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O dia em que virei negro – o caso Neymar

Roberto A. P. Souza Junior 9 de outubro de 2020

Em 2010, o então menino Ney (literalmente, naquele momento), com os seus 18 anos de idade, disse em entrevista[1] ao Estadão que não se considerava negro. O tempo passou e, assim como o futebol de Neymar o colocou rapidamente como um excepcional atleta de seu tempo, os casos de racismo contra si, sobretudo na Europa, fizeram dele apenas mais um… Mais um dentre tantos negros(as) que têm suas vidas subjugadas por carregarem em si a cor da pele preta.

Três dos muitos cortes de cabelo usados por Neymar: à esquerda, nos Jogos Olímpicos de 2012, um penteado alisado; no centro, uma escova na franja; à direita, um corte curto e descolorido total, em 2013. Foto: Reprodução/Fotomontagem feita pela Folha de S.Paulo.

Ainda naquele ano, eu, aos 17 anos, tal qual Neymar também não me enxergava como negro. Mesmo que questionamentos e inquietações pairassem em minha cabeça, minha pele não era tão escura quanto as que eu interpretava como negra. Até então, só sabia que não era como os moleques da escola, dos quais as meninas gostavam. Mas, na época, pensava que era inaptidão minha pela “paquera”, falta de “papo” ou por me julgar “meio feinho”. Ou seja, fora dos padrões estéticos estabelecidos. Sabia também que, depois do futebol, que acontecia no intervalo das aulas, eles, os meninos brancos, lavavam apenas o rosto; enquanto eu, lavava também o cabelo, a fim de baixar “o volume”, pois o suor do jogo acabava com o alisante[2] que eu usava. Aliás, o companheiro fiel de toda minha adolescência.

Não me leve a mal. Sempre soube que não era branco. No entanto, para muitas meninas e meninos, de pele menos retinta (para não usar a expressão “pele clara”), a negritude pode ser uma descoberta mais tardia do que se pensa. Assim foi comigo. Assim foi também com Neymar. Precisamos, e vamos, falar disso.

Adianto que, apesar de achar necessário, não é o caso deste texto fazer uma discussão aprofundada sobre as relações étnico-raciais no esporte. Levantarei apenas algumas reflexões a respeito da autoafirmação negra dos sujeitos de pele “menos retinta”. Como é o meu caso, aliás.

Antes de seguir, é necessário enfatizar também que a negritude é bem mais múltipla e diversa do que se pensa no senso comum. Aqui discuto “apenas” um dos incontáveis atravessamentos do ser negro(a) no Brasil. Pontuo também que, ser negro de pele menos retinta, não faz com que você, obrigatoriamente, passe por menos racismo do que negros de pele mais retinta. Todavia, pode significar que você tenha passado por situações de racismo velado que fugiram da sua própria interpretação no momento. Afinal, no imaginário social em que todos nós, negros/as e brancos/as, fomos submetidos/as, racismo só sofre ou sofreu aqueles/as em que a concentração de melanina se faz mais presente.

Insegurança negra – a cor das periferias

Lembro que um dos meus primeiros despertares sobre o assunto veio um pouco antes da maioridade – ainda em conta gotas –, aos 15 anos. Na época, flertava com uma garota da igreja. Éramos de cidades diferentes e nos víamos pouco. Ela era branca e estudava numa escola particular. E, curiosamente, tinha como professor de matemática um cara da minha quebrada. Um dia, despretensioso, o encontrei no ônibus e comentei sobre ela. Pensando em lhe fazer uma surpresa, pedi que ele a enviasse um beijo meu.

Passados alguns dias, quando a encontrei, perguntei-lhe se tinha recebido o recado que havia mandado pelo tal professor. Ela, com espanto, contestou-me que não, que devia ter ocorrido algum engano, pois o recado que recebeu do professor só podia ser de outro menino. Afinal, segundo a descrição que ele a deu por não se lembrar do meu nome, tratava-se de “um neguinho simpático de cabelo alisado”. Curiosamente, esse foi um de nossos últimos encontros. Não por minha vontade, mas talvez por ter sido o primeiro dia em que “virei negro” para ela.

A ficha ainda demorou um pouco mais a cair, e o dia em que “virei negro”, ou seja, em que me percebi (com certeza) enquanto mais um corpo negro no mundo, foi quando entrei na sala de aula da universidade pública. Isso, no auge dos meus 23 anos. Tinha me inscrito via cotas raciais e de escola pública, mas na minha cabeça era a menção ao “pardo” que assegurava minha vaga. Para minha surpresa, na sala de aula eu era um dos mais escuros. Para os outros e também para mim mesmo. Dentre as “paredes brancas”, com olhos e ouvidos ao meu redor, eu era facilmente destacado dos demais. Era um dos poucos negros da turma.

