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O doutor da bola e da democracia

Roberto Jardim 9 de novembro de 2019

“Com destino e elegância dançarino pensador
Sócio da filosofia da cerveja e do suor
Ao tocar de calcanhar o nosso fraco a nossa dor
Viu um lance no vazio herói civilizador
(O Doutor)”
O trecho da música Sócrates Brasileiro, de José Miguel Wisnik

Talvez tenha sido pelo nome de filósofo. Ou pelo gentílico no segundo nome. Ainda, pode ter sido por ser médico. Quem sabe, também, pela vida boêmia e rebelde. Outra possibilidade é o visual, cabelo desgrenhado e barba, parecendo com um tal revolucionário chamado Ernesto “Che” Guevara. Ou tudo isso misturado ao título de líder de um dos movimentos mais marcantes do futebol brasileiro do início dos anos 80.

O certo é que, apesar de ser figurinha fácil em qualquer material sobre boleiros engajados, Sócrates não poderia faltar no Democracia Fútbol Club. Carinhosamente chamado de Doutor, por ser formado em Medicina, ou Magrão, o camisa 8 do Corinthians, da Seleção Brasileira e do DFC é lembrado não só pelo talento com a bola nos pés, mas também por seu posicionamento político, dentro e fora dos campos.

Nos estertores da ditadura brasileira, iniciada em 1964, ele comemorava gols com o punho direito cerrado – marca registrada do socialismo, do movimento norte-americano Panteras Negras e de Reinaldo, camisa 9 do Atlético-MG e da nossa equipe –, ajudou a comandar um levante democrático dentro do clube no qual atuava e participou ativamente da campanha das Diretas Já, chegando a prometer não deixar o País caso a emenda Dante de Oliveira (que propunha as eleições diretas para a presidência da República) não passasse no Congresso – o que ocorreu.

Nem sempre foi assim, porém. Antes de trocar o Botafogo de Ribeirão Preto, cidade na qual morava desde pequeno, pelo Timão, e até nos primeiro anos no Parque São Jorge, pouco ligava para política. Ou, pelo menos, era o que queria transparecer.

Em uma entrevista à revista Playboy, em 1979, um ano após sua chegada a São Paulo, fez elogios aos ditadores Ernesto Geisel (1974-1979) e João Batista Figueiredo (1979-1985), os dois últimos da ditadura, e defendeu a eleição indireta. Disse, porém, que considerava o regime ideal o socialista.

Quem explica a mudança de posicionamento do fim dos anos 70 ao começo dos 80 é o jornalista Juca Kfouri:

– Antes de chegar a São Paulo, depois de ver o pai Raimundo queimando livros no quintal da casa deles, por causa do golpe de 1964, o Magrão preferia não se posicionar, tinha receio. Sua politização se deu na Capital, porque passou a devorar literatura política e filosofia e conheceu gente politizada.

Vale lembrar que o jornalista paulista fez inúmeras coberturas envolvendo o Doutor Sócrates e entrevistou o jogador tantas vezes que os dois acabaram ficando amigos. Das longas conversas entre eles ficaram quase duas dezenas de fitas gravadas. O material virou biografia nas mãos do escocês Andrew Downie: Doctor Socrates: Footballer, Philosopher, Legend.

Sobre seu biografado, Downie falou na época do lançamento do livro, em abril de 2017:

– Se não fosse a sua participação política na década de 1980, ele seria apenas mais um brilhante jogador brasileiro, como tantos outros da sua época. Ele transcende o futebol. O que fez fora de campo o diferencia de todos os outros.

Rebelde desde pequeno

Em 19 de fevereiro de 1954 nascia Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira. Ele veio ao mundo em Belém, capital do Pará. Filho da paraense Guiomar Sampaio de Souza e do cearense Raimundo Vieira de Oliveira, era o terceiro dos seis rebentos do casal. O pai era funcionário da Fazenda Federal.

Mesmo sem formação superior, Raimundo era um leitor inveterado. E no início dos anos 50 devorava livros sobre a Grécia Antiga. Daí os nomes dos três primeiros filhos (Sóstenes, Sófocles e o nosso craque). Depois, segundo brincava o Doutor, a porção cearense falou mais alto e vieram Raimundo, Raimar (mistura de Raimundo e Guiomar) e Raí, este também craque da bola e campeão do mundo em 1992, com o São Paulo, e em 1994, com a Seleção Brasileira.

Quando o Magrão tinha seis anos, a família mudou-se do Pará para São Paulo. Raimundo havia sido promovido e podia escolher a cidade onde trabalhar e morar no Interior paulista. Entre Campinas e Ribeirão Preto, escolheu a segunda. E foi ali que Sócrates cresceu e ganhou o mundo.

