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O homem das mil faces

Lúcio Humberto Saretta 1 de janeiro de 2021

Foi com um efusivo abraço que Pelé recebeu Maradona na sua casa, em maio de 1995. Sorrisos de admiração estampavam a face de cada um, as mãos negras e calejadas do Rei envolvendo a silhueta robusta do craque argentino. Ainda que fosse uma visita de negócios, a camaradagem entre os dois era legítima.

Quando Maradona dava seus primeiros passos com a camisa do Argentino Juniors, seu discurso humilde de menino afirmava que Pelé era o maior jogador de todos os tempos. Corria o ano de 1979, e um futuro promissor descortinava-se para Diego. Com sua perna esquerda a maravilhar os estádios do mundo, Maradona cresceu e arrombou as portas da fama, sobretudo após a conquista da Copa do México, em 1986, com a seleção do seu país.

O jogador, então, trocou de fantasia como um ator de teatro, passando a atacar verbalmente o ídolo brasileiro sempre que podia. Palavras ao vento, que acabaram acendendo a fogueira das vaidades na qual os dois craques destilam uma relação de amor e ódio. Sempre um empreendedor, Pelé tentou trazer Diego para jogar no Santos, no momento em que o astro platino estava acabando de cumprir a suspensão por dope utilizado durante a Copa dos EUA, em 1994. E esse foi o motivo da curiosa reunião na residência paulista do Rei. 

A transação acabou não prosperando, e Maradona foi pendurar as chuteiras no seu adorado Boca Juniors. Sem embargo, antes de firmar o contrato, deixou escapar uma declaração em que descartava sua ida para o clube azul e ouro se o técnico Marzolini estivesse no comando da equipe. Antigo lateral esquerdo do clube, Silvio Marzolini tinha o apelido de “polaco” devido ao cabelo louro e seu estilo rígido de trabalho. Volúvel como o rio que contorna os obstáculos para atingir seus objetivos, Maradona acabou mudando de ideia e abraçando a causa do chefe disciplinador. Mais do que isso, alguns meses depois chegou a condicionar sua permanência no Boca à de Marzolini, em mais uma demonstração de seu caráter camaleônico.

Diego Maradona. Foto: Diego Torres Silvestre/Wikipédia.

Como um rastilho de pólvora, as frases ditas pelo craque se espalham em alta velocidade, gerando polêmicas e fazendo a alegria dos jornais. Com os ouvidos bem abertos e blocos em punho, repórteres anotam freneticamente os disparates de Maradona, transformando cada entrevista em uma espécie de laboratório em que são analisadas as diversas facetas do popular jogador. Será possível decifrar os segredos dessa esfinge dos gramados? Atordoados pela cortina de fumaça ardilosamente preparada por Maradona, os jornalistas, como fantoches, buscam em vão descobrir a sua verdadeira identidade.

Em 1984, época em que sua dependência química estava em franca evolução, nosso mestre dos disfarces estrelou uma campanha convocando a juventude argentina a evitar o caminho das drogas. Mais tarde, em 1999, elegeu publicamente o novato Aimar como seu sucessor. No ano seguinte, reconheceu D’Alessandro como o jogador mais parecido com ele. Finalmente, em 2001, classificou como “odiosa” a prática de comparar garotos a ele. Sua opinião a respeito de figuras consagradas no circo do futebol é igualmente dúbia.

Sobre Carlos Bilardo, o técnico que o adotou como capitão da seleção campeã mundial no México, Maradona emitiu juízos tão opostos como a noite e o dia. Primeiro, dizendo que Bilardo era como um pai para ele e, mais tarde, afirmando que não cumprimentaria o antigo treinador se passasse por ele na rua.

Delírios de uma mente sequelada? Ou apenas uma mudança natural de humor, como a oscilação das marés e as fases da lua? Não podemos esquecer que esse tipo de “esconde-esconde” verbal é relativamente comum no mundo esportivo. Shaquille O’Neal, o gigante de ébano das quadras de basquete, fez assertivas, no início dos anos 2000, descartando a possibilidade de um dia trabalhar com o técnico Pat Riley. O motivo? Em sua biografia O’Neal revela a mágoa por ter sido preterido em um “All Star Game”, além do ritmo massacrante dos treinos impostos por Riley. Entretanto, na temporada de 2006, o Miami Heat comandado por Riley que venceu o campeonato tinha em suas fileiras Dwyane Wade, Jason Williams, Antoine Walker, Udonis Haslem e…Shaquille O’Neal! Mais experiente, o pivô cinicamente esqueceu da recusa enfática de outrora.

Folheando os pergaminhos bíblicos, temos a passagem na qual o apóstolo Pedro, acossado pelos guardas, nega Jesus. O galo cantou três vezes, lembrando Pedro da sua traição. Talvez as contradições de Maradona sejam, na verdade, uma espécie de autodefesa ocasionada pelo medo. Mesmo assim, o craque apresenta em sua verve uma sutil coerência e um estranho senso de justiça, revelando, no final das contas, uma alma livre a ressonar misteriosa e inquietante pelos alto-falantes da vida. 

* Crônica publicada originalmente no livro “Lições da barbearia” (2013).


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Lúcio Humberto Saretta

Autor dos livros "Alicate contra diamante", "Crônicas douradas", "Lições da barbearia", "O louco no espelho" e "O cão e o violão".

Como citar

SARETTA, Lúcio Humberto. O homem das mil faces. Ludopédio, São Paulo, v. 139, n. 1, 2021.
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