Aprendi, portanto, que as relações raciais são tencionadas a partir de determinados contextos. A verdade é que, de onde eu vinha, na periferia da grande São Paulo, a grande maioria das pessoas tinham a minha cor, o que fazia com que considerássemos negros apenas as pessoas que, dentre nós, tinham a pele mais retinta. Ou seja, mais escura. E isso mesmo que o contrário nos fosse provado diariamente em cada abordagem policial.

A autoafirmação da negritude de pele menos retinta, sobretudo nas periferias, onde historicamente foram despejados os corpos negros e pobres, pode ser bem mais difícil do que parece. Na maioria das vezes, isso vem de fora da gente. Afinal, nós e nossos antepassados fomos silenciados e oprimidos a ponto de nem sabermos mais de onde viemos e quem somos.

A multiplicidade negra se desenvolve em seus contextos cotidianos de maneira diversa para cada um de nós. Entretanto, existe um sentimento comum a todos. Falo da insegurança. A sensação de que somos impostores diante do nosso próprio sucesso. A sensação de que não somos capazes, e de que nunca somos bons o suficiente. A insegurança é a cor das periferias. Possui tonalidades diferentes, mas sob uma única pele, a negra. Ela que segue nos matando diariamente e nos distanciando cada vez mais de nossas origens ancestrais.

Neymar com seus pais em 2008. Foto: Reprodução/Arquivo pessoal.

Será que Neymar teria essa mesma obsessão em ser escolhido o melhor jogador do mundo se fosse um cara branco de classe média? Ou a chancela do Bola de Ouro é só mais um dos reconhecimentos que ele almeja por herdar a insegurança da pele negra?

Assim como muitos meninos(as) da periferia, Neymar viu no futebol, desde os sete anos de idade, a chance de ascensão social de toda a sua família. O menino pobre da periferia santista foi direcionado para não enxergar nada além da bola, para driblar apenas seus adversários nas quatro linhas. O racismo para ele era algo distante de sua percepção. Só mais uma das tantas coisas que jogavam contra a oportunidade de toda a família de “ser alguém na vida”.

Cobrar dele, hoje em dia, engajamento político, é como abrir uma garrafa de água desejando que dela saia vinho. Ainda assim, mesmo sendo uma das pessoas mais ricas do mundo, mesmo tendo alcançado sua ascensão social, ele continua sendo mais um negro no mundo. O que demonstra que a cor da pele antecede a classe social. Ou como bem canta Baco Exu do Blues (2022):

(…) Chega perto, vou contar um segredo / Se acostume a ver preto e dinheiro / São só notas, baby, não fique com medo / Fiz milhões, continuei negro (surpreendente!).

Em 2020, dez anos depois da declaração inicial deste texto, Neymar finalmente se autodeclarou negro, e disse ter orgulho de descender de pais e avós negros. Curiosamente ou não, foi no mesmo dia em que sofreu uma demonstração pública de racismo ao ser chamado por um zagueiro adversário de “macaco filho da puta”.

Neymar e eu temos o tom de pele similar. Contudo, não cabe a mim, nem a ninguém, dizer o porquê dele vir a público “só” agora para reconhecer a sua negritude. A riqueza, a fama, o sucesso, o glamour, certamente devem ter contribuído para que o atleta demorasse um pouco mais para perceber o inevitável: ele era negro. E seria “marcado” como negro sempre que brancos precisassem colocá-lo em seu “devido lugar”.

Aqui, no entanto, posso falar por mim. Por minha “demora”. Ao pensar em Neymar, penso em toda a inconsistência e incoerência que eu mesmo vivi por anos na falsa ilusão de nunca ter sofrido racismo. Porque, assim como Neymar, também não me enxergava como negro. Até alguém me dizer o contrário. E, diante disso, seguir meus processos internos de desajustes até me encontrar no mundo enquanto uma pessoa negra.

Temos nossos tempos, e a caminhada é longa. Não se trata de tardar, mas de chegar. Sem falar que a consciência individual vem também de uma consciência coletiva, em que a demora é um problema social coletivo e não apenas uma questão minha ou de Neymar.

O racismo mata – além de corpos – a multiplicidade negra desde que nascemos. E, enquanto discutimos quem, dentre nós, é escuro o suficiente para ser chamado de negro, contribuímos para mais uma barreira na autodescoberta racial de crianças e adolescentes. A insegurança que já domina nossas vidas cotidianamente não pode também sobrevoar o orgulho e a certeza de nossa cor.