Filhos de funcionário público federal, ainda mais morando em cidade interiorana, o Doutor e seus irmãos tiveram uma infância tranquila. Muito estudioso, até por força do pai, Sócrates tinha um brinquedo preferido, o mesmo de dez entre dez meninos que viraram jogadores de futebol – a redonda.

Na entrevista à Playboy, em 1979, Sócrates conta que sempre foi bem no colégio, passou por média em todos os anos, inclusive quando cursou a Faculdade de Medicina na USP de Ribeirão, na qual se formou aos 23 anos.

– Tinha facilidade para absorver as matérias dadas em aula. Acho que fui mais estudioso até o colegial. Estava sempre entre os primeiros da turma – lembrou.

Antes de avançar na história de Sócrates, é preciso lembrar como era o Brasil na época em que ele cresceu. Um ano após a chegada dos Oliveira a Ribeirão Preto, em 1961, o gaúcho João Goulart, do PTB, era o presidente do Brasil. Ele tentou levar a cabo as reformas agrária e na educação, o que lhe valeu o rótulo de revolucionário, mesmo estando longe disso. Dessa forma, por pressões internas e externas, em 1º de abril de 1964, os militares, apoiados por parte da sociedade civil, deram um golpe de Estado, derrubando Jango.

Próximo a essa data, aos dez anos, Magrão presenciou uma cena que marcou sua vida. Viu o pai, leitor inveterado, colecionador de livros, queimar diversos títulos. Entre eles, obras de Filosofia e Política. Afinal, poderia não pegar bem um funcionário do governo com publicações tão “perigosas” como aquelas.

Talvez, aquilo tenha marcado o pequeno Sócrates, fazendo surgir sua consciência e compromisso políticos. Pode tê-lo, também, traumatizado. Anos mais tarde, quando entrou na faculdade, pouco se interessava pela política estudantil. Ele mesmo contou à revista masculina da editora Abril:

– O Diretório Acadêmico na minha época era muito quente. Era um pessoal barra-pesada em termos políticos. Eles queriam sempre o contrário do que estava acontecendo. Fosse na faculdade, fosse no governo. Estudante é sempre assim, quer sempre o contrário. Só entrei numa chapa para o diretório por gozação. Eu e o pessoal da farra fizemos uma chapa antipolítica.

Antes de chegar à faculdade, porém, aquele garoto magro e alto foi apresentado aos esportes e ao futebol no colégio Marista onde estudava. Mesmo se apaixonando pelo jogo de bola, teve que esconder a predileção do pai. Seu Raimundo não queria o menino correndo atrás de uma pelota. Anos mais tarde, o Doutor definiria aquela paixão:

– Não há nada mais marxista ou gramsciano do que o futebol. É uma atividade que se dá ao luxo de permitir que o pior ganhe.

Como bom rebelde, porém, Sócrates desobedeceu às ordens paternas. Na época, com o Santos encantando o Brasil, a América do Sul e o mundo, torcia para o Alvinegro praiano. E foi admirando as jogadas de Pelé e companhia que sua vontade de jogar aumentava.

Depois de brincar nas peladas pelas ruas, parques e quadras do então futebol de salão – o termo futsal só foi oficializado em 2000 –, aos 16 anos entrou para o juvenil do Botafogo Futebol Clube, time de sua cidade. Mesmo gostando tanto do esporte, não deixava os estudos de lado. Um ano depois, ingressava na Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto – foi nessa época que passou a ser chamado de Doutor Sócrates. Continuou com as duas atividades até se formar.

Quando ainda estava nas categorias de base, seu Raimundo ficou sabendo que o filho jogava bola. Descobriu ao acaso. Ao ir ao estádio assistir a um jogo do profissional deu de cara com o Magrão disputando a preliminar. Vendo que o filho, mesmo sem físico ou perfil de boleiro, jogava bem, acabou deixando. Com a condição de não abandonar os estudos.

Em 1973, aos 19 anos, recebeu o convite para subir para o profissional, que aceitou. Apesar de lhe faltar perfil de atleta – tinha o corpo franzino, media 1,91m e um pé pequeno demais para a altura – calçava 39 –, além de levar uma vida boêmia, gostando de fumar e de tomar cerveja –, o talento e a inteligência compensavam.

Os passes milimétricos, invariavelmente certos, e os toques de calcanhar já eram marca registrada. Fazia a bola e os companheiros correrem. Também tinha boa finalização. Assim, para se manter estudando e jogando, não foi difícil conseguir um acordo com a diretoria. Enquanto cursasse a faculdade, treinaria o mínimo possível, para se dedicar aos estudos.

