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O futebol não é nada, senão o que fazemos com ele

A convite da Equipe Ludopédio, falei um pouco sobre futebol e psicologia na mesa “Como Olhar para as Ciências Humanas a partir do Futebol?”,[1] no 1º Seminário Online do Ludopédio . E é parte dessa conversa que trago aqui, nesse mês, na Deslocando: como o futebol nos ajuda (ou pode nos ajudar) a entender a produção de humanos e humanidades.[2]

Meu olhar para a psicologia é marcado por uma experiência muito particular de alguém que vive a profissão atravessada por várias outras áreas de saber e conhecimento tecidos através dos encontros com o futebol. Alguém que teve o privilégio de habitar campos de experiências inter e transdisciplinares em espaços acadêmicos, e que está em conversas constantes com colegas da educação física, das ciências sociais, do serviço social e da comunicação, permeadas por pensamentos parecidos e, também, dissonantes. E, claro, digo também de uma psicologia atravessada, para além das experiências de formação e pesquisa acadêmica, pelas minhas vivências como atleticana e entusiasta de estádios.

Sem me alongar demasiadamente em um relato sobre mim mesma, a construção desse olhar passa pelo interesse por estudos que buscam compreender as relações de poder e as produções de subjetividade, que, no encontro com o futebol, me propiciam estar atenta às realidades, saberes e verdades que são (re)produzidas nele/a partir dele, e, com isso, os modos de ser, estar, viver no planeta.

Vou me ater, nessa reflexão, à produção de subjetividade. Lembrando sempre que esta é matéria prima de qualquer tipo de produção, não estando descolada de um plano concreto e nem limitada aos indivíduos (GUATTARI e ROLNIK, 2005).[3] Nesse sentido, ela é produzida nas relações, em encontros, nos acontecimentos. Ainda que seus efeitos possam fazer parecer se tratar de uma construção individualizada e individualizante de um Eu, nessa perspectiva, esses “Eus” são efeitos de exercícios de poder, que os atravessam e os constituem, mas não têm um início ou um fim em si mesmos.

E o futebol com isso?

Bom, o futebol, como mencionei, proporciona conhecer essa subjetividade em produção. Para além de um microcosmo ou campo de representações, podemos observar no futebol suas dinâmicas de funcionamento e o que elas põem em prática, escancarando relações de poder que nos dão indícios para entender como produzimos o que somos (em termos de humanidade) e também vislumbrar como romper com a naturalização do que somos como algo inconteste e imutável.

Tomar o futebol para tais observações, sobretudo, nos atenta a essa produção coletiva na qual sempre estamos implicados ou envolvidos de algum modo. Nos permite entender (ao menos em parte) como essa humanidade produz sujeitos, dominações, sujeições e sujeitados. E para entender isso, precisamos nos perguntar como contribuímos com a produção daquilo que somos em nossas práticas cotidianas, intervindo ou pesquisando, se é que essa separação é possível. Ousaria dizer que essa pergunta é fundamental para o trabalho da/o psicóloga/o, seja na pesquisa, na clínica, na psicologia do esporte ou outra “subárea”. O futebol pode ajudar a psicologia nesse processo de entender-se também como ciência característica de seu tempo e história (na conexão com outras histórias).

Através do futebol é possível conceber essa psicologia – que há muito tempo se esforça em se descentralizar do indivíduo e entendê-lo também como “produto” não finalizado das relações que produz e reproduz –, nas suas várias áreas de atuação, extrapolando a relação entre a cognição e as emoções, e o controle dessas em campo. Concebê-la envolvendo as relações de ensino-aprendizagem, de trabalho, de gestão de condutas, que, paulatinamente, produz esse eu-atleta, competitivo e resiliente, e todos/as outros/as sujeitos/as que atuam na produção desse futebol, seja ele qual for. Nesse sentido, a psicologia (múltipla e diversa) no contato com o futebol, não produz, exclusivamente e necessariamente, uma psicologia do esporte, mas traz questões que também a perpassam como produção de saber.

Para fazer esse movimento de concepção, digamos assim, é preciso, para além de um lugar de onde clamam a nós psicólogas/os para pensar doenças/síndromes/transtornos/anormalidades/desvios/problemas e treinamento mental, pensar também o sintoma do que são esses nomes, bem como as práticas que os envolvem e os constituem. Pois os jovens que incendeiam casas, dão fim a própria vida diante de uma dispensa, estupram e matam mulheres com quem não conseguem se relacionar, é na cabeça deles que há algum desvio a ser corrigido ou estão apenas seguindo o próprio curso da normalidade nessa produção de “humanos direitos”? Aonde começa a ser traçada a “fatalidade” dos jovens que morrem nos ninhos?

O que está em jogo nesses futebóis que acontecem e onde estamos e a que servimos nesse jogo? (frisando, uma vez mais, seja lá qual for o futebol do qual estejamos falando). Uma pergunta que não pode ser respondida de forma una e universal, mas que é fundamental para se pensar e manter relações que produzam sujeitos críticos, autônomos e potentes, entre a generalidade de um sujeito humano universal e os atravessamentos que constituem sujeitos múltiplos e socialmente marcados por diferenças.

O “problema” que essa questão traz, para algumas formas de se pensar e produzir futebol, é que atletas cuja formação seja pautada em exercícios de autonomia e liberdade que não circunscritos somente à liberdade econômica (até mesmo essa, de um tipo de economia muito específica) dificilmente se sujeitariam a prática de um futebol profissional nos moldes do que temos hoje.

O futebol, assim, nos propicia entender, através de seus elementos e relações, como produzimos humanos e humanidades, como construímo-nos nas relações que estabelecemos, que nos estabelecem e que tentam nos estabilizar. Como nos tornamos o que somos, não somente como atletas, funções sociais e identidades, mas como produzimos racialização, generificação, sexualidade, classe, dentre outros efeitos e marcações sociais que, por vezes, são naturalizados e invisibilizados, como se fossem “peças” fora dessa máquina de produção.

Imagem: Pixabay

Se os sujeitos e os grupos são efeitos do que produzem e reproduzem nas relações que estabelecem, é preciso estarmos atentas/os a essas relações também no futebol, nas práticas esportivas e outras práticas corporais. De modo que as/os psicólogas/os não atuem apenas como adaptadores de condutas ou apaziguadores de tensões, mas que possamos habitar as tensões nas modalidades com as quais estamos envolvidos e atuar visando a promoção da saúde integral (e, me perdoem o trocadilho, não pasteurizada) dos sujeitos e grupos com os quais trabalhamos.

Os estudos sobre a produção de subjetividade no encontro com o futebol podem ser uma das bases para, coletivamente, buscarmos saídas, para nos transformarmos (os “todos humanos”) em outras coisas. Pode nos fornecer indícios do que está envolvido na produção desses sujeitos de hoje e dos de outros tempos.

E, com isso, não quero dizer que o futebol é a chave para se entender tudo sobre as humanidades. Mas indicar que quem só pensa em futebol (ou é conduzido a só pensar, como corriqueiramente acontece com os jovens jogadores em processo de profissionalização), pode, no final das contas, ver a vida sem sentido quando o futebol como atividade profissional acaba, mas também pode, dependendo do que valorizamos nesses encontros entre sujeitos e o mundo da bola, se interessar por muitas outras coisas.

 

Notas

[1] Na referida mesa do seminário, Leda Costa, Elcio Cornelsen, Plínio Labriola e eu falamos, cada um/a partindo de sua trajetória de vida e pesquisa, sobre desafios e possibilidades que os estudos sobre futebol têm colocado para diversas áreas das Ciências Humanas e Sociais, especialmente para a literatura, história, comunicação e psicologia. 

[2] Cabe ressaltar que a intenção deste texto não é reproduzir a fala do seminário, mas sim expor alguns pensamentos suscitados a partir dela.

[3] GUATTARI, Félix.; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. 8 ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2007.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Marina de Mattos Dantas

Psicóloga (CRP 04/28.914). Doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP (com estágio pós-doutoral em Estudos do Lazer na UFMG) e mestre em Psicologia Social pela UERJ. Professora na Universidade do Estado de Minas Gerais. Pesquisadora no Grupo da Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT/UFMG), no Grupo de Estudos Socioculturais em Educação Física e Esporte (GEPESEFE/UEMG), no Grupo de Estudos e Pesquisas em Psicologia Social do Esporte (GEPSE/UFMG) e no Grupo de Trabalho Esporte e Sociedade do Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais (CLACSO). Compõe a diretoria da Associação Brasileira de Psicologia do Esporte (ABRAPESP/2024-2025). É produtora no Programa Óbvio Ululante na Rádio UFMG Educativa e colunista no Ludopédio.

Como citar

DANTAS, Marina de Mattos. O futebol não é nada, senão o que fazemos com ele. Ludopédio, São Paulo, v. 137, n. 31, 2020.
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