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O clube que vai além

Thales Machado 29 de setembro de 2019

Fomos até Hamburgo, na Alemanha, conferir os mitos, as verdades as histórias e as lições do bairro que abriga o time mais revolucionário do futebol mundial

O clube de futebol que teve um presidente gay. O time que entra em campo ao som de rock and roll e só tem torcedores de esquerda. O clube alemão da caveira, das bandeiras do Che Guevara, que luta contra o racismo, o fascismo e o machismo. O clube, enfim, que deixa louco qualquer combatente contra o futebol moderno.

Foi carregado desse misto de noções, mitos e clichês que no dia 31 de outubro desembarquei em Hamburgo, a segunda maior cidade da Alemanha, para passar quatro dias no peculiar bairro de Sankt Pauli, enviado pelo Puntero Izquierdo. Queria descobrir o que era mito e o que era verdade sobre o fenômeno cult em forma de clube de futebol chamado FC Sankt Pauli.

Hells Bells, canção potente do AC/DC, toca toda vez que o time entra no gramado do Millerntor-Stadion. Há de fato uma cultura de esquerda entre os torcedores do clube, embora nem todos votem necessariamente assim. Também cabe confirmar que além da caveira, as bandeiras do Che e outras manifestações contra o fascismo, o racismo e o machismo são facilmente vistas em um jogo do St. Pauli. E sim, é verdade que o time teve mesmo um presidente homossexual assumido, Corny Littmann, entre 2002 e 2010. O mito é tão grande que algumas publicações, brasileiras e estrangeiras, chegam a dizer que o clube teve um presidente transexual. Mas a verdade, além do fato de Corny ter levado o St.Pauli da terceira divisão do futebol alemão para a elite da Bundesliga, é que o ex-presidente é dono de dois teatros no bairro, tem forte atuação junto à classe artística da cidade e já se apresentou vestido de mulher algumas vezes.

É neste estilo meio Nelson Rubens, de aumentar sem inventar, que o St. Pauli vive — do mito e apesar do mito. Exageros e idealizações à parte, de fato há uma história diferente, um curioso modo de viver o futebol naquele bairro de trabalhadores próximo ao centro de Hamburgo, às margens do Rio Elba. Conhecer o bairro, aliás, é a melhor forma de entender o St. Pauli.

Souvenirs do time alternativo à venda no aeroporto de Hamburgo.

Assim que cheguei à cidade, fiquei estupefato em uma dessas lojas do aeroporto. Naqueles estabelecimentos para tirar os últimos euros de um turista que se vai, com souvenirs de todos os tipos, a parte dedicada aos produtos do St. Pauli era maior, mais bonita e mais variada do que a do Hamburgo SV, o time que leva o nome da cidade.

Pensava eu, até aquele momento, estar vindo para cobrir o time “alternativo” local, incomparável em matéria de torcida e potência econômica em relação à principal equipe da cidade. A comparação é até injusta dentro de campo: o Hamburgo SV, conhecido no Brasil por ter perdido a final do Mundial de Clubes de 1983 para o Grêmio, tem uma coleção vasta de troféus: Liga dos Campeões, Recopa Europeia, Copa Intertoto, seis vezes campeão alemão, cinco Copas diferentes conquistadas, além de ter sido o único clube a disputar a primeira divisão da Bundesliga todos os anos desde a sua criação, na década de 1960. O St. Pauli, por outro lado, tem no máximo troféus de terceira divisão ou de competições regionais, e sua máxima glória é ter estado por sete temporadas na elite da Bundesliga. O maior orgulho da torcida é a vitória contra o poderosão Bayern de Munique na temporada 2001/02, com Oliver Kahn, goleiro da Seleção Alemã e tido como o melhor do mundo, no gol adversário. A vitória é marcante porque foi contra um time que representa tudo aquilo que o St. Pauli não é e não almeja ser: rico, vitorioso e cheio de estrelas, como era aquele Bayern que tinha acabado de se tornar campeão mundial de clubes em 2001. A vitória, uma das maiores festas que o bairro já viu, rendeu uma camiseta comemorativa histórica para o clube, a dos “Weltpokalsiegerbesieger”, “os vencedores dos campeões mundiais”. Quase 15 anos depois, ela segue à venda na lojinha do aeroporto. Custa um pouco mais barato na loja oficial do clube, ao lado do estádio, estabelecimento visto com maus olhos por uma parte mais radical da torcida, na teoria de que fazer marketing e vender a marca do clube é algo capitalista demais para os princípios daquela comunidade.

Não há tempo para compras e nem muitas perguntas ao vendedor. Preciso pegar o trem até Sankt Pauli, fazer o check in no hotel e começar a conhecer melhor o clube e sua cultura da melhor forma possível: em uma partida de futebol. É segunda à noite, dia de jogo contra o Nuremberg, fechando a 11ª rodada da Bundesliga 2. No momento em que chego a Hamburgo, repito, último dia de outubro, o St. Pauli é o Sampaio Corrêa da Alemanha: fora a simpatia em comum, o time amarga a lanterna, com ameaça real de rebaixamento para as divisões inferiores, com apenas cinco pontos conquistados, uma vitória e dois empates em dez jogos disputados.