A virada na chegada à Capital

As habilidades mostradas em campo com o Botinha, chamaram a atenção dos clubes grandes de São Paulo. O acordo com o pai, porém, era que só trocaria de clube quando terminasse a faculdade. O que aconteceu em 1977.
Suas atuações nas competições daquele ano, no Paulista e no Brasileirão, no qual marcou um antológico gol de calcanhar contra o Santos, dentro da Vila Belmiro, garantiram o interesse dos times da Capital. Principalmente o clube do Morumbi. O ano virou, contudo e ele foi parar no Corinthians, do folclórico presidente Vicente Matheus.

Reza a lenda que o São Paulo já negociava com o Botafogo quando Matheus resolveu se intrometer. Mandou emissários ao rival para negociar a compra de um jogador do Morumbi, enquanto foi pessoalmente a Ribeirão Preto contratar Sócrates.

A chegada à capital paulista foi um choque, recorda Juca Kfouri:

– O Magrão chegou a São Paulo assustado e caipira. Vinha de uma vida pacata em Ribeirão Preto, mais acostumado com o dia a dia de estudante de Medicina e boêmio.

Em seguida, o jornalista acrescenta, elogiando:

– Como jogador, Sócrates foi extremamente original. Dava de calcanhar porque tinha pé pequeno e se girasse rapidamente, cairia. Tocava de primeira pela lei do menor esforço, porque jamais foi atleta, com exceção da Copa de 1982. Tinha uma visão de jogo rara.

Já na chegada ao Parque São Jorge se entrosou com os novos companheiros, principalmente com o talentoso Palhinha, além de Zé Maria, Wladimir, Geraldão, entre outros, incluindo aí uma jovem revelação da base, o atacante Walter Casagrande Jr., hoje comentarista da TV Globo. As boas atuações pelo Timão o levaram à Seleção Brasileira no ano seguinte, pela qual estreou em um amistoso contra o Paraguai.

Ainda naquele ano daria a famosa entrevista à revista Playboy na qual proferiu declarações no mínimo polêmicas sobre o regime militar. Sobre os dois últimos ditadores, disse:

– Ernesto Geisel (1974-1979): “fez muita coisa importante (…) Liberou muita coisa… começou a abertura, revogou o AI-5”;

– João Figueiredo (1979-1985): “está fazendo o que prometeu. Pelo menos tudo aquilo que ele fez havia prometido. Eu sinto isso”.

Mesmo tendo poupado os presidentes milicos, chegou a criticar a ditadura. Falou de alguns objetivos que os militares propagandeavam, como combater a corrupção, a subversão e a inflação – sempre em alta na época dos coturnos, como lembrou. Da subversão, “ouve-se pouco”, afirmou. Já sobre a hoje comprovada corrupção perpetrada pelos homens da caserna: “a gente ouve falar por aí. Ultimamente apareceu muito”.

E completou, profético: “Eu não aceito corrupção, mas acho que é uma realidade. Brigo para não ser corrupto, mas sinto que ela está por aí… É uma grande maioria… Se fosse uma minoria seria fácil extinguir”.

Mais para o final da conversa com o jornalista, chegou a dar alguns relances do posicionamento que tinha ou viria a ter a partir dos primeiros anos da década seguinte. Afirmou reconhecer a necessidade de uma Constituinte, “só com parlamentares escolhidos pelo povo”.

E defendeu o socialismo: “Prefiro um regime socialista, onde todos tenham os mesmos direitos e deveres. Um regime socialista puro. Que ninguém tenha nada sobrando, mas que também não falte nada”.

Sua virada, de antipolítico a engajado, veio aos poucos, mas chegou ao ponto de ele mesmo decretar, certa vez, já aposentado, sobre seu ativismo:

– Quando era jogador, minhas pernas amplificavam minha voz.

O Doutor atleta e a Democracia Corintiana

O primeiro técnico a convocar Sócrates para a Seleção havia sido Claudio Coutinho. Justamente na sua última partida no comando do Brasil. O jogo foi em 30 de outubro, e o Magrão marcou os dois gols do empate em 2 a 2 com o Paraguai. Na virada do ano, a CBF trocou o comando da equipe, chamando Telê Santana, que já na primeira convocação manteve Sócrates na equipe.

