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O jogo brasileiro: falar dos primórdios do futebol no país é falar de racismo, imprensa e Mário Filho

André Uzêda 28 de abril de 2020

Certamente não devo ser o primeiro a recomendar, mas diante da qualidade da obra minha sugestão reforça o carimbo.  A série The English Game (2020) é uma ótima distração para vencer o enfado dos dias de clausura.

Disponível em seis episódios no canal de streaming Netflix, o enredo contextualiza o futebol nas últimas décadas do século XIX, quando já despontava como esporte popular na Inglaterra e enfrentava um dilema crucial entre amadorismo versus profissionalização.

Na obra, baseada em fatos reais, vemos um embate de classes entre aristocráticos e proletariado. O que cada estamento social defende interfere diretamente no estilo de jogo, no tipo físico dos jogadores e nas relações sociais que permeiam a estrutura do esporte. A disputa entre Old Etonians e Blackburn/Darwen é uma alegoria para uma sociedade em transformação, após a segunda revolução industrial num mundo movido por francas instabilidades.

Cena da série The English Game. Foto: reprodução.

Longe de contar parte da trama (os famigerados spoilers), quero usar a série para pontuar a realidade do Brasil, onde este mesmo embate se deu décadas à frente. De 1910 a 1930, nosso país também esteve nesta disputa classista de modelos de jogo. Aqui, no entanto, há uma característica dramaticamente nacional: a presença do negro no futebol e o racismo como impeditivo consciente.

Se na Inglaterra a disputa entre amadores e profissionais transmuta o respectivo embate entre burgueses da Liga do algodão e os operários, no Brasil, a herança da escravidão pende esta dicotomia para o campo do nefasto: clubes sociais proibiam explicitamente a presença de negros em seus estatutos. Vale a lembrança do primeiro verso da música Noites do Norte (2000), de Caetano Veloso: “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”.

Esta frase, na verdade, foi retirada do emblemático livro Minha Formação, do abolicionista pernambucano Joaquim Nabuco (1849-1910). Vem também de Pernambuco o mais luminoso jornalista do período de disputa e ascensão do profissionalismo no futebol do Brasil: Mário Filho (1908-1966). 

Além da defesa do futebol moderno, Mário Filho escreveu a obra clássica “O Negro no Futebol Brasileiro” (publicada originalmente em 1947).

Aqui, a partir deste parágrafo, trago trechos da minha dissertação de mestrado Bourdieu calça chuteiras: o humor como capital simbólico do jornalismo esportivo, defendido em 2018 na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (Ufba). Ela aborda, em um dos capítulos, este período histórico do futebol no país e a importância da imprensa e de Mário Filho na luta pelo discurso da profissionalização.

Os negros não eram bem-vindos nos clubes sociais. Para jogar nestas agremiações era preciso, muito mais do que habilidade, ser de boa família (FILHO, 2010, p. 36). Para além da falta de receptividade havia um discurso da proibição que se amparava, em geral, nas teorias higienistas em voga no início do século XX.

No futebol, o discurso médico, publicado nos jornais, alertava que a prática do esporte só traria benefícios para a mocidade mais preparada e que os mais pobres deveriam evitar a modalidade. Na Bahia, o médico Álvaro Reis defendeu uma tese, em 1904, condenando a prática do futebol entre negros (PEREIRA, 2000, p.60).

As primeiras ligas organizadas primam pela manutenção do amadorismo e, por sua vez, os clubes inscritos criam barreiras para aceitar o ingresso de novos sócios. Um dos instrumentos é a cobrança de uma taxa, chamada de joia. Alguns, a exemplo do Botafogo, do Rio de Janeiro, expõem claramente em seu estatuto o requisito do atleta não ter sido profissional de qualquer serviço braçal (PEREIRA, 2000). Na Bahia, por este caráter excludente, a Liga Bahiana de Sports Terrestres vai ser chamada de Liga dos Brancos (LEANDRO 2015).

O Yankee Football Club, em Salvador, veda textualmente em seu estatuto a participação de membros que “exerçam profissões humilhantes que lhes permitam o recebimento de gorjetas” (SANTOS, 2014, p. 65).

Nos anos 1920 e com mais pujança a partir da década seguinte, principalmente com Mário Filho na direção de importantes jornais cariocas, o jogo se transforma em espetáculo, criando seu mercado de produção simbólica. Será a partir deste momento que a imprensa esportiva vai abrir espaço para elementos, tais quais a dramatização, linguagem oral, humor e narrativa de tragédia e heroísmo.

Ao contrário da imprensa esportiva tradicional, limitada a estar presente nos jogos e receber informações oficiais dos clubes e ligas, quando dirigiu as páginas de O Globo, Mário Filho enviava seus repórteres aos treinos dos times, aos vestiários dos jogos, à casa dos atletas e aos bares que frequentavam. A tentativa era obter algum furo, marca até então pouco presente no jornalismo esportivo da época.

Outro carimbo do jornalista, em contraste com antigos modelos de produção da notícia, era a busca pelo conflito. Nas antigas crônicas, os jornalistas buscavam atenuar o conflito, sobrepondo os interesses e paixões clubísticas com valores sociais (o fair play, ou jogo de cavalheiros) que deveriam ser compartilhados pelos adversários. Nas páginas de Mario Filho, o esforço se destinava em estimular a disputa, explorando o caráter conflituoso do esporte e a subjetividade dos personagens envolvidos (SILVA, 2006, p. 114).

Entre as subjetividades, o jornal de Mário Filho vai estimular o drama dos atletas em uma narrativa épica, contando detalhes de suas vidas e dando voz para que se expressem ativamente por meio de entrevistas e relatos redigidos por repórteres.

Mário Filho escreveu a obra clássica “O Negro no Futebol Brasileiro”.

O drama e o humor caminhavam juntos nas páginas de Mário Filho. Assim como o sofrimento e a tragédia, interessava-lhe os casos pitorescos, as manifestações irreverentes, as ações jocosas e, principalmente, os deboches entre vencedores e derrotados.

Pelo viés do humor, a competição esportiva podia, finalmente, ser transportada para as páginas dos jornais como um terreno horizontal, em que o fraco poderia vencer o forte, o pobre podia derrotar o rico e o negro triunfar sobre o branco (SILVA, 2006, p.138). Um dos marcos entendidos neste processo é a conquista do Vasco da Gama, do Campeonato Carioca de 1923, com um time formado por negros e estivadores, que recebem bichos pagos pela direção para defender um clube de colônia portuguesa.

 Ao trazer a dimensão do drama e do humor para as páginas esportivas, além de inaugurar um modo de jornalismo esportivo que ficaria consagrado posteriormente, Mário Filho – irmão do dramaturgo Nelson Rodrigues – caminhou diretamente com a organização da obra dramática e da interpretação teatral.

Mendes (2008) analisa a tragédia e a comédia como formas fixas e distintas que dialogam em dois imensos territórios fronteiriços na dramaturgia. O lírico, o épico e o dramático cruzam-se como o romance satírico, o poema-piada e a comédia lírica em busca do efeito catártico.

Martín-Barbero (1997) discute o processo de formação da cultura de massa na América Latina, a partir do desenvolvimento capitalista, mas alijadas das formas.

Desta forma, os meios massivos servem como forma de pedagogia e controle social e buscam se conectar a experiência dos mais pobres em elementos como o melodrama (com origem no circo e no teatro popular), os heróis e suas jornadas arquetípicas, o jornalismo sensacionalista, o humor, o pastiche e a catarse.

Silva (2006), no entanto, não enxerga a ação intelectual de Mário Filho pelo viés da apropriação capitalista de elementos populares. Para ele, o jornalista produz um rompimento deliberado das barreiras simbólicas do discurso das elites econômicas sobre o esporte, que trouxe à tona um mundo subterrâneo que a imprensa ocultava e reprimia.

O mundo das paixões clubísticas e regionais que inflamavam as multidões, dos craques suburbanos, com suas histórias de vida e seus desejos de prosperidade material e reconhecimento social, transpostos às páginas dos jornais pelas interrogações lançadas ao público, pelas entrevistas com os jogadores e pelos textos humorísticos em que tudo era permitido, articulando e legitimando os valores e os sentidos que os menos favorecidos projetavam no futebol brasileiro em seus anos iniciais. (SILVA, 2006, p.145).

Se um dia houver uma série sobre o futebol brasileiro na disputa do amadorismo versus profissionalização, Mário Filho e o racismo latente não poderão ser esquecidos na abordagem.  


Bibliografia

SANTOS, Henrique Sena dos. Pugnas renhidas: futebol, cultura e sociedade em Salvador (1901-1924). Salvador. Edufba. 2014.

SILVA, Marcelino Rodrigues. Mil e uma noites de futebol: o Brasil moderno de Mario Filho. Belo Horizonte. Editora UFMG, 2006  

MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro. Editora UFRJ, 1997

LEANDRO, Paulo Roberto. Nêgo! Bahia! A invenção da Torcida Baiana. Edufba. Salvador, 2015

PEREIRA, Fábio Henrique; ADGHIRNI, