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O complexo do Pacaembu é (e deveria continuar a ser) de todos

Flavio de Campos, Simone Scifoni 18 de abril de 2019

A inauguração do Pacaembu, em 27 de abril de 1940, constituiu-se em um grande espetáculo político, esportivo e cultural, com a presença do presidente Getúlio Vargas, com o desfile cerca de 10 mil atletas brasileiros e estrangeiros, representantes das mais diversas modalidades, e com a regência de coro e orquestra a cargo de Heitor Villa-Lobos.

Vigorava o Estado Novo. A efusiva saudação aos atletas do São Paulo Futebol Clube e as vaias dispensadas ao presidente deixavam claro que as feridas abertas em 1932, quando a Revolução Constitucionalista foi derrotada por Vargas, ainda não haviam cicatrizado. Com as bandeiras estaduais banidas desde 27 de novembro de 1937, as cores, insígnias e o nome do clube paulista tornaram-se uma brecha para a expressão do sentimento regional de oposição política ao governo federal.

Entre 28 de abril e 5 de maio de 1940, além de um torneio de futebol – a Taça Cidade de São Paulo –, houve competições de esgrima, natação, boxe, bola ao cesto, tênis – disputados nas dependências do complexo poliesportivo – e hipismo, polo, iatismo, automobilismo e motociclismo em outros equipamentos da cidade.

Se a primeira final de futebol envolveu o grande clássico paulista da época, Palestra Itália e Corinthians, com a vitória do primeiro por 2 a 1, o Pacaembu foi o palco de outras memoráveis partidas e conquistas.

Em 24 de maio de 1942, Leônidas da Silva estreou pelo São Paulo em um empate por três gols frente ao Corinthians, diante de mais de 70 mil torcedores. Dois anos antes, em maio de 1940, o “Diamante Negro” havia jogado sua primeira partida no Pacaembu pelo Flamengo e marcado um dos gols na vitória sobre o mesmo tricolor que, anos depois, iria defender.

No ano de 1942, ocorreu a primeira partida da Sociedade Esportiva Palmeiras, alterando a denominação Palestra Itália, no contexto da Segunda Guerra Mundial. Na vitória contra o São Paulo por 3 a 1, em 20 de setembro, o Palmeiras nascia campeão paulista.

O simbólico campeonato de 1954, ocorrido em meio às comemorações do IV Centenário da cidade, foi conquistado pelo Corinthians – o time que mais vezes jogou no Pacaembu – em 6 de fevereiro de 1955, após o empate por um gol com o Palmeiras. Na ocasião, o goleiro Gilmar dos Santos Neves considerou que o título representaria “a glória dos cem anos seguintes”.

Com 16 anos, Pelé disputou sua primeira partida no Pacaembu em 26 de abril de 1957: vitória do Santos por 3 a 1 contra o São Paulo com uma sugestiva descrição do ataque alvinegro pelo jornal O Esporte: “Foram cinco homens que pareciam voar com a bola nos pés, e até um garotinho, com cara de menino desmamado, chamado Pelé, também já sabe dar seus voozinhos com a pelota no seu controle”.

Santos e Palmeiras disputaram uma das mais espetaculares partidas do Pacaembu, em 6 de março de 1958. Após sucessivas viradas de parte a parte, o time da Vila Belmiro venceu por 7 a 6. Uma outra partida memorável ocorreu em 6 de março de 1968, quando o Corinthians venceu o Santos por 2 a 0 e interrompeu um tabu de dez anos em jogos dos campeonatos paulistas (considerando-se todas as competições, o tabu se estenderia apenas desde 16 de junho de 1962).

Duas grandes competições internacionais tiveram o Complexo do Pacaembu como cenário. Em 1950, foram disputadas seis partidas da Copa do Mundo de Futebol e em 1963, a abertura, o encerramento e as provas de atletismo dos Jogos Pan-Americanos.

Centenas de craques do futebol brasileiro demonstraram sua genialidade no gramado do Pacaembu. Craques do Rolo Compressor do São Paulo, das Academias do Palmeiras, do Time dos Sonhos do Santos, da Democracia Corinthiana. Além deles, competiram no Pacaembu atletas como Maria Lenk, Adhemar Ferreira da Silva, Maria Esther Bueno, Eder Jofre, Rocky Marciano, e Emil Zatopec. Por tudo o que foi apontado – e haveria mais a lembrar –, a construção transcendeu a edificação de um parque esportivo. O esporte brasileiro pulsou em suas instalações.

Além do encaixe perfeito no vale do ribeirão do Pacaembu e o projeto de intervenção urbana levado adiante pela Companhia City, assentado na concepção de um bairro-jardim, o complexo estabeleceu a vinculação entre os pilares altivos de sua monumentalidade e da fachada inspirada no Estádio Olímpico de Berlim com as mais diversas perspectivas políticas da história do Brasil.

Não é acidental, portanto, a utilização do estádio e da sua praça frontal como palco para celebrações do Estado Novo, para o célebre comício de Luís Carlos Prestes em 15 de julho de 1945, para o primeiro ato por eleições diretas em 27 de novembro de 1983 e para tantas outras manifestações mais recentes. De certo modo, o Pacaembu tornou-se uma metáfora concreta para o corpo social, esportivo e político do país.