Na virada de 1980, começo de 1981, no Uruguai, foi disputado o Mundialito, uma espécie de mini Copa do Mundo, com os campeões mundiais até então – Uruguai (1930 e 1950), Itália (1934 e 1938), Alemanha (1954 e 1974), Brasil (1958, 1962 e 1970) e Argentina (1978) –, mais a Holanda, vice-campeã nos dois últimos torneios. O Brasil de Telê já era o esboço daquele time que encantaria o mundo na Copa da Espanha, um ano depois. Disputou o título com os donos da casa e perdeu por 2 a 1.

Dali em diante, o Doutor garantiu vaga na equipe de Telê, conquistando, inclusive, a faixa de capitão. A aposta do comandante da equipe no camisa 8 era tanta que houve um pacto. Dali até a Copa do Mundo, Sócrates daria um tempo na boêmia. Deixaria de lado as noitadas, o cigarro e a cerveja e se concentraria nos treinamentos.

Como comentou certa vez o psicólogo Flávio Gikovate, que trabalhava no Corinthians à época, havia uma ligação inversamente proporcional entre a atuação em campo e o estado afetivo de Sócrates. Ele jogava melhor quando estava triste ou com problemas pessoais, e rendia menos quando estava mais feliz e animado. Talvez por isso, afastado das farras, em 1981, 1982 e 1983 tenha conseguido seus melhores desempenhos em campo.

O próprio Sócrates confirmava que aquele período foi um dos que mais produziu. Com a camisa do Timão, ou com a amarelinha. Além disso, essa boa fase veio acompanhada de uma revolução no Parque São Jorge.

Voltando um pouco no tempo, o Corinthians vinha de péssimas campanhas no Brasileirão e no Paulista de 1981. No ano seguinte, quando seria disputado o Mundial, o Timão teve troca na cartolagem. Em abril, saía Matheus e entrava Waldemar Pires. Com a escolha de Adílson Monteiro Alves para a direção do futebol, iniciavam-se mudanças que marcariam uma época.

Descrito por Gilvan Ribeiro em Casagrande e Seus Demônios, como um “sociólogo com ideias revolucionárias”, Adílson colocou fogo no Parque. Ele passou a ouvir os jogadores e outros membros do clube. Somado a isso, a presença de dois jogadores fortemente politizados, o lateral-esquerdo Wladimir e Sócrates, estavam postos os ingredientes para a revolução.

A partir desse trio e, somado a eles, o atacante Casagrande, foi instituída uma autogestão, com jogadores, funcionários, comissão técnica e diretoria discutindo variadas pautas – desde contratações, demissões e, até, regime de concentração – na base da democracia, um homem, um voto. Peso igual, do roupeiro ao presidente. Era a Democracia Corintiana surgindo em meio aos últimos anos da ditadura no Brasil.

Em meio a esse movimento, veio a Copa do Mundo, com a Tragédia do Sarriá. O futebol bonito de Telê, com um meio-campo formado por cracaços como Toninho Cerezo, Falcão, Sócrates e Zico encantou as torcidas. Enfileirou quatro vitórias seguidas (2×1 na Rússia; 4×1 na Escócia; 4×1 na Nova Zelândia; e 3×1 na Argentina). Na última partida, dependendo de um empate, perdeu para a Itália por 3 a 2, no hoje demolido Estádio Sarriá. Era o fim de um sonho.

Enquanto isso, no Brasil, a Democracia Corintiana mostrava resultados positivos, dentro e fora de campo. O time chegou às semifinais do Brasileirão de 1982 e foi bicampeão paulista, em 1982 e 1983. Além disso, o clube quitou dívidas e deixou uma reserva de pouco mais de US$ 3 milhões, na época uma fortuna para um time brasileiro.
Impulsionada pela abertura, fora de campo, a população iniciava a pressão pela volta da democracia no Brasil.

Afinal, o país ainda vivia na ditadura iniciada em 1964. A prova era que os brasileiros votavam apenas para cargos legislativos e para prefeito e governador, restituída naquele ano. O presidente ainda era escolhido de forma indireta.
Assim, ainda em 1982, o Corinthians protagonizava uma ousadia, levando a democracia do vestiário para o gramado e além das quatro linhas. No dia 10 de novembro, às vésperas do pleito, em um clássico contra o São Paulo, no Morumbi, entrava em campo com a primeira camisa com patrocínio no Brasil. Não era qualquer propaganda, contudo.

Nas costas, toda a equipe trazia os dizeres “Dia 15 vote”, numa alusão às eleições para governador dali a cinco dias. A iniciativa partiu do vice-presidente de Marketing do clube na época, o publicitário Washington Olivetto – responsável pelo termo Democracia Corintiana –, a partir de uma ideia do jornalista Juca Kfouri, e foi abraçada pelo grupo de jogadores e pela direção.

