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O futebol e os Jogos Olímpicos

Katia Rubio 3 de abril de 2012

No início de março gastei umas boas horas de trabalho lendo e corrigindo o texto de qualificação de Sérgio Settani Giglio. Sérgio além de ser um dos criadores do site Ludopédio, que se dedica à informação e divulgação das muitas manifestações do futebol, é também um pesquisador dedicado do futebol como fenômeno social. Quando me procurou para fazer seu doutorado desejava estudar os significados e desdobramentos das peneiras na vida dos tantos garotos que arriscam seu futuro desejando ser um ídolo do esporte bretão no Brasil.

Porém, ao tomar contato com a metodologia das histórias de vida com a qual trabalho em minha pesquisa, e mais especificamente com os atletas do futebol feminino e masculino, ele resolveu alterar os rumos de sua pesquisa e mergulhou de cabeça na história do futebol dentro dos Jogos Olímpicos. Sua dedicação à pesquisa e disposição para sair do lugar comum estão fazendo-o produzir um texto inédito, repleto de informações, que dará o que falar e pensar. Nossas três horas de reunião de orientação na última sexta-feira me fizeram ter aquela sensação boa de que esse trabalho vale a pena. E vale porque eu posso contribuir com o que sei e também aprendo com as descobertas dele. E no processo dialógico entendo, invento, penso e crio sobre esse fenômeno e saio renovada para novos pensares sobre minha própria pesquisa.

Na trilha desse descobrimento começo a amarrar todas as informações obtidas por meio dos atletas já entrevistados, sejam eles do futebol ou não. Para todos do Grupo de Estudos Olímpicos que estão envolvidos com as entrevistas fica claro que os atletas do futebol masculino constituem um grupo distinto das demais modalidades olímpicas. Se para os olímpicos em geral uma medalha, ou mesmo um pódio, é o sonho maior a ser realizado, para os atletas do futebol é um título que pode ajudar na construção de uma carreira profissional mais promissora. Vale lembrar que apesar de o Brasil ser penta campeão mundial no profissional, a medalha de ouro olímpica ainda está para ser conquistada.

Nesse estádio o Brasil perdeu para a Argentina pela semifinal da Olimpíada de Pequim e viu adiada a possibilidade de conquistar, pela primeira vez, a tão sonhada medalha de ouro. Foto: Marcelo Prais.

O que observamos no decorrer da pesquisa é que o discurso acerca da conquista olímpica vai se alterando na medida em que as gerações se renovam e o futebol profissional se transforma. Vários atletas do futebol falam com um certo desdém dos Jogos Olímpicos entendendo-os como UMA competição e que A competição de suas vidas é de fato a Copa do Mundo. Isso fica nítido na fala dos mais velhos, que viveram a profissionalização do futebol em um momento em que essa condição não se estendia aos atletas olímpicos. Ou seja, o jogador de futebol desde sempre foi profissional, ainda que não passasse de um proletário do esporte, afinal os grandes salários nunca foram um privilégio de muitos. Mas como apontou Bebeto de Freitas em sua entrevista para a revista Isto É 2016, de março de 2012, o futebol é democrático porque é mais acessível pelo número de clubes que disputam os muitos campeonatos que acontecem pelo país afora, diferente de outras modalidades em que o calendário prevê competições apenas em alguns meses do ano.

E assim começamos a entender um pouco melhor a dinâmica do futebol dentro dos Jogos Olímpicos de Verão. Ele deveria ser apenas mais uma entre as 26 modalidades disputadas na última edição olímpica, mas desde sempre sua história está marcada por disputas institucionais que envolvem o COI e a FIFA, com os seus respectivos interesses a intermediar esse conflito e essa convivência. Isso só prova o quanto o esporte está sujeito às mazelas do momento histórico em que ele ocorre.

Se no princípio a marca da discórdia estava gravada nas disputas entre as ligas amadoras e profissionais, que camuflavam relações sociais pautadas em uma sociedade classista, mais do que racista, esses interesses foram tendo seus contornos alterados pelos muitos interesses emergentes ao longo do século XX. Como escrito acima, o futebol nunca precisou negar sua condição profissional e a criação da Copa do Mundo em 1930 marcou sua autonomia em relação ao Movimento Olímpico, condição que as demais modalidades só alcançaram a partir dos anos 1980, com a profissionalização e autonomia financeira adquirida em função dos grandes contratos de patrocínio.