Nos Estados Unidos, na época, Donald Trump era apenas um candidato improvável, hoje está eleito presidente dos Estados Unidos. Em Cuba, Fidel Castro estava vivo, hoje está morto. A PEC 55 não estava aprovada. Na Alemanha, o St. Pauli segue, mais de dois meses após minha visita, na lanterna e cada vez mais ameaçado pelo descenso. Jogou mais seis jogos, venceu apenas um, perdeu três, dois por 1 a 0 com gols contra de seus próprios jogadores. Venceu apenas dois jogos em toda a primeira metade do campeonato. É inefável a conclusão, olhando para a tabela, que 2016 foi um ano difícil para a esquerda — até mesmo na segunda divisão do campeonato alemão.

A noite no bairro de Sankt Pauli.

Três horas antes de a bola rolar chego ao hotel, localizado na Reepehrbahn, a mais famosa avenida do bairro de Sankt Pauli e que, por consequência, leva a fama do bairro, mais famoso até que o próprio clube para a maioria dos europeus. Luzes neon, bares, casas de strip tease, bêbados, prostitutas, ofertas de shows de sexo ao vivo e teatros são fáceis de encontrar na avenida, e temo ter encontrado ao menos um exemplar de cada um nas três esquinas que andei da estação de trem até o hotel. A Reeperbahn faz a fama do bairro como um local de muita diversão, bebida e sexo pago: é um red light disctrict alemão com fama internacional quase tão grande quanto o de Amsterdã.

Meu caminho, ao menos neste momento, é por uma rua perpendicular à “perdição”. Nem cinco minutos andando e já avisto, imponente, o Millentor-Stadium, a bonita casa do St. Pauli. No portão principal, vê se o símbolo gigante do clube abaixo de três bandeiras: uma leva o escudo, outro a caveira com os ossos, o símbolo pirata e não oficial do clube, e a terceira tem as cores do arco íris do movimento LGBT. Mas este é só o segundo grande impacto da minha experiência da noite, já que o primeiro é ver o entorno do estádio completamente abarrotado de gente tomando cerveja, escutando rock e comendo salsichões. A casa vai estar cheia para um jogo do último colocado da segunda divisão. O clima é de Palmeiras decidindo título, mas sem ruas fechadas no entorno.

A fome bate e, do lado de uma loja onde alguns punks vendem camisetas do time e da torcida, observo uma barraca que vende as mais clássicas comidas de rua alemã. Em dúvida sobre uma salsicha que leva o nome do clube, e na ânsia jornalística pela experimentação, resolvo perguntar para o sujeito atrás de mim na fila do que se trata.

“Não faço a mínima ideia, mas se eu fosse você não pedia, tem uma conotação um pouco sexual em alemão”, me diz às gargalhadas Bernd Großheim, um sujeito de quase dois metros de altura, simpático, que se empolga ao saber que eu, jornalista como ele, estou ali para contar mais sobre o St. Pauli para o Brasil.

Ele faz questão então de me pagar um currywurst, prato mais tradicional, menos sexual, um salsichão misturado em curry e ketchup. Enquanto comemos, ele me tira as primeiras dúvidas de tudo aquilo que estou vendo.

“Mas é claro que vai estar cheio. Não tenho dúvidas que vai ser lotação esgotada hoje, porque é assim sempre. E se formos para a terceira divisão ano que vem, isso aqui vai estar como hoje em todos os jogos. É muito mais do que o resultado dentro de campo. Também importa, mas é o clube do bairro, do pessoal daqui, então sempre vamos estar aqui.”

Estádio sempre cheio, apesar da crise.

A atmosfera

Bernd é do tipo que curte a fama internacional de seu clube, conta que aonde vai no mundo a camisa sempre é reconhecida, mas ressalta que o St. Pauli não é um clube “turístico”: a maioria dos torcedores vão a pé, das suas casas no bairro até lá. É um clube de bairro.

Existem ainda outros torcedores, diferentes do meu novo amigo, que não curtem mesmo a onda turística. A “extrema esquerda” da torcida não cobra resultados, e sim uma manutenção da identidade. Chegam a ser verbalmente agressivos com turistas e imprensa estrangeira, e alguns defendem até que não há problema algum em sair da Bundesliga, ser rebaixado para as ligas regionais, assim o clube voltaria a suas origens (ainda) mais alternativas, sem departamento de marketing, loja oficial, patrocinadores, assentos VIP e poderia até a voltar a produzir os próprios uniformes artesanalmente. São os radicais, como Doc Mabuse, morador de Hamburgo e ex-líder de uma banda punk da cidade. Doc está na história do St. Pauli por um ato simples: bêbado, um dia, voltando do estádio, comprou uma bandeira com o símbolo pirata, com uma caveira, e levou ao estádio no jogo seguinte. Foi o início de um símbolo que aos poucos virou a marca do St. Pauli. Hoje a caveira está presente nas camisetas, cinzeiros, isqueiros, skates, livros, gorros e até vinhos que podem ser encontrados na loja do clube. Doc, que mantém até hoje a aparência punk, se diz traído. “O futebol profissional foi arruinado pelo dinheiro. E vejo que o ambiente todo mudou, se tornou algo descolado, do tipo ‘estou indo ver o St. Pauli, olha que legal, sou descolado’, esse foi o fim da verdadeira identidade do clube”, contou Doc em uma boa reportagem da VICE sobre a cultura do clube, disponível no Youtube.

Bernd, o meu simpático amigo alemão e mais comedido, algo mais próximo do torcedor comum do St. Pauli de hoje, acertou a previsão de casa cheia: 29.567 pagantes estavam no estádio naquela noite. Fora alguns cambistas na porta, era impossível ir até a bilheteria e comprar um ingresso para ver o time que está em um de seus piores momentos dos últimos dez anos. Fosse eu um desavisado, teria certeza que estaria diante do líder da segundona, ou pelo menos de um clube disputando para subir: estádio absolutamente tomado, atmosfera de festa, cânticos muito mais altos do que se costuma ver em outros estádios europeus. Claro, a bandeira com a caveira de Doc por todos os lados, cachecóis, gorros e uniformes, bem mais presente do que a catedral do bairro, representada no escudo oficial do clube. De repente, toca o sino.

Por mais que já se tenha ouvido falar, é de fato um momento imponente quando os sinos anunciam a entrada do time em campo. É a introdução da música do AC/DC tocada em um sistema de som perfeito. O Millentor é um estádio com roupagem antiga, mas moderno. Atrás do gol há uma parte para a torcida que prefere assistir ao jogo em pé. Como é de se esperar, trata-se da parte mais animada, com as organizadas sendo comandadas por três sujeitos com megafones na mão. As outras áreas do estádio têm arquibancadas com cadeiras e os torcedores ficam sentados, mas se juntam à cantoria com mais frequência que o normal. Acima da área de imprensa, de onde vejo a entrada em campo, assentos VIPs e camarotes para torcedores abastados e, principalmente, patrocinadores. Um ponto de polêmica entre os torcedores, mas um alívio para o clube, já que é uma forma de sobrevivência para o St. Pauli.

Há uma linha tênue entre a fama anticapitalista e a necessidade de fazer dinheiro, aproveitar de todo o marketing e simpatia gerado pelo clube para ganhar capital e sobreviver em um campeonato onde, mesmo na segunda divisão, os orçamentos são altíssimos. É impossível disputar um campeonato de nível elevado, transmitido para o país, feito a Bundesliga 2, sem um plano de negócios. Das incoerências do esporte e da vida: ao mesmo tempo que “plano de negócios” é uma expressão que causa ojeriza se falada na arquibancada do Millentor, essa fama de clube anticapitalista e de esquerda faz o St. Pauli ter uma das maiores receitas entre os 18 times da segunda divisão.

O volume diminui antes mesmo da entrada. O som agora vem das arquibancadas e o apoio é constante até a próxima música que só vem seis minutos depois: Song 2, do Blur, que toca alto quanto quando Buchtmann abre o placar para o St. Pauli. O empolgante “U-hu!” introdutório toma conta do estádio todas as vezes que o time da casa faz um gol. Mais uma tradição. Os cantos de apoio ao time aumentam com a vantagem no placar, e, curiosamente, a maioria deles não tem nenhuma referência às questões políticas e sociais que fizeram o clube famoso. São canções simples, de estrito apoio ao time. E que continuam a ser entoadas mesmo depois que Burgstaller empata para o Nuremberg, aos 20 minutos.

Mensagens antifascistas no estádio.

Os torcedores

A noite é fria, mas não tanto quanto se espera, e um olhar rápido nas arquibancadas permite enxergar que a torcida do St. Pauli tem lá seus punks, roqueiros, tatuados e torcedores com piercings e alargadores gigantes, mas que a grande maioria, no entanto, é de gente “comum”, como em qualquer outro estádio. Homens, mulheres, crianças, velhos, novos, alguns fumando um cigarro atrás do outro, vários com uma caneca de cerveja personalizada de plástico com o símbolo do clube e a foto de algum jogador.

O intervalo é minha senha para abandonar a área de imprensa e seguir até o setor mais popular, não sem antes passar no bar para pegar uma cerveja e levar um copo daqueles para casa. Simpática, a atendente me mostra a variedade de copos disponíveis e um me chama a atenção: além do símbolo do clube, não há nenhum jogador ou treinador estampado, mas o símbolo de uma família de mão dadas correndo, com o recado em letras maiúsculas: REFUGEES WELCOME (refugiados são bem vindos). Fora a felicidade pessoal de ter um copo daqueles para levar para a casa, conheço ali um dos assuntos mais quentes em relação à vida na Europa e ao St. Pauli, que oficialmente apoia a causa dos refugiados.

