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O Fla-Flu dos 68 mil

Gabriel Said 11 de julho de 2020

No dia 8 de julho aconteceu um daqueles Fla-Flus que são lembrados por anos e anos.

Em campo o Flamengo parecia imbatível: campeão do Brasil, da América, a última grande derrota rubro-negra foi sua eliminação na Copa do Brasil em 2019 para o Athletico Paranaense, que viria a ser campeão do torneio pouco depois. Desde 2019 o Flamengo é campeão ou perde para o campeão!

Naquele jogo da eliminação contra o Athletico no Maracanã, 68 mil pessoas viram a derrota da equipe carioca nos pênaltis. Prestem atenção nestes sinais.

Fora de campo o Flamengo acumula – também desde 2019 – notícias calorosas de seu sucesso “empresarial”, além de fatos lastimáveis para qualquer clube de futebol. O clube que se diz nação conseguiu algo digno de um Estado: está nas capas das seções esportivas, policiais, financeiras e políticas dos jornais.

A partir de maio o rubro-negro moveu todas as suas forças para garantir o retorno do futebol. As últimas diretorias do Flamengo não vivem no mesmo país que sua nação.

Quando vazou a informação que os EUA espionavam até seus aliados, a primeira-ministra alemã, Angela Merkel lembrou os americanos de que “entre amigos não se faz espionagem” assim como um adulto ensina boas maneiras para uma criança.

Alguém deveria falar algo assim para os dirigentes da Gávea. “Amigo, não sabe que sem a nação no Maracanã não é pro Flamengo jogar?”

O futebol-negócio venceu a queda de braço e o campeonato voltou em meio ao caos pandêmico no Rio de Janeiro.

Médicos do Fluminense levantam o troféu de campeão da Taça Rio. Foto: Lucas Merçon/Fluminense.

O Rei do Rio, título justo para o clube que parece conseguir tudo que quer, recentemente ganhou até uma Medida Provisória do presidente da República para chamar de sua.

Pela MP do Flamengo o clube mandante das partidas poderia negociar a transmissão da maneira que fosse mais conveniente e levar todos os lucros.

Nas primeiras partidas após a MP rubro-negra estar valendo o Flamengo foi o mandante. Na final da Taça Rio, por azar de um sorteio, o Fluminense seria o mandante.

O cenário em Laranjeiras era bem diferente. Talvez por já viver com o orçamento apertado e resultados que não fazem jus ao clube, o tricolor está bem próximo ao chão e veste suas sandálias da humildade.

Os impactos da parada forçada do futebol são menos sentidos no bairro das Laranjeiras do que na Gávea. Diz o ditado que quanto mais alto você estiver, maior a queda.

Nas casas, esquinas e botecos eram feitas piadas cruéis: quantos gols o Flamengo faria no Fluminense? Quatro? Cinco?

O tricolor Nelson Rodrigues inspira esta crônica. Caricatura da Exposição Futebol Pensado, do Sesc Vila Mariana (junho de 2006). Arte: Baptistão Caricaturas.

Mas o Fluminense tem um pacto com o sobrenatural. Ao se colocar contra o retorno do campeonato carioca, o Fluminense fez justiça para todos aqueles tricolores mortos que aparecem quando o clube precisa de resultado.

O momento não é para ter futebol, isso é mais do que claro: é o óbvio ululante.

O Flamengo ao insistir em jogar contra o Fluminense em um Maracanã “ensurdercedoramente silencioso” se colocou em uma imensa desvantagem: naquele dia teríamos no país 68 mil vítimas pelo Covid-19.

Todos eles levantaram de suas tumbas e caminharam para as arquibancadas do Maracanã no dia 8 de julho.

Estavam ali não por amor ao tricolor, muitos certamente eram rubro-negros. Mas naquele dia 8 o Flamengo não podia ganhar. O Flamengo que decidiu ignorar seu povo, que é indiferente sobre o incêndio em seu Ninho, não… existem jogos na história que nem mesmo os deuses do futebol se atrevem a fazer suas travessuras. Este foi um destes jogos.

Joguem fora as pranchetas, ignorem a sorte e dispensem o tatiquês. O Flamengo perdeu porque não podia ganhar.

Os jogadores rubro-negros jogavam carregando em suas costas o peso das decisões políticas do clube enquanto os tricolores jogavam sem peso algum além de sua charmosa camisa tricolor.

Prestem atenção na arquibancada atrás da baliza onde aconteceram todos os gols: Gravatinha, o 68.001° torcedor estava lá. Aquele que só aparece quando uma vitória épica do Fluminense está prestes a acontecer.

E aconteceu. O Flamengo perdeu nos pênaltis mais uma vez, assim como na derrota para o Athletico.

Hoje as piadas já estão de volta. O Fluminense é tratado como um atrevido provocando um leão com vara curta. É verdade que os fatos estão todos contrários ao tricolor, mas pior para eles. A história tricolor mostra que não se trata de um clube que liga para o quê os idiotas da objetividade dizem.

Na final do inédito Gatoferj tudo é possível, até a goleada rubro-negra. Mas este Fla-Flu que, assim como manda o roteiro, começou 40 minutos antes do nada e até o momento o Fluminense vem conquistando uma de suas mais lindas e doces vitórias.

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Gabriel Said

Formado em Sociologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestrando em Antropologia pela UFF e aluno da Associação de Treinadores do Futebol Argentino (ATFA). Participa do grupo de estudos de Futebol e Cultura, do LEME/UERJ; do grupo de Futebol e Humanidades da Universidade do Futebol e do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Esporte e Sociedade (NEPESS), da UFF. Além de escrever a coluna Danúbio Azul no Ludopédio, também escreve para a Universidade do Futebol. E-mail: [email protected]

Como citar

SAID, Gabriel. O Fla-Flu dos 68 mil. Ludopédio, São Paulo, v. 133, n. 27, 2020.
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