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O futebol e as falácias argumentativas – parte 1: introdução

Ewerton Martins Ribeiro 28 de outubro de 2015

Se tem uma coisa que não falta no autêntico churrasco de domingo é a discussão sobre futebol. O caso é que, depois de participar de tantos eventos dessa estirpe, acabei descobrindo-os como um relicário de exemplos para um assunto sobre o qual há muito desejava escrever: as falácias argumentativas, esses hipócritas recursos retóricos que contaminam toda discussão que tentamos empreender na contemporaneidade com um mínimo de decência lógica — seja sobre questões importantes, como política ou religião, seja sobre a questão mais importante dentre as questões sem importância: o futebol, é claro.[1]

Neste textão, pois, apresento a falácia argumentativa como uma patologia comunicativa especialmente pertinente à nossa atual conjuntura social, tão maniqueistamente acirrada — o que me parece diretamente relacionado com o advento das redes sociais, estruturas que potencializaram sobremaneira a radicalização dos ânimos para além dos nossos últimos resquícios de civilidade.

Dada a quantidade de falácias argumentativas que colecionei, este texto será publicado em partes aqui no Ludopédio. Nesta introdução, gastarei alguns parágrafos para delinear o que poderíamos definir como falácias argumentativas e para apresentar o por que de eu entendê-las como o símbolo-mor da falência da nossa pretensão à racionalidade. Nos textos seguintes, apresento a coletânea que fiz dessas falácias, por meio de pequenos diálogos ficcionais, tendo o futebol como mote e exemplo.

Como se poderá perceber aqui, o problema desses argumentos estúpidos é que, mesmo sendo falaciosos, eles infelizmente funcionam — mesmo se baseando em premissas irracionais, ilógicas e, não raro, maquiavélicas. (Bem, talvez por isso mesmo a prática da falácia argumentativa seja um expediente tão comum ao tempo contemporâneo, essa época de tão racional irracionalidade, a luz absurda que só enxergamos como pura escuridão[2]). Falemos então, a priori, sobre o que há de ser uma falácia argumentativa.

A falácia argumentativa

A palavra “falácia” vem de “falaz”, que significa aquele que engana, frauda, ilude; remete, assim, à ideia de falsidade.

“Falácia” e “falaz” têm origem no latim: a primeira vem de falacia, que significa “engano”, e “falaz” vem de fallace, “enganador”.[3]

Na filosofia aristotélica, “falácia” é então um enunciado ou um raciocínio falso, equivocado, mas que simula ser verdadeiro; que passa a ilusão de verdade com o objetivo de (con)vencer numa discussão. É aí, pois, que podemos situar a ideia de falácia argumentativa.

Uma falácia argumentativa é um recurso comunicativo hipócrita a que um sujeito recorre para ganhar um debate. A chave do recurso é que ele (dis)simula um acordo com a lógica e suas regras, produzindo certa ilusão de verdade, enquanto sua estrutura interna se faz deliberadamente enganosa e incorreta.

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Coletiva de imprensa da seleção brasileira reúne uma série de profissionais interessados na produção de discursos. Foto: Jefferson Bernardes – VIPCOMM.

A razão do debate

Bem, no início do último parágrafo eu disse que “uma falácia argumentativa é um recurso comunicativo hipócrita a que um sujeito recorre para ganhar um debate”. Ao meu ver, era preciso que dessa colocação nós já sacássemos qual é o problema da coisa toda. Infelizmente, não é assim que acontece — e isso me soa como um indicativo muito claro da escuridão em que vivemos na contemporaneidade, de que falei agora há pouco.

Estamos tão imersos na lógica maniqueísta e competitiva do mundo contemporâneo que não percebemos que o problema originário nem é a falácia, em si, e sim estarmos buscando vencer discussões, em vez de aprender com elas.

Em origem, talvez tenhamos desenvolvido o debate como um recurso comunicacional para entrarmos em contato com a alteridade, com a experiência contínua do outro, e assim podermos evoluir, a partir desse contato, no pensamento próprio e conjunto. Contudo, em algum momento, parece que fomos privados dessa capacidade de assimilar o conceito de perspectiva. (Ou talvez nunca o tenhamos desenvolvido a contento, sabe-se lá.) O caso é que, seja desde sempre, seja desde algum momento de inflexão em nossa história comunicacional, a ferramenta debate se viu reduzida a um mero artifício formatado para “provarmos” para nós mesmos uma nossa já solidificada sapiência sobre o mundo e sobre o outro.

O que não nos avisaram, em relação a isso, é que o mundo e o outro continuam se transformando eternamente, instante a instante, e que a única forma de nos mantermos minimamente cientes de suas realidades é dialogando constantemente com eles; ouvindo-os, ininterruptamente.

Mas não. Infelizmente, hoje ninguém mais tem perguntas. Todos satisfazem-se em ter apenas o que dizer.

Vivemos, pelo que se pode perceber na internet (e estou falando menos das áreas de comentário, para escapar da obviedade, mas da rede como um todo), a era de ouro das respostas. Ninguém mais tem perguntas sobre nada.

Trata-se de um ouro kitsch, certamente; mas que, justamente por ser kitsch, brilha solarmente, como bem podemos notar na abundância de informações-respostas que despontam nas redes sociais segundo a segundo.

De tudo isso talvez se depreenda a importância de se compreender o que são e como funcionam falácias argumentativas. Se a hipocrisia é inevitável, cabe nos capacitarmos para não cometê-la, reconhecê-la e confrontá-la sabiamente.

A estratégia deste texto

Com o futebol como mote e exemplo, reuni algumas das principais falácias argumentativas que são empregadas atualmente em nossas discussões com o intuito de vencer os debates. O interessante da conversa proposta aqui é o caráter exemplar: se no futebol talvez não se faça assim tão insalubre o uso de recursos hipócritas-escusos para “derrotar” o outro no campo argumentativo (afinal, no futebol o debate também é lúdico, e ora se dá como parte mesma do jogo), fora das quatro linhas o uso desses mesmos recursos mostra-se como um ato claro de má-fé: má-fé em relação aos outros e em relação a si mesmo[4]; má-fé que faz ruir pelos alicerces as nossas possibilidades de evolução coletiva racional por meio da comunicação.

A proposta deste texto, então, é que nos divirtamos com as nossas falácias argumentativas futebolísticas para, assim, alertarmo-nos, simultaneamente, dos riscos de continuarmos a empregá-las fora de nossas vivências lúdico-esportivas.

Neste mês introduzi o tema — sem falácia. Mês que vem chego com uma lista delas. Até lá.

[1] Como já disse Nelson Rodrigues (ao que se diz).

[2] Sobre essa alegoria, ver: AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo?. In: O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.

[3] Conforme: NASCENTES, Antenor. Dicionário etimológico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: 1932. p. 322-323.

[4] Só um tolo não perceberia que a fraude da falácia argumentativa é cometida não apenas em relação ao outro, mas também (talvez principalmente) contra si próprio e suas possibilidades de evolução por meio da interação com a alteridade.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Ewerton Martins Ribeiro

Escritor de ficção, jornalista da UFMG, mestre e doutor em estudos literários e bicampeão brasileiro em 2021.

Como citar

RIBEIRO, Ewerton Martins. O futebol e as falácias argumentativas – parte 1: introdução. Ludopédio, São Paulo, v. 76, n. 13, 2015.
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