De perto, no meio da torcida, é possível ver com mais clareza as causas sociais do clube na atmosfera de jogo. As faixas contra o fascismo, o neonazismo, a favor da causa palestina e da liberdade de expressão são presentes, bem como alguns gorros com as cores do arco-íris LGBT se destacam no meio da maioria de uniforme e cachecóis negros e marrom escuro. Quem se destaca, de repente, em um jogo de qualidade duvidosa, é o atacante japonês do St. Pauli, Ryo Miyaichi, que surge cara a cara com o goleiro, faltando dez minutos para o fim da partida. Miyaichi perde o gol feito, e, após os lamentos, ouvem-se aplausos.

“Apoio incondicional, por mais que ele não possa perder o gol. Fiquei irritado, claro, puto. Mas o St. Pauli tem alguns valores maiores do que isso. Você nunca vai ver a torcida vaiando um jogador, nem antes, nem durante, nem depois do jogo. Existe um respeito pela instituição porque ela é nossa. Não vamos vaiar o que é nosso. Fora o respeito, o apreço pela nossa comunidade. Por exemplo, a gente faz questão de receber bem todos os torcedores de todos os clubes. Não cantamos música contra eles, não tem violência, ameaça. Somos a única torcida, inclusive, que imita o ritmo de batida de palmas (uma tradição entre alguns clubes alemães) da torcida adversária antes do jogo para se sentirem em casa. É uma atmosfera diferente que tem que envolver tudo que tenha a ver com o St. Pauli. Mas é claro que ele não poderia ter perdido aquele gol, ainda mais na situação que estamos na tabela”, me conta um torcedor que ainda vai esclarecer muitas coisas nesta reportagem.

Jogadores saúdam torcida, em festa, após um empate em casa.

Tudo o que ele me falaria eu começaria a entender no apito final. Fim de jogo, mais de 22h30 no relógio, um frio do cão. O St. Pauli empata contra um time de meio de tabela em casa, se afunda ainda mais na lanterna, mas ninguém arreda pé. Os jogadores se reúnem no campo, a torcida segue cantando. Eles agradecem, a arquibancada vibra. Pouca gente vai embora. Muitos descem da arquibancada e vão até a entrada do vestiário, grudados na grade. Os jogadores passam e cumprimentam, tocando nas mãos dos fãs. Uns ganham até abraços e há, apesar do meu parco alemão, um claro entendimento de que a torcida está ali apoiando e mandando força para o próximo jogo, ainda que o time esteja chafurdando na lama dos maus resultados.

“Mas é normal, não é nada demais. Ficam porque a gente tem que apoiar, tem o próximo jogo, e ficarão apoiando mesmo que o time perca. Claro que se tivesse sido uma vitória era uma festa maior, mais gente ficava e a festa continuava do lado de fora do estádio, e foi um jogo de noite de segunda, muita gente trabalha cedo na terça, senão era mais gente, e os jogadores têm que passar lá e agradecer, dar as mãos. Isso ajuda.” É o que me conta, me surpreendendo, Maleen Schero, uma das funcionárias da Fanladen, outro fenômeno que tanto me impressionaria quanto me ajudaria a entender o St. Pauli nos dias seguintes.

Portão na Herbertstraße. Mulheres e crianças não podem passar.

Saí do estádio rumo à noite na Reeperbahn e arredores, para conhecer um pouco do famoso bairro pela agitação noturna. Torcedores do St. Pauli se misturavam aos visitantes do Nuremberg bebendo cerveja e entrando em muitos dos bares/boates. Em uma rua específica, o olho chega a doer tamanha a quantidade de luzes neon de diferentes estabelecimentos. Em qualquer esquina, há que se desviar de promoters de bares e de prostitutas ilegais (a profissão é legal em Hamburgo, mas muitas ainda preferem viver na clandestinidade) que oferecem seus serviços. Na Herbertstraße, a rua mais conhecida entre os homens que procuram por sexo pago, um portão de ferro impede a visão do local por qualquer transeunte. O portão foi instalado pelo regime nazista e segue até hoje no lugar. Nele um aviso: mulheres e menores de 18 anos não devem passar. A quem passa, várias mulheres que trabalham por lá se exibem nuas e seminuas em grandes janelas que servem como vitrine, iluminadas por cores quentes. As fotos não são permitidas.

Na minha frente, dois torcedores do Nuremberg tomando uma cerveja olham para todas as mulheres com certo espanto, tímidos, negam qualquer tipo de aproximação. Trajando casaco e cachecol vinho do time visitante, são surpreendidos por um grito de uma das meninas que eles já tinham visto.

“Hey, Nuremberg!”, e eles, desconfiados, olham para trás. Ela, só de calcinha e sutiã, salto alto, loira, bonita e atraente, tira um cachecol do St. Pauli, sacode para fora da vitrine e canta alguma musiquinha que eu tinha ouvido no estádio naquela mesma noite.

“Come here!”

Dá certo. Os torcedores se olham, gargalham e voltam para conversar com a moça. Futebol também tem lá suas estratégias de marketing.

Maleen, alemã com português perfeito, recebe os visitantes na Fanladen do St. Pauli.

