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O futebol e seus novos castelos de areia

Marco Sirangelo 8 de maio de 2020

Sir Bobby Robson, histórico treinador eternizado com uma estátua no St. James’ Park, estádio do Newcastle United, seu clube do coração, escreveu em seu livro:

“O que é um clube? Não são os escritórios ou os diretores e pessoas pagas para representá-lo. Não são os contratos de televisão, as multas rescisórias, os departamentos de marketing ou os camarotes executivos. É o barulho, a paixão, o sentimento de pertencimento, de orgulho da sua cidade. É o garoto subindo as escadas do estádio pela primeira vez, segurando a mão de seu pai, vislumbrando aquele pedaço sagrado de grama embaixo dele e, sem poder fazer nada a respeito, se apaixonando”.

Pois bem, 300 milhões de libras usadas para a aquisição e mais uma capacidade irrestrita de investimentos vindos de um fundo soberano de uma ditadura no Oriente Médio. Isso deve fazer com que este mesmo Newcastle United muito em breve se torne um dos clubes mais ricos do mundo. O processo de compra ainda está em análise pela Premier League e sofre justa resistência por parte da Anistia Internacional, graças às constantes violações aos Direitos Humanos causadas pela Arábia Saudita, os principais interessados no negócio. Há também conflitos com o grupo de mídia Bein Sports, detentor dos direitos de transmissão da Liga inglesa no Oriente Médio e que também é ligado a um fundo soberano da região, no caso, do Catar.

Estátua de Bobby Robson, do lado de fora do estádio St. James’ Park, em Newcastle, Ingalterra. Foto: Wikipedia.

O caso traz à tona um debate cada vez mais presente no futebol moderno, sobre quão longe o torcedor é capaz de ir em troca de ver o seu time forte. Não importa o tamanho do clube, todos estão sujeitos a épocas de vacas magras. E são seus torcedores quem realmente sofrem com isso, afogando as mágoas distorcendo feitos talvez nem tão grandiosos do passado e alimentando esperanças de novos momentos felizes que teimam a chegar. Bastam poucas cervejas para que a ambição de levantar um troféu e de vestir a mesma camisa usada por um craque internacional ocupe a prioridade número um da vida de um amargurado torcedor.

É pouco provável, portanto, que algum torcedor do Chelsea tenha pensado na procedência do dinheiro que pagou pela transferência de Drogba quando o atacante marcou o gol de cabeça contra o Bayern de Munique. O mesmo vale para o fanático do Manchester City que invadiu o campo após Agüero desempatar o jogo contra o Queens Park Rangers no último segundo. Muitos acordos fora dos registros ocorreram para que esses fatos acontecessem, assim como muitos iates não foram declarados, muita troca de influência e especulação financeira foram realizadas e muita mão de obra foi explorada.

É bastante complexo. E, sim, é errado. A compra do Newcastle é extremamente questionável. O que também não ajuda é a péssima relação que Mike Ashley, proprietário atual, tem com os torcedores do clube. Desta forma, qualquer um que livrasse o St. James’ Park do atual engodo já ganharia a simpatia dos fãs. Por isso, apesar de tudo, é muito provável que o acordo aconteça e os Magpies passem pelos processos que envolvem a construção de um time forte. E essa talvez seja a hora mais interessante de tudo isso, afinal, por mais que o Fair Play Financeiro coloque restrições que pouco existiam há uma década, o cheque em branco para montar um novo elenco mexe com o imaginário de todos os envolvidos com futebol.

Torcedores do Newcastle mostram cartões vermelho para Mike Ashley em maio de 2015. Foto: Wikipedia.

O primeiro passo, portanto, seria a definição do “homem-forte” de toda a operação. No caso do Newcastle, é bem capaz que este posto seja ocupado por uma mulher, a empresária britânica Amanda Staveley. Já é tempo para que as mulheres ocupem essas funções, o que demandaria uma necessária mudança de nome e soaria até paradoxal neste caso envolvendo uma organização saudita, já que apenas em 2018 é que o país permitiu mulheres em estádios de futebol. De bom trânsito no Oriente Médio, Staveley é a principal responsável pelas negociações do clube com o fundo soberano e também participou do processo de venda do Manchester City para o Abu Dhabi United Group, em 2008. Resta saber se é de sua intenção envolver-se nas atividades do clube, algo especulado pela imprensa inglesa.