Só para “escurecer”[3] umas coisas…

Meu objetivo aqui não foi propor um debate aprofundado sobre as relações raciais no Brasil, tampouco esmiuçar questões estruturais do racismo no esporte. Antes, deixar uma provocação aberta e inacabada. Pois, enquanto gritamos pelo antirracismo, muitas pessoas são mortas diariamente, pela cor de suas peles, sem sequer terem o privilégio de se descobrirem enquanto negras.

Muitos acham que Neymar deveria ter assumido a bandeira antirracista há muito tempo[4]. Outros esperam que ele não desperdice essa “oportunidade” midiática de modo algum, afinal, ele tem grande influência no universo do futebol. No entanto, cobrar de Neymar, ou de qualquer pessoa negra, seja ela de pele mais ou menos retinta, a obrigatoriedade de se posicionar publicamente contra o racismo é só mais uma maneira de exercer o racismo estrutural, o qual pauta nossa existência a partir de nossa excepcionalidade.

Cobrar que falemos aos quatro cantos sobre a maior dor que carregamos na vida é, no mínimo, injusto. É apenas mais uma forma de expressar que só podemos existir enquanto formos considerados extraordinários. Somos negros, sim. Mas somos muitos e diversos. Alguns com segurança para se posicionar, outros não, e tudo bem sermos assim. Não somos obrigados a nada, independente de nossa posição social. Não se esqueçam de que falar é lembrar, e lembrar é fazer doer de novo.

Comemoração de Neymar em seu primeiro gol após o episódio de racismo. Foto compartilhada em suas redes sociais com a legenda “black lives matter (vidas negras importam). Foto: Reprodução/Instagram.

O racismo tira nossas individualidades. Logo, esperar que todos/as negros/as tenham o mesmo posicionamento é só mais uma forma de praticar o racismo. Por que não cobrar dos brancos?(!) Não se enganem: racismo não é um problema dos/as negros/as e nem uma questão individual. Foi criado por brancos e disseminado ao longo da história como forma de dominação. E, no caso do Brasil, como uma engrenagem de produção de desigualdades. O que vivemos hoje é mera consequência, dentro e fora dos esportes. É um problema da sociedade brasileira e deve ser combatido por ela mesma. Inclusive no futebol.

Seu papel nisso tudo? Não sei, não conheço você ou o seu contexto. Mas se me permite uma dica, questione seu mundo! Olhe ao seu redor. Valorize os seus enquanto são crianças! Ensinem seus filhos, sobrinhos, primos… Que eles/as ou os/as amiguinhos/as da escola são negros/as, não “moreninhos/as” ou quaisquer outros adjetivos que “embranquecem” nossa diversidade negra. Vivemos num país no qual a maioria da população é negra. E esse fato deve balizar todo o nosso pensamento.

Contribua para que os inúmeros Neymares possam habitar um mundo onde a descoberta da multiplicidade negra seja um reconforto desde a infância, e não só mais uma das inseguranças que serão obrigados a enfrentar em algum momento da vida.

Espero ter-me feito “escurecido”.

Notas

[1] Quando perguntado se já foi vítima de racismo, Neymar contestou: “Nunca. Nem dentro e nem fora de campo. Até porque não sou preto, né?”.  

[2] Produto químico utilizado para alisar o cabelo. Mais conhecido na comunidade negra como alisante.

[3] Sinônimo de elucidar ou explicar, mas de uma perspectiva da escrita negra, onde “clarear” ou “esclarecer” não faz o menor sentido.

[4] Um ótimo texto, disponibilizado aqui mesmo no Ludopédio, aborda também esta questão da cobrança sobre atletas negros se posicionarem.


Sobre o LELuS

Aqui é o Laboratório de Estudos das Práticas Lúdicas e de Sociabilidade. Mas pode nos chamar só de LELuS mesmo. Neste espaço, vamos refletir sobre torcidas, corporalidades, danças, performances, esportes. Sobre múltiplas formas de se torSER, porque olhar é também jogar.


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roberto souza junior

Doutorando e mestre em Antropologia Social no PPGAS da UFSCar, onde também é bacharel em Ciências Sociais. Pesquisador associado ao LELuS (Laboratório de Estudos das Práticas Lúdicas e de Sociabilidade). Trabalha, a partir de etnografias urbanas e fotografias, com torcidas organizadas de futebol que são também escolas de samba do carnaval paulistano. E-mail: [email protected]

Como citar

SOUZA JUNIOR, Roberto A. P.. O dia em que virei negro – o caso Neymar. Ludopédio, São Paulo, v. 136, n. 22, 2020.
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