A Fanladen

“Antes de encontrarmos, você tem que conhecer a Fanladen”, acordei com esta mensagem no dia seguinte, enviada por Sven, um torcedor do St. Pauli que acompanhou a guinada à esquerda do clube, com quem tinha marcado um chope em um bar perto do estádio às nove da noite. A Fanladen é uma espécie de loja para os torcedores, mas que não era só uma loja, era um tipo de associação, que servia ao torcedor; uma instituição independente do clube, mas que funciona dentro do estádio. Me encaminhei novamente para o Millentor a fim de entender do que se tratava. Debaixo das arquibancadas do estádio, muitos adesivos, algumas pichações e uma portinha. Um clima, para mim que passei por duas sucateadas universidades federais, de centro acadêmico de cursos de Ciências Humanas.

Dentro, umas pessoas papeiam em um sofá velho. Há uma mesa de sinuca e um balcão. À venda, camisetas e artigos da torcida, e não os oficiais da loja do clube, que não fica longe, em outra ponta do estádio. Atrás do balcão, uma moça simpática. Atrás dela, bebidas e o recado que não se vende álcool por lá em dias de jogos.

“Oi, tudo bem? Sou jornalista brasileiro, estou fazendo uma reportagem sobre o St. Pauli e gostaria de falar com alguém aqui da Fanladen e entender o trabalho aqui”, pergunto, em inglês.

A moça fica um pouco desconcertada com a abordagem, conversa em alemão com uma colega que está no balcão e me responde, surpreendentemente, em um português muito bem falado:

“Sim, sim. Eu posso falar com você. O que você quer saber?”

Maleen é uma simpática alemã, torcedora do St. Pauli, uma das seis pessoas que cuidam da tal Fanladen. Fez um intercâmbio durante a faculdade no Recife (e concordou comigo que o local se parecia um centro acadêmico de Ciências Humanas) e conheceu bem a capital pernambucana, além do Rio de Janeiro. O pouco tempo no Brasil foi suficiente para um português perfeito, e que, barreiras linguísticas de lado, ajudou o explicar o funcionamento da Fanladen.

“A Fanladen é este espaço, mas é muito mais. Aqui somos seis pessoas que trabalhamos, fica aberto de segunda a sexta de 15h até 19h, mas nossa atuação é muito maior. Basicamente, a gente é independente do clube e somos mediadores da relação entre clube e torcida. Isso porque este é um clube diferente, um clube em que a opinião dos torcedores conta muito. É uma forma de proteção para que ninguém vá contra os ideais do St. Pauli.”

Entrada da Fanladen, que lembra um centro acadêmico de humanas.

Maleen é interrompida pelo telefone que toca. Do outro lado, um torcedor de uma organizada que esqueceu uma bandeira no estádio, quer saber se alguém guardou.

Tudo que envolve a torcida passa pela Fanladen. É uma maneira democrática aceita pelo clube para que a arquibancada tenha seus representantes para o diálogo e uma eventual fiscalização. Tudo que a diretoria decide e que pode afetar os fãs é discutido com a Fanladen. As demandas dos torcedores também são passadas através deste canal. Se algum dia, por exemplo, algum diretor do clube quiser vender os naming rights do Millentor Stadium, provavelmente não conseguirá. E quem representará a argumentação da torcida para isso serão as pessoas que cuidam daquela salinha embaixo de uma das arquibancadas.

Cada clube na Alemanha tem a sua Fanladen, mas Maleen explica que a do St. Pauli se diferencia na atuação. Ali é também uma loja, um espaço de convivência entre torcedores (comuns, nada ali envolve necessariamente um programa de sócio torcedor). A instituição ainda organiza as excursões para os jogos fora, dá assistência aos torcedores visitantes, resolve qualquer rusga que envolva a torcida e/ou a comunidade do bairro.

“As funções aqui são muitas, mas tudo dentro do pensamento do clube, que é um pensamento político, porque é um clube bem político. Nos anos 80 ainda tinha pessoas de direita na torcida, que tentaram destruir essa virada à esquerda que aconteceu naquela época. O nosso bairro é uma comunidade de trabalhadores, não é um bairro rico, e tudo que acontece hoje é uma luta de 20 anos para tentar fazer daqui um clube de esquerda e político”, sigo ouvindo, maravilhado com o português da minha entrevistada.

A Fanladen mantém tudo isso de diversas formas. As crianças, por exemplo, são um alvo especial. Muitas aparecem para utilizar as instalações do clube após a escola, e os funcionários dão o apoio estrutural e até psicológico necessário. Maleen me conta que as crianças chegam para conversar com os mais velhos, falar sobre o time, as dificuldades na vida, na escola, e dentro desse processo vão aprendendo desde cedo os valores e as virtudes de ser um torcedor do St. Pauli. A Fanladen organiza eventos de solidariedade, de apoio às causas libertárias, torneios de futebol para mulheres, juntam doações para grupos de refugiados dentro e fora de Hamburgo, apoiam exposições sobre a história do Holocausto.