Devido a esses posicionamentos, os boleiros do Timão passaram a ser observados pelo regime militar e tinham fichas no temido Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). Sobre Sócrates, os arquivos tinham registros de jornais que citavam a participação do craque em alguns eventos “suspeitos”.

Como o futebol, principalmente o brasileiro, é feito de resultados, porém, a Democracia Corintiana acabou ruindo diante dos fracos desempenhos na temporada de 1985. Além disso, um dos golpes no movimento corintiano veio de Brasília. Em 25 de abril de 1984, a Câmara de Deputados votava e derrubava a emenda Dante de Oliveira, que previa eleições diretas no ano seguinte. Como na campanha Diretas Já Sócrates havia dito que não deixaria o país caso o projeto de lei fosse aprovado, o craque do Corinthians e da Seleção teve que cumprir a promessa. Acabou indo para a Itália.

O Magrão foi parar na Fiorentina, em Florença. Não se acostumou com o nada do pragmático futebol italiano. Muito menos com a vida na Europa. Um ano depois, voltava para o Brasil, indo jogar no Flamengo. Atuou pouco no Rubro-Negro, apenas 25 partidas em um ano. Em 1988, chegava ao seu clube de infância, o Santos. Mais um ano e voltava para seu primeiro time, o Botafogo de Ribeirão, para em seguida largar o esporte.

Quebra de braço com a Fifa

Antes de deixar os gramados, porém, nosso camisa 8 ainda disputou sua segunda Copa do Mundo. Em 1986, no México, era novamente o capitão da equipe. Com Telê Santana também na casamata.

O Brasil teve uma campanha modesta, com apenas lampejos do bom futebol de quatro anos antes. Os principais jogadores estavam mais velhos ou lesionados. A Seleção venceu a Espanha por 1 a 0, a Argélia pelo mesmo placar, fez 3 a 0 na Irlanda do Norte, goleou a Polônia por 4 a 0 e acabou eliminada nos pênaltis, nas quartas de final, pela França, após um 1 a 1 no tempo normal e na prorrogação.

Já na estreia, que teve gol da Fúria mal anulado, Sócrates soltou o verbo contra a Fifa. Em uma entrevista pouco após o jogo, afirmou:

– Por razões políticas e comerciais evidentes, todo mundo sabe que, pelo interesse geral, é preciso que as seleções do México e do Brasil prolonguem sua participação na Copa o máximo possível. As arquibancadas precisam estar cheias, e essas duas seleções cumprem esse papel.

Com a fala, desafiou os interesses comerciais da entidade máxima do futebol e denunciou suposta corrupção. A Fifa anunciou investigação, que nunca teve resultado divulgado.

Além desse posicionamento, o Doutor também mostrou que defendia cada vez mais o igualitarismo, dando um sinal de que a justiça, a liberdade e a arte estavam acima dos seus interesses pessoais, do Brasil e do negócio futebol. Tanto que a cada partida, ia a campo de faixa na cabeça, com mensagens políticas evocando a paz, denunciando o apartheid da África do Sul ou a favor da ajuda a Etiópia.

Aposentado em 1989, aos 35 anos, o Magrão tentou voltar à Medicina, fundou uma clínica em Ribeirão Preto, escreveu para a revista CartaCapital e continuou dando entrevistas e se posicionando politicamente até a morte, em 4 de dezembro de 2011, como consequência do consumo abusivo de álcool.

Morreu num domingo, dia de clássico paulista pelo Brasileirão. Antes daquele Corinthians x Palmeiras, que confirmaria o pentacampeonato brasileiro ao Timão, jogadores e comissão técnica da equipe prestaram uma última homenagem ao craque da camisa 8. Todos ergueram o braço direito, com o punho cerrado, como o Magrão fazia ao comemorar seus gols.


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A série tem a colaboração de Diego Figueira, na revisão dos textos, e do craque do traço Gonza Rodriguez, nas ilustrações.

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Roberto Jardim

Jornalista, dublê de escritor e pai da Antônia. Tudo isso ao mesmo tempo, não necessariamente nessa ordem. Autor dos livros Além das 4 Linhas e Democracia Fútbol Club.Como fazer jornalismo independente, mantém uma campanha de financiamento coletivo no Apoia.se, que ajuda na produção do projeto Democracia Fútbol Club, que tem o objeto de contar a história de jogadores e técnico, times e clubes, torcedores e torcidas que usaram a desculpa do futebol para irem além das quatro linhas.

Como citar

JARDIM, Roberto. O doutor da bola e da democracia. Ludopédio, São Paulo, v. 125, n. 12, 2019.
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