Segundo, algum nome importante no mercado do futebol europeu deve receber o posto de CEO ou diretor de futebol. Independente da formalidade do cargo, será o responsável pela operação do futebol. Foi o que fez o Chelsea em 2003 ao contratar Peter Kenyon, então diretor do Manchester United, clube que dominava o cenário local à época, o PSG com o brasileiro Leonardo, antigo jogador do clube e executivo durante os anos vitoriosos do Milan, e o City que, algum tempo após a aquisição por parte dos árabes, colocou o ex-Barcelona Ferran Soriano no comando. Podemos supor que, assim como Manchester United, Milan e Barcelona foram inspiração para os novos endinheirados, o Newcastle poderá ver no Liverpool, talvez o maior expoente recente, o exemplo a ser seguido. Michael Edwards, diretor técnico dos Reds seria uma contratação para fazer muito barulho e outro bom nome seria o de Jon Rudkin, de ótimo trabalho no Leicester.

Para treinador, não parece que Steve Bruce, atual comandante e de trabalho até elogiável, seja mantido. Algo semelhante aconteceu com Claudio Ranieri no Chelsea, pois apesar de bom trabalho e ótimo relacionamento com a torcida, nunca foi o preferido do novo dono. José Mourinho, na época em franca ascensão assumiu seu posto. Dois nomes pesados estão disponíveis no mercado e inclusive já especulados pelo Newcastle, Mauricio Pochettino e Massimiliano Allegri. Caso a intenção seja manter uma identidade local, Eddie Howe, de boa passagem no Bournemouth, era o sonho dos torcedores antes dessa temporada.

A montagem do elenco começa com uma avaliação dos atuais jogadores com nível para permanecerem. Foi assim que John Terry e Lampard, que já estavam no Chelsea antes de Abramovich, conseguiram atingir níveis muito altos. No caso do Newcastle, Dubravka, Lascelles, Longstaff, Shelvey e os recém-contratados e que ainda não engrenaram muito Almirón, Saint-Maximin e Joelinton podem ser bem úteis. Mas é inevitável que estrelas cheguem, também por conta do apelo que isso gera.

Assim como Robinho no City em 2008, Coutinho, já muito especulado pela imprensa, se encaixa no estereótipo do “talento brasileiro”. Também em baixa, Griezmann poderia ser a grande estrela, assim como Ibrahimovic foi para o PSG. Destaques locais como Grealish e McNeil podem ser o que Joe Cole foi ao escolher o Chelsea e assim por diante. Com um cheque em branco para atrair agentes e jogadores, e bons advogados para encontrarem brechas no Fair Play financeiro, a montagem do time é o que menos preocupa em todo este processo.

É claro que todos esses passos não levam em conta a pandemia na qual estamos vivendo. Os impactos do COVID-19 em toda a operação do Newcastle, bem como em todo o futebol ainda são imensuráveis e colocam em dúvida tudo que pode vir pela frente. Com os clubes em situação financeira delicada, o dinheiro saudita pode vir em boa hora na negociação de jogadores, ao mesmo tempo que os efeitos da crise podem gerar contextos de maior controle que dificultariam a venda dos atuais atletas do clube, que tendem a ficar sem espaço.

O que sabemos é que por conta dos muitos conflitos que envolvem a relação do torcedor com o futebol, mesmo a mais sangrenta das ditaduras é capaz de ser aceita desde que consiga aumentar a sala de troféus de um clube. Bobby Robson tentou, mas permanecemos sem saber. Afinal, o que é um clube?

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Marco Sirangelo

Marco Sirangelo é Mestre em Gestão Esportiva pela Universidade de Loughborough (Inglaterra) e Bacharel em Administração de Empresas pela FGV, foi Analista de Marketing do Palmeiras entre 2009 e 2010 e Gerente de Projetos da ISG, de 2011 a 2016. Atualmente é Head de Projetos na consultoria OutField.Twitter: @MarcoSirangelo

Como citar

SIRANGELO, Marco. O futebol e seus novos castelos de areia. Ludopédio, São Paulo, v. 131, n. 17, 2020.
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