Em alguns anos organizaram até excursões para a Polônia, mais especificamente para Auschwitz, onde jovens torcedores do clube puderam visitar os campos de concentração nazistas e compreenderem melhor a história que, se depender do St. Pauli, jamais voltará a acontecer, dado que as mensagens contra o fascismo e o neonazismo são as mais fortes no estádios e nos produtos vendidos pela Fanladen. O St. Pauli foi o primeiro time a proibir manifestações de ultradireitismo em seus jogos e a banir torcedores de extrema direita. Até mesmo cursos de autodefesa para mulheres fazem parte da pauta de eventos organizados pela Fanladen para a torcida e comunidade, para combater o machismo e o sexismo, outras bandeiras levantadas com vigor.

Entre os eventos que a Fanladen já apoiou, um bem curioso é a realização da Copa do Mundo da FIFI, em 2006. Sim, FIFI, uma Copa alternativa entre as nações que não têm representação na Fifa. Um time representou a chamada “República de St. Pauli”, jogando contra países como Zanzibar, Groelândia, Gibraltar, Tibete e a campeã do mundo independente, a Seleção da “República Turca do Chipre do Norte”, estado separatista do Chipre, só reconhecido como nação pela Turquia. E pelas ideias libertárias de St. Pauli, é claro.

“Nem todos os torcedores do St. Pauli votam na esquerda, têm atuação política de esquerda, e claro, ninguém quer obrigá-los. Vários não são esquerdistas, mas mesmo não apoiando um lado na política partidária, eles têm o valor do clube, que é a unidade, o amor pelo outro. Muitos torcedores não são tão politicamente ativos, mas têm o valor de solidariedade. Isso é comum a todos os torcedores do St. Pauli. Antes de apoiar um time em campo, tem que querer ajudar. Essa é a principal característica de um fã do St. Pauli ”, conclui Maleen.

Mensagens no bairro Sankt Pauli.

Um clube ocupado

“O bar aqui faz uma vodka caseira perfeita, eu tenho que tomar sempre que venho. Quer uma?”

“Não, obrigado. Vou ficar só na cerveja, para a entrevista poder dar certo.”

“Duas vodkas caseiras, por favor! O jornalista brasileiro também vai tomar.”

É com essa simpatia de ignorar a minha responsabilidade que se inicia um bate-papo com Sven Edlefsen, torcedor que me encontra em um pub perto do estádio. Sven é um torcedor comum do St. Pauli, com 55 anos, pensamento de esquerda, que só se encantou pelo St. Pauli aos 30 anos e, desde então, comparece a todos os jogos em casa. O encantamento com o clube veio no fim dos anos 80, começo dos 90, justo quando a cultura libertária começou a se estabelecer.

Sven, um torcedor comum do St. Pauli.

“Dizem que você não escolhe um time, você nasce assim, eu também acho, mas só vim mesmo perceber isso com quase 30 anos. E claro que foi um pouco porque o St. Pauli tem um pensamento antifascista, anti-homofobia, anti-racista, que são políticas com que me identifico. Mas tem também a ver com o momento de mudança no clube. Para falar a verdade, eu pouco sei sobre o St. Pauli antes de virar torcedor. Depois que virei, sei de tudo”, me confessa, silenciando a cada gole meu na dose de vodka para, acho eu, apreciar minha cara entortando no gosto de álcool forte, quase puro, mas que ajuda a esquentar no zero grau de Hamburgo naquela noite.

Para entender a história do torcedor, é preciso entender um pouco mais da história do St. Pauli. Em seu escudo, além do nome do clube e da catedral do bairro, vem a data de 1910 em relação à fundação. Em muitas faixas encontradas pela torcida, e até em algumas oficiais, no entanto, há a inscrição “non established since 1910”, que em tradução literal significa “não estabelecido desde 1910”. Trata-se de uma tentativa de negação ao passado, antes do clube ganhar as características que o fizeram famoso, que em parte, é sincera: de fato a história do St. Pauli antes da década de 80 é a praticamente a história de outro clube.

O St. Pauli de antes não passava de um clube normal de bairro, sem lá muitas pretensões, vivendo uma vida bem pacata para o lugar onde estava localizado. O bairro sempre viveu essa efervescência cultural, tendo visto acontecer por lá alguns momentos importantes da história cultural europeia do século XX. Foi lá, por exemplo, que os Beatles fizeram suas primeiras apresentações fora da Inglaterra, descobrindo um mundo de drogas e sexo em um nível que ainda não tinham encontrado antes. Os quatro meses e meio de turnê ininterrupta dos Beatles por Hamburgo, nas palavras de Paul McCartney, os transformaram de meninos para homens, e definiram bem o estilo, postura e som da banda que iria abalar o mundo na continuação da década de 1960. Hoje, uma praça no bairro lembra a época de John Lennon e companhia por lá.

Antes disso, teatros, cabarés, casas de show, e claro, a prostituição forjaram o caráter de um bairro sempre acostumado a receber estrangeiros, trabalhadores e marinheiros vindo do porto que fica por ali. No fraco e ruim museu que conta a história do bairro, muitas referências aos Beatles, aos bares, às festas, à música. Ao perceber que eu não falava alemão, a atendente do museu me entrega um calhamaço de mais de 100 páginas com informações em inglês.