Às vésperas de completar 79 anos, um nebuloso processo ameaça o complexo poliesportivo do Pacaembu. Após a tempestuosa sessão em que o Tribunal de Contas do Município de São Paulo liberou a concessão à iniciativa privada, realizada em 7 de fevereiro de 2019, representantes do governo municipal apressaram-se em analisar as propostas apresentadas e anunciaram a vitória do Consórcio Patrimônio SP, formado pela empresa de engenharia Progen e pelo Fundo Savona de investimentos financeiros. Em 10 de fevereiro, o processo foi represado por decisão judicial. Porém, em decisão de 29 de março, a mesma Justiça autorizou o prosseguimento da concessão.

Por pouco mais de R$ 111 milhões, a iniciativa privada poderá explorar o Complexo do Pacaembu, em São Paulo, por 35 anos. O que se perde e o que se ganha com tal concessão?

Foto: Secretaria Municipal de Esportes e Lazer.

NÃO SE TRATA DA CONCESSÃO AO SETOR PRIVADO DE UM EQUIPAMENTO APENAS. TRATA-SE DA CONCESSÃO DE UM BEM QUE CARREGA SIGNIFICADOS DE INTERESSE HISTÓRICO-CULTURAL E QUE TEM, NA SUA ORIGEM, A NATUREZA DE SER ESPAÇO PÚBLICO.

Os cofres municipais receberão perto de R$ 3 milhões por ano, em torno de R$ 264 mil reais por mês. A quantia, aparentemente vultosa, é enganadora. O orçamento da Secretaria Municipal de Esportes e Lazer para 2019 é de cerca de R$ 190 milhões (16 milhões/mês). O ingresso de recursos não representa 2% dessas receitas.

Cada partida de futebol realizada no Estádio do Pacaembu despeja entre R$ 80 mil (diurna) e R$ 100 mil (noturna) no caixa da secretaria. Considerando-se que os valores para a manutenção do complexo referentes a 2017 indicam um montante de menos de R$ 9 milhões por ano (aproximadamente R$ 740 mil/mês), percebe-se que sete partidas noturnas arcariam com o custo mensal do complexo.

Não é difícil deduzir que a concessão do Pacaembu é vantajosa para o consórcio, mas lesiva ao erário público.

A vinculação de investimentos e da melhoria dos serviços à gestão privada revelam a incapacidade da Prefeitura e a falta de políticas públicas para o esporte e lazer. Nesse espelho d’água, exibe-se a face turva da incompetência administrativa para se eximir de responsabilidades e desviar recursos para moinhos particulares. A falta de reposição de profissionais do complexo e o sucateamento do equipamento reforçam as correntes que desaguam na dadivosa concessão à iniciativa privada.

O tombamento do estádio, em 1998, fez dele um bem cultural, elemento fundamental da civilização, portando em sua materialidade uma série de valores: históricos; sociais e afetivos dados pelo uso coletivo; mnemônicos da ação e da identidade dos grupos sociais.

Não se trata da concessão ao setor privado de um equipamento apenas. Trata-se da concessão de um bem que carrega significados de interesse histórico-cultural e que tem, na sua origem, a natureza de ser espaço público. Sua lógica é, por óbvio, diversa da lógica do bem privado, que visa lucro e está submetida às regras do mercado.

Além da violação ao patrimônio, a concessão representa uma agressão aos torcedores. O setor de arquibancada conhecido como Tobogã tem a particularidade de estar na intersecção simbólica e física entre o estádio e o complexo. Como o edital não estabelece um programa definido e está apoiado em projeto não vinculante, com diretrizes gerais que não precisam ser seguidas, a decisão acerca da sua demolição será definida pelo concessionário, que pode optar pela construção de um edifício multiuso, com lojas, restaurantes e hotelaria.

Além da descaracterização das funções do estádio, a derrubada do Tobogã representa a extração de cerca de 10 mil lugares (25% do estádio) cujos ingressos são mais acessíveis às camadas subalternizadas. Corações torcedores de todas as cores bateram forte nos degraus do Tobogã desde a década de 1970.

De goleada, perdem os torcedores populares. De outra parte, ganham aqueles que visam lucros oceânicos a partir de vantagens do poder público e que contribuem para a elitização dos estádios.

Região alagadiça é uma tradução possível para a palavra tupi “pacaembu”, devido à presença de córregos e riachos que confluíam para a região onde foi erguido o estádio. Lutemos para não termos que ressignificá-la como área lamacenta.


Este texto foi originalmente publicado no site Nexo Jornal.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Flavio de Campos

Professor do Departamento de História da USP. Coordenador científico do Ludens (Núcleo interdisciplinar de pesquisas sobre futebol e modalidades lúdicas). Integrante do AGIR (Arquibancada ampla, geral e irrestrita).

Simone Scifoni

Geógrafa, doutora em Geografia e professora do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Trabalha na área de patrimônio cultural desde 1988.

Como citar

CAMPOS, Flavio de; SCIFONI, Simone. O complexo do Pacaembu é (e deveria continuar a ser) de todos. Ludopédio, São Paulo, v. 118, n. 19, 2019.
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