era o centésimo de Rogério, entre outras frases que tentavam deslegitimar aquele centésimo. Mas, no fim, todos sabiam que não havia debate. A história estava feita.

Rogério Ceni
Foto: Reprodução Twitter

Rogério Ceni já detinha diversos recordes no futebol, entre eles o de maior goleiro artilheiro, mas a marca de cem gols é histórica pela posição e pelo aproveitamento do goleiro em seus chutes; imagina se fosse um goleiro europeu que tivesse alcançado essa marca, qual teria sido a repercussão?

E, depois do gol, o jogo foi só um jogo, eu simplesmente abandonei a frente da tela. E fui comemorar, brindar cada copo ao número 01 – que nunca foi à toa, mas uma alegoria ao número tradicional que se remete ao goleiro de um time, o 1, e o número do craque, o 10. A sensação era de ter sido campeão, de ter sido um título tão grande quanto o de um mundial de clubes, ou de uma Libertadores. Lembro de ter falado sobre o lance outras várias vezes até o fim do churrasco e de ter ido pra casa para assistir à matéria sobre o gol no programa Fantástico. Obrigado, Rogério Ceni. E obrigado, futebol.

 

Referências

ALINO-SILVA, Clayton. Futebol em mesa de bar: o torcer na cidade de Londrina. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Estadual de Londrina, 2019.

TOLEDO, Luiz Henrique. Torcidas organizadas de futebol. Campinas, Autores Associados/ Anpocs, 1996.

VASCONCELOS, Artur Alves. Eu Tenho Dois Amores que em Nada São Iguais: Bifiliação Clubística no Nordeste. Ponto Urbe, n. 14, 2014.

Sobre o LELuS

Aqui é o Laboratório de Estudos das Práticas Lúdicas e de Sociabilidade. Mas pode nos chamar só de LELuS mesmo. Neste espaço, vamos refletir sobre torcidas, corporalidades, danças, performances, esportes. Sobre múltiplas formas de se torSER, porque olhar é também jogar.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Clayton Alino-Silva

Fanático por jogos e esportes, tradicionais e eletrônicos - Pesquisa performances e rituais em atividades lúdicas como brincadeiras, jogos e torcer. Bacharel e mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina e especialista em Antropologia Política pela FLACSO-Argentina. Pesquisador do Laboratório de Estudos das Práticas Lúdicas e de Sociabilidades (LELuS/UFSCar) desde 2020.

Como citar

SILVA, Clayton Denis Alino da. O centésimo a gente nunca esquece. Ludopédio, São Paulo, v. 142, n. 18, 2021.
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