“Tem alguns erros de informação, e muitos de grafia em inglês. Mas dá para você entender mais ou menos”, me diz a atendente, simpática e sem muita cerimônia. No calhamaço, conta-se até uma interessante história de como o “swing” americano, dança da moda nas décadas de 1930 e 1940, tomou conta do bairro e foi um dos poucos focos de resistência ao governo de Hitler. A Juventude Nazista não aceitava a dança vinda de fora, e por muito tempo jovens de Hamburgo resistiram. No fim, foram para campos de concentração. No calhamaço, nem nas paredes do museu, nenhuma informação sobre o clube, talvez por foco, mas muito provavelmente por ser um museu velho e se tratar mais do passado do bairro, e de fato, o St. Pauli não era lá das coisas mais destacadas da região.

Para se ter uma noção de como o St. Pauli era um clube diferente do atual, comum, sem personalidade, não há registros de nenhuma resistência à política nazista, antes ou durante a Segunda Guerra Mundial. Uma falta de resistência inimaginável no St. Pauli de hoje, como bem mostra o jornalista inglês Nick Davidson, no livro “Pirates, Punks & Politics”, talvez a melhor obra em língua não alemã (disponível somente em inglês) sobre o clube. Além de se aprofundar na história e tentar entender o mito de hoje, conta a própria trajetória do jornalista, um torcedor do Watford que, cansado dos preços altos e da “modernidade” da Premier League, se tornou um torcedor regular do clube alemão.

E o jornalista só se encantou porque o St. Pauli mudou. Em 1981, talvez o último ano “comum” da história do clube, a média de público não passava de 1.600 testemunhas por jogo. No fim dos anos 90, a média já era de 20 mil pessoas e hoje, como vimos, raramente há lugares vazios. Tudo graças a uma variada combinação de fatores no começo dos anos 1980.

“É um bairro que não chega a ser de gente pobre, mas não é também de gente rica, com maioria de trabalhadores de uma classe baixa. Que vive em uma mistura cultural libertária, com muito apreço pela vida boêmia e também pela solidariedade. E ainda tem o movimento punk, os movimentos de esquerda. Esse pessoal começou a ir para o estádio e mudou aos poucos o perfil do St. Pauli. Eu, particularmente, virei torcedor também por causa das ocupações dos anos 1980” , me conta Sven, o torcedor tardio.

Ocupações são marca do bairro e origem da guinada à esquerda do St. Pauli.

As ocupações foram uma marca na Alemanha urbana há 30 anos. Prédios particulares ou estatais, sem uso, foram invadidos por movimentos sem teto e trabalhadores em geral que, sem moradia, passaram a reivindicar a utilização desses lugares como casa. Hamburgo foi destaque no movimento, e Hafenstraße é o nome de um quarteirão do bairro de Sankt Pauli que recebeu a mais importante, conflitante e vitoriosa das ocupações. Começou em 1981, com a invasão de alguns prédios na beira do Rio Elba, perto do porto, abandonados pela prefeitura de Hamburgo. Durante 11 anos, aconteceram vários conflitos e tentativas de expulsões violentas dos ocupantes, tanto da parte da polícia alemã quanto de hooligans e grupos neonazistas. Os confrontos acabaram por criar um apoio grande às ocupações em alguns setores de Hamburgo, e a grande parte veio dos moradores do bairro, que desde então ajudaram na tentativa de regularização dos moradores do quarteirão, montando barricadas e atos de resistência.

Com o tempo, o local virou um ponto de encontro para pessoas com o pensamento de esquerda, e reuniões de discussão aconteciam com mais de cinco mil pessoas presentes. Os temas discutidos na época: especulação imobiliária, políticas antinucleares, solidariedade internacional, prisioneiros políticos na Alemanha e resistência contra o fascismo e o neonazismo. Algumas teorias dão conta de que foi durante essas reuniões que, para resistir à violência da polícia e dos grupos direitistas que queriam acabar com a ocupação, que o movimento Black Block foi criado.

Tudo isso ajudou a criar uma cultura ainda mais libertária na região, de resistência ao capitalismo, ao mesmo tempo que ir ver o time do bairro virou o lazer favorito dos ocupantes do Hafenstraße, que já usavam o símbolo pirata que depois foi parar na arquibancada. Basicamente, esse grupo foi ocupando também os lugares do estádio e radicalizou uma torcida que antes era pequena e comum. Começou com 80 moradores de Hafenstraße que iam aos jogos com o símbolo pirata, acabou virando toda uma torcida. De certa maneira, a existência da cultura de esquerda no St. Pauli foi também uma ocupação de um grupo de torcedores que foi crescendo cada ano mais.

Depois de muitos conflitos, em 1992, a prefeitura finalmente vendeu, simbolicamente, os edifícios a uma cooperativa de moradores que ainda administra o prédio, que segue lá, com os moradores que conquistaram o direito à moraria. Rodar hoje pelos 12 prédios de Hafenstraße, mesmo quase 25 anos após o último grande conflito, é uma experiência e tanto, onde o clima de resistência, barricada e uma cultura de solidariedade é facilmente perceptível. Depois de 11 anos de confrontos, o bairro era outro e, mais que tudo, o clube do bairro era outro. Sem saber, o St. Pauli já tinha iniciado o seu movimento para virar um fenômeno cult. E ainda tinha o futebol.

