132.43

O dia que o futebol voltou

Guilherme Trucco 19 de junho de 2020
Foto: Jarbas Oliveira/ALLSPORTS.

 

– Alôe?

– Oi Vó, tudo bem?

– Oi Tonico!

– Não vó, aqui é o Chico.

– Ah, oi Chiquinho, tudo bem? Eu achei que era o Tonico, haha, a voz de vocês é tão parecida.

– Eu sei,  eu sei, você sempre confunde né.

– Pois é meu filho.

– E aí, tá tudo bem por aí vó? A senhora num tá saindo de casa não né?

– Ah tá tudo bem sim, tô aqui, fazendo uns sequilhos amanteigados.

– Tá boa de saúde vó? Você viu que tá perigosa essa gripe aí que tá dando na tevê em…

– Ih meu filho, você sabe que eu tenho o corpo-fechado né. Isso de gripe não tem comigo não, eu faço minhas rezas todas as noites, aliás, rezo muito pra você a noite também, pra sua mãe, pro seu irmão, tá todo mundo na minha reza da noitinha antes de dormir. Pode ficar tranquilizado tá?

– Tá certo vó. Viu, era sobre isso mesmo que eu queria falar… Você lembra, há uns dez anos atrás, um almoço aí na sua casa, você fez aquela sua galinhada deliciosa, e eu comentei que tava mesmo precisado de um frango? Lembra? Falei que o meu time ia jogar contra um goleiro que tava trancando o gol?

– Lembro sim meu filho. Era dia de Santa Clara. Acendi uma vela pra santinha, e fiz uma reza bem riscada. Foi num escanteio da esquerda, o goleiro se embananou todo com a bola, sobrou pra você na linha do gol, foi só empurrar né? Depois o goleiro deu entrevista dizendo que ficou cego na hora, que se atrapalhou com a luz dos refletores num foi?

– Isso, isso, foi isso mesmo vó. E depois, uns quatro anos atrás, quando eu te liguei no intervalo de um jogo lembra? Falei que a gente não podia tomar gol de jeito nenhum no segundo tempo, era só segurar o empate, que era campeão, lembra disso?

– Sim, claro que lembro! Eu desliguei o telefone e fui correndo pegar o São Longuinho. Rezei um ponto antiiiiigo de seu tranca-ruas, e tranquei o São Longuinho dentro da gaveta, virado de costas. Não deu outra… Quando deu uns trinta minutos do segundo tempo, os gandulas todos desapareceram com as bolas. Que confusão que foi, haha.

– Pois é vó… então, eu lembrei de uma coisa que me deixou encasquetado. Você lembra uns dias atrás, quando eu comentei que o meu time tava pra ser rebaixado? Eu tava muito abatido, e disse que preferia que não existisse mais nem futebol, do que meu time cair pra segunda divisão… Tá lembrada vó?

– Deixa eu pensar meu filho, não sei, eu tô com a cabeça de vento esses dias sabe? Não tô lembrando não.

– Faz pouco tempo vó, foi no começo do ano…

– Olha Chiquinho, você me pegou no meio de uma fornada de sequilho amanteigado… Eu vou ter que olhar na folhinha depois as datas, aí você me liga amanhã que eu vejo se lembro olhando na folhinha tá?

– Tá bom vó, até amanhã…

 

***

 

– Alôe?

– Oi Vó, tudo bem?

– Oi Tonico!

– Não vó, aqui é o Chico.

– Ah, oi Chiquinho, tudo bem? Eu achei que era o Tonico haha, a voz de vocês é tão parecida.

– Eu sei,  eu sei, você sempre confunde né.

– Pois é meu filho.

– Então vó, você conseguiu olhar na folhinha? Lembrou do dia?

– Viu, eu tava querendo mesmo falar com você Chiquinho, não é você que mexe com esses troço de informática? De computação?

– Não vó… não, eu sou jogador de futebol, o Tonico é jornalista.

– Isso, então. Fala pro pessoal, que esse negócio dessa gripe que tá aí, que tá trancando a garganta do pessoal, então, avisa que a melhor coisa é fazer um gargarejo de limão cravo com gengibre e alecrim do mato. É batata. Duas vezes por dia. De noitinha antes do banho sabe?

– Certo vó… Mas e o dia, você lembrou do dia?

– Ah sim, deixa eu dar uma olhada na folhinha aqui, peraí… Segura na linha aí viu… Então, Chiquinho, tá aí?

