73.5

O craque que não foi

Marcelino Rodrigues da Silva 15 de julho de 2015

Em meu primeiro texto para a seção Arquibancada, do Ludopédio, falei sobre as biografias de jogadores de futebol, de seu interesse para o público e de sua proximidade com a ficção literária. Para fazer um contraponto com os grandes heróis que costumam ser objeto das biografias de maior sucesso editorial, gostaria agora de falar um pouco sobre vida de um desses personagens mais obscuros, um nome mais ou menos lembrado e mais ou menos esquecido de nosso passado esportivo.

Trata-se de Guará, ou Guaraci Januzzi, atacante do Atlético nos anos 1930. Todos os mineiros já devem ter ouvido seu nome, no título do Troféu Guará, grande torneio de futebol amador promovido pela Rádio Itatiaia. Se ele não é exatamente um desconhecido (já que teve um início bem sucedido de carreira, despontou para o estrelato e ocupa ainda um lugar de relativo destaque no panteão atleticano), também não é propriamente um herói, pois teve sua carreira dramaticamente interrompida por um violento choque de cabeça com o zagueiro Caieira, num jogo contra o eterno rival, o Palestra Itália, em 1939.

O acidente com Guará provocou comoção no público e atraiu grande interesse jornalístico, gerando um significativo número de matérias nos periódicos da época e até mesmo uma curiosa biografia, de Antônio Tibúrcio Henriques, intitulada Cabeçada fatal. Um ligeiro passeio por alguns desses textos pode nos ajudar a recuperar, com um exemplo, as reflexões sobre a biografia do craque que esbocei no texto anterior.

O primeiro deles é uma matéria publicada pela revista Alterosa, em 01 de agosto de 1939, pouco tempo depois do acidente com o jogador. Intitulada “Um domingo com Guará”, a matéria traz uma fotolegenda que mostra Guará em seu cotidiano familiar, no período em que se preparava para as primeiras tentativas de retomar sua condição de herói esportivo: Guará sendo acordado por sua esposa, fazendo sua toalete matinal, almoçando com amigos, alimentando sua filha recém-nascida, criando galinhas e cuidando de passarinhos, como um pacato homem do interior.

Contrastando com a fotolegenda, o texto central descreve as qualidades e proezas incríveis realizadas pelo craque dentro de campo: “Corpo e alma empenhados na vitória de sua gente, é o perigo permanente e terrível, porque leva, nas pernas, a velocidade elétrica do raio, e, no bico da chuteira, a miraculosa pontaria de Guilherme Tell.” O acidente com Caieira é evocado de forma dramática, acenando para a tragédia que já se anunciava: “O Destino, vingativo e cruel, teve inveja de sua sorte, porque ele era rei, e um povo lhe dera um trono.” E a conclusão, em tom esperançoso, já não esconde sua inspiração nas histórias de cavalaria e nos contos de fadas: “E as multidões, que querem aplaudir, esperam, agora, a sua volta, para ovacioná-lo com mais entusiasmo, mais calor, mais vibração, e reconduzir ao trono o rei louro, que venceu o invencível Dragão.”

Guaraci Januzzi. Foto: Galo Digital (reprodução).
Guaraci Januzzi. Foto: Galo Digital (reprodução).

Podemos ver, claramente, que a reportagem constrói imagem do ídolo esportivo pelo contraste entre o homem comum de hábitos interioranos e o herói de façanhas extraordinárias dentro do campo. Num contexto de difusão e consolidação do futebol no interior mineiro, ela pode ser interpretada como parte de um esforço de mediação entre a moderna cultura esportiva e o universo tradicional do campo e das pequenas cidades.

Mas a reportagem foi feita num momento em que a história de Guará ainda não tinha se resolvido, projetando uma possibilidade de desenvolvimento que não se efetivou na realidade. Depois de diversos e melancólicos fracassos, ele desistiu do futebol e acabou como um modesto vendedor de loterias. Sua história, então, foi retramada e passou a ser contada em outra forma narrativa.

Numa curiosa matéria assinada por Cláudio Tavares, publicada pelo Diário Esportivo, em 2 de agosto de 1945, sob o título “O romance de Guará”, o tom trágico já está presente, ressaltando o abandono em que se encontrava o ex-jogador: “Aquele mesmo Guará, que não podia dar um passo sem receber um abraço de um atleticano, estava agora com o bilhete de loteria na mão. (…) O destino dos homens. A ingratidão das multidões.” Mas sua trajetória representa também a de outros atletas que terminaram suas carreiras na indigência: “Não viram o caso do Castanheira (…) que morreu sem assistência num hospital de Belo Horizonte? Não se lembram do triste fim de Fausto, o ‘Maravilha Negra’, hoje sepultado (…) no anonimato de uma sepultura rasa do cemitério de Santos Dumont?”. Conclui então o jornalista pela necessidade de se criar de “uma caixa de assistência para os profissionais inabilitados”, de modo que sejam evitadas “as dificuldades tão comuns aos lares dos ‘players’ imprevidentes”. Ou seja, a tragédia pessoal do jogador é transformada em destino coletivo e daí problematizada como sintoma de uma questão social mais ampla.

Na biografia de Antônio Tibúrcio Henriques, a narrativa assume novamente o modo trágico, destacando o drama patético da decadência de Guará. O texto é muito interessante, demonstrando plena consciência de seu próprio caráter fabular e, portanto, de sua dimensão ficcional. Falar dele demandaria um espaço que não temos agora. Por ora, basta lembrar que o prefácio é de ninguém menos que Ari Barroso, que como Guará era natural da cidade de Ubá, e dele vem a frase lapidar, que hoje é marca registrada da biografia do jogador. Retomando o tema do destino e criando o emblema da trajetória fracassada, ela diz: “A fama teve inveja de Guará”.

Podemos ver, então, nas narrativas sobre a história de Guará, a história de tantos outros craques que não chegaram ao estrelato. A história de como o destino (vale dizer, as circunstâncias sociais, culturais e pessoais) ceifa carreiras, trajetórias e futuros possíveis de crianças e jovens que sonham com sucesso no futebol. Como uma tragédia, ela ajuda a questionar e relativizar um pouco as grandes narrativas épicas de vitória e heroísmo que compõem o imaginário esportivo brasileiro.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Marcelino Rodrigues da Silva

Professor de literatura na UFMG.

Como citar

SILVA, Marcelino Rodrigues da. O craque que não foi. Ludopédio, São Paulo, v. 73, n. 5, 2015.
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