“Estamos longe de ser, ou de querer ser o Barcelona, mas o St. Pauli é mais que um clube, com certeza”, opina Sven, copo de vodka já seco. “Não se trata só de apoiar onze jogadores correndo atrás da bola, a gente aqui é torcedor e pensador político. O que está acontecendo ao seu redor no mundo também importa. Não se trata também de só seguir slogans estúpidos contra o fascismo, o racismo, a homofobia. Tem que saber o que é isso. Quando vamos a este bar, por exemplo, antes ou depois dos jogos, discutimos a equipe, mas discutimos questões fundamentais também da atualidade, como a questão dos refugiados, que é o drama que vive a Europa hoje. Aqui em Sankt Pauli somos a favor da vinda dos refugiados, ajudamos, damos abrigo, participamos de campanhas. Na maioria do país a coisa não é assim. Você tem que entender o contexto disso para se estar aqui”, opina.

Pergunto sobre futebol, especificamente, sobre torcer para um clube e sonhar com glórias.

“Você tem que entender que é a comunidade que faz o clube, e não o clube que faz a comunidade por aqui. Mas, se você for ver, as pessoas que topam dirigir o clube são pessoas simpáticas a este espírito, porque sabem que se não seguirem não vão se dar bem aqui. O técnico é a mesma coisa. Não adianta ele querer jogadores caros, porque não teremos e não queremos nos render a esse futebol negócio, mercadoria, futebol dos milhões. Não é nossa ideia. Temos problemas em montar grandes time por conta disso. Claro que a gente sonha um dia em subir e poder ficar um tempo a mais na primeira divisão, quem sabe poder fazer uma viagem até a Escócia, jogar contra o Celtic em uma Champions League. Seria legal, mas não é a coisa mais importante”.

Fachada do Millentor-Stadium.

Nas boas e nas más

Para Sven, o melhor momento como torcedor não foi um jogo, um campeonato, ou um gol. Foi o fim da temporada de 2003, quando, em um estado caótico de administração, o time foi rebaixado para o terceiro nível do futebol alemão e ficou à beira da falência. Se declarasse uma quebra financeira, seriam rebaixados para a última divisão, o quinto nível, e demorariam para voltar. Ele participou junto com outros milhares de torcedores de uma campanha de venda de camisetas a 10 euros, em uma banquinha na Reeperbahn.

“A gente ficava parado e praticamente obrigava o turista a comprar uma camiseta que tinha o símbolo do clube e estava escrito ‘Retter’ (salvador). Eu dizia: ‘você está no bairro, este é o clube do bairro, ele vai acabar se você não colaborar’. Era uma espécie de pedágio desesperado.”

A estratégia deu certo e mais de 140 mil camisetas foram vendidas. A iniciativa ainda colaborou para que o Bayern de Munique voltasse ao Millentor para um amistoso, deixando toda a renda de bilheteria e publicidade para o St. Pauli, que, juntando com a grana das camisetas, conseguiu não declarar falência, disputar a terceira divisão, subir para a Bundesliga 2 quatro temporadas depois e, no meio disso tudo, ir ganhando saúde financeira suficiente até para reformar o estádio, hoje novinho em folha.

Despeço-me de Sven agradecendo todo o papo, a vodka (ele fez questão de pagar) e conhecendo um pouco mais de seus amigos, todos torcedores do St. Pauli. Já é uma da manhã, o frio é congelante, e eu ainda insisto em mais uma volta pela movimentada noite do bairro. Percebo estar um pouco velho demais para tudo aquilo, do mesmo modo que, na manhã seguinte, me comporto como um jovem empolgado diante da tentação de comprar produtos do time novo que conheci. Uma volta na manhã seguinte me faz gastar alguns euros com produtos do marketing do St.Pauli. Eu, que vim para investigar, percebo-me já tomado pelo mito.

Já na fase do presente para os amigos, achando que já tinha as informações suficientes para esta reportagem sobre o St. Pauli, uma vitrine me chama a atenção. Camisetas, adesivos, bolsas de um outro time de futebol eram vendidas ali, no bairro-ninho do St. Pauli. FC Lampedusa, e sabia eu que Lampedusa era na Itália, o que deixou tudo ainda mais confuso. Recorri na hora ao oráculo do momento, o Google.

De repente, vejo que existe um outro time no bairro, e que, ao contrário de rivalizar com o St. Pauli, recebe o seu apoio. O F.C. Lampedusa é a equipe dos refugiados do bairro. E a incrível história deles você conhece na segunda parte desta reportagem.


Publicado originalmente no Puntero Izquierdo em 2017, que é uma revista digital de publicação de histórias de futebol.

 

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Thales Machado

jornalista, sub-editor de esportes nos jornais O Globo e Extra.

Como citar

MACHADO, Thales. O clube que vai além. Ludopédio, São Paulo, v. 123, n. 31, 2019.
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