Penso que a realização no Brasil da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos em 2016 nos dá a falsa impressão que esses eventos são distintos, porém complementares. Ledo engano… Está cada vez mais claro que a disputa pela condição de maior evento do planeta colocam essas competições em um campo de disputas de poder político e financeiro, ora percebido pelos atletas, ora não.

As muitas tentativas de retirar o futebol do programa olímpico pela FIFA apontam nessa direção. Já se tentou restringir a participação pela idade, pelo tempo de exercício profissional, pela participação em Copa do Mundo, enfim, essa disputa ainda não chegou ao seu limite. E isso ficou claro com a entrevista de João Havelange, atleta olímpico da natação e do polo aquático, e dirigente da FIFA por 24 anos. Questionado sobre as razões dos conflitos entre o COI e a FIFA Havelange foi categórico: o futebol não interessava ao COI no início do século XX porque era um esporte popular, de massa, e essa massificação não agradava à aristocracia dominante do COI.

Não é preciso nem recorrer aos autores da sociologia do esporte para reafirmar essa condição. Dominados pela aristocracia europeia do final do século XIX, e mantidos dessa forma até a segunda metade do século XX, o COI e a FIFA demonstram o eurocentrismo dominante em sua hierarquia, bastando para isso apenas um correr de olhos na lista de todos os seus presidentes: no COI dos 6, 5 deles eram europeus e apenas um norte-americano; e na FIFA dos 8, 7 eram europeus e apenas 1 brasileiro. O esporte nasceu aristocrático e assim se manteria até a II Guerra Mundial. A popularização do esporte olímpico causava espanto e constrangimento aos seus criadores e mandatários, mas o futebol já se encontrava fora desse controle desde o final do século XIX. Parte dessa responsabilidade devia-se às fábricas e igrejas que construíram campos de prática ao lado de suas instalações, ora ampliando seu quadro de funcionários, ora multiplicando um rebanho de fiéis que parecia cada vez menos interessado nos sermões dominicais. Favorecido por uma sociedade de costumes conservadores por um lado, mas absolutamente liberal no que se referia a uma cultura de apostas, o futebol fugiu ao controle dos Senhores dos Anéis desde sempre. Para praticantes e espectadores não havia qualquer problema que aquele entretenimento estivesse associado à classe operária. Ele causava emoção, e isso era o suficiente. A prática e audiência do esporte olímpico só experimentou essa massificação após o advento das transmissões das competições, o que veio a se tornar a principal fonte de renda do Comitê Olímpico Internacional.

Havelange prosseguiu em seu raciocínio enveredando por outras questões, bem menos emocionais e muito mais pragmáticas do universo esportivo do século XX: os interesses comerciais. Relatou o ex-presidente da entidade máxima do futebol que a Copa do Mundo é a grande geradora de receita para a FIFA, e sendo assim não seria razoável deixar seu maior espetáculo ser ofuscado pela disputa olímpica que provocaria uma perda de renda. Em suas próprias palavras, “não podíamos engordar o porco do outro”.

É claro que essas representações e disputas também atingem os protagonistas do espetáculo esportivo.

Observamos no presente que embora haja restrição de idade para os atletas do futebol que participam dos Jogos Olímpicos, é também cada vez maior o número daqueles que jogam no exterior e que estão absolutamente preocupados com seus contratos, mais do que com a medalha que ainda falta ao país. Talvez por isso vejamos um espetáculo que está muito longe de ser aquilo que desejamos de um bom futebol.

Talvez fosse o caso de fazer algumas recomendações àqueles que cuidam do futebol olímpico. Embora as disputas sejam em diferentes cidades, como na Copa do Mundo, a partir das semifinais os quatro times vão para a cidade sede e costumam se hospedar na Vila Olímpica, embora alguns atletas relataram que as instalações foram precárias! Lembrar também que o futebol é mais uma entre 25 modalidades do programa olímpico, e que naqueles dias, naquele espaço, há uma constelação de astros que nada devem às estrelas do futebol. E por fim, mas não menos importante, que mesmo com contratos milionários os atletas convocados a participar dos Jogos Olímpicos ainda se envolvem com um sentimento chamado “espírito olímpico”, condição que desde 1996 sobrou ao time feminino, primo pobre e discriminado do futebol masculino. Se não for assim, talvez a FIFA tenha razão. Talvez o futebol não caiba mesmo nos Jogos Olímpicos.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Katia Rubio

Professora da Escola de Educação Física e Esportes da USP.

Como citar

RUBIO, Katia. O futebol e os Jogos Olímpicos. Ludopédio, São Paulo, v. 34, n. 1, 2012.
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