– Tô vó, pode falar.

– Então, eu vi aqui, lembrei viu? Era dia de São Brás! Sabe o que eu fiz? Você disse que não podia perder de jeito nenhum né, se não ia ser rebaixado… Pois eu amarrei um barbantezinho no pescocinho do São Brás coitado. Foi meio exagerado, eu sei, dei um nó na garganta dele bem apertadinho sabe? Aí fiz uma reza forte, uma oração pra torcida do outro time não conseguir gritar gol… Funcionou Chiquinho?

– Então… funcionar, funcionou… mas é que…

– Ai caramba, agora que eu tô lembrando disso! Esqueci o coitadinho do São Brás amarrado dentro do vasinho de porcelana chinesa que seu vô me deu de presente naquela viagem pra Cambuquira… Ah aquela viagem foi maravilhosa sabe? Lá tem uma água ferruginosa, é milagreira que só. E o hotel então, uma pousadinha, o café da manhã era maravilhoso e…

– Mas vó, onde tá o santo vó?

– Ai coitadinho do São Brás! É verdade! Ta lá dentro do vasinho amarrado até agora!

– Caraca! Só pode ser isso!

– Só pode ser o quê menino? Desembucha logo meu filho!

– Essa gripe que o pessoal tá pegando, que deixa todo mundo sem ar… Foi tudo muito rápido, e eu tava pensando que a coisa engrossou foi logo depois desse jogo sabe? Esse jogo que você rezou pro São Brás… O pessoal que foi no estádio ver esse jogo, saiu todo mundo com essa tal gripe. Aí o negócio começou a se espalhar geral. É um troço altamente contagioso. Os estádios estão fechados, jogos cancelados, o campeonato inteiro parou! Ninguém mais grita gol. O pior é que essa peste de nó na garganta tá se espalhando rápido… É que nem eu te pedi naquele dia, eu disse que preferia que o futebol acabasse…

– É. São Brás não falha.

– Como assim vó? Não pode ser… Meu Deus do céu! Os cientistas do mundo inteiro estão se unindo para sequenciar o genoma do vírus. Ontem mesmo o Tonico fez uma matéria sobre uma proteína sintética que estão desenvolvendo para produzir testes rápidos de diagnóstico. A ciência está focada em produzir uma vacina, os virologistas e sanitaristas mais renomados dizem…

– Chiquinho, alto lá. Tenha mais respeito com sua vó. De mandinga eu entendo.

– E como faz então vó?

– É só desatar esse nó ué. Eu vou lá agora mesmo buscar o santinho e desatar o barbante, me liga amanhã tá?

– Tá bom vó, vai depressa.

 

***

 

– Alôe?

– Oi Vó, tudo bem?

– Oi Tonico!

– Não vó, aqui é o Chico.

– Ah, oi Chiquinho, tudo bem? Eu achei que era o Tonico haha, a voz de vocês é tão parecida.

– Eu sei,  eu sei, você sempre confunde né.

– Pois é meu filho.

– E então vó, desatou o nó? Achou o São Brás?

– Achei sim meu filho, mas não desatei o nó não…

– Porque vó? Desata esse troço logo!

– Eu não consegui. Eu tentei de tudo que foi jeito, já rezei quebra-demanda… o negócio tá firmado no grosso. Não tem jeito não.

– Como assim não tem jeito?

– Tá encruado.

– E num dá pra rezar pra outro santo?

– Só se for uma amarração e… Você sabe que essa noite eu sonhei com o Sócrates? Agora que eu tô lembrando… o doutor Sócrates era médico né? Eu sonhei com ele todo de branco que nem médico mesmo, e no jaleco dele tinha bordado uma imagem de Cosme e Damião. Foi isso. E ele tava comendo um sequilho amanteigado ainda por cima. Haha.

– Mas o que esse sonho significa vó? Da pra fazer alguma coisa?

– Perai, deixa eu dar uma olhada na folhinha… segura aí… Pronto, voltei, tá escutando Chiquinho?

– Pode falar vó.

– Bom, amanhã é dia de São Pedro. Vou fazer o seguinte, vou colocar o santinho do Cosme e Damião do lado do São Brás, vô deixar um sequilho do lado deles, e vô rezar pra São Pedro, que tem a chave do céu… O doutor Sócrates é médico, ele sabe o que fazer… São Sócrates! Haha.

– Eu te ligo amanhã vó.

 

***

 

– Alôe?

– Oi Vó, tudo bem?

– Oi Tonico!

– Não vó, aqui é o Chico.

– Ah, oi Chiquinho, tudo bem? Eu achei que era o Tonico haha, a voz de vocês é tão parecida.

– Eu sei,  eu sei, você sempre confunde né.

– Pois é meu filho.

– Deu certo vó! Deu certo!

– O que foi meu filho?

– Você não tá vendo na televisão? Os médicos tão falando que o pico da doença já passou! Os hospitais estão esvaziando, o número de casos tá baixando drasticamente… Do mesmo jeito que a doença surgiu de repente, ela tá desaparecendo! Estão comparando com a gripe espanhola e…

– Ah sim. Eu vi hoje de manhã… O barbante desamarrou sozinho, e ainda por cima o sequilho amanteigado desapareceu. Rezar pra Cosme e Damião dá nisso, é a criançada, os erês…

– Graças a Deus vó! Graças a Deus! O futebol vai voltar!

– Agora, tem uma coisa viu… Aquele negócio do seu time ser rebaixado… Eu bem que rezei pra São Pedro também, tentei dar uma aliviada pro seu lado, mas num sei não.

– Tem que ver isso aí vó… os dirigentes ainda tão discutindo como vai ser pro campeonato voltar, o calendário, essas coisas…

– Eu vou dar uma olhada na folhinha aqui, me liga depois.

– Beijo vó.

– Outro.

 

***

 

– Aloê!

– Oi vó, tudo bem?

– Oi Chiquinho!

– Não vó, aqui é o Tonico.

– Ah, oi Tonico, tudo bem? Eu achei que era o Chiquinho haha, a voz de vocês é tão parecida.

– Eu sei,  eu sei, você sempre confunde né.

– Pois é meu filho.

– Você tá vendo o Chiquinho na televisão vó? Não é incrível?

– Ih meu filho, faz tanto tempo que eu não ligo esse troço, peraí que eu vô chamar seu vô…. ô Milton, vem aqui Milton… Liga a televisão aqui que o Tonico tá falando na televisão!

– É o Chiquinho que tá na televisão vó.

– Isso, então. Olha, o seu vô foi fazer feira. Ele gosta de ir na hora da xepa… semana passada ele trouxe uma laranja seleta que tava um doce que só vendo sabe? Mas me conta, porque que o Chiquinho tá na televisão?

– Bom… Resumindo… Depois que o futebol voltou, o pessoal ficou discutindo como que ia encaixar todos os jogos nas poucas datas que faltavam. É muito jogo pra pouco domingo, sabe? Aí um desses cartolas malucos veio com essa ideia mirabolante de botar todo mundo pra jogar tudo que faltava em um único dia! Vê se pode? Parece coisa de outro mundo, mas por incrível que pareça, o pessoal estava há tanto tempo sem futebol, que adoraram a ideia!

Bandeirão do Vasco. Foto: Fábio Soares/Futebol de Campo.

– Peraí… acho que eu consegui ligar esse troço aqui. Agora é tudo nesse controle remoto, eu não consigo acertar os botãozinho miúdo…

– Olha que lindo que tá vó! O dia em que o futebol voltou! As torcidas de todos os times entrando e saindo dos estádios, andando pelas ruas, dançando, bebendo, cantando foguetes e bandeiras, chovendo papel colorido dos céus, vozes se esgoelando gritando todos os gols de todos os times ao mesmo tempo, com o fôlego de meses mudos sem cantar, tirando de uma vez por todas aquele nó na garganta! É uma chuva de gols! São Pedro abriu a torneira dos gols, e o Chiquinho tá lá!

– Que bonito meu filho, vou até picar um jornal aqui pra tacar pela janela!

– Beijo vó!

– Fica com Deus, meu filho!

Foto: Fábio Soares/Futebol de Campo.

*O autor desse texto gostaria de deixar claro que é totalmente contra a volta do futebol em um momento em que a pandemia COVID-19 ainda evolui de forma alarmante no Brasil. De fato, na opinião do autor, o futebol só deveria voltar quando for possível ter torcedores no estádio (ou seja, com a pandemia solucionada), de preferência como nas fotos acima.

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Guilherme Trucco

Escangalho a porosidade das palavras. Rabisco um Realismo de Encantaria e futebol. Filho de Xangô e Iemanjá.

Como citar

TRUCCO, Guilherme. O dia que o futebol voltou. Ludopédio, São Paulo, v. 132, n. 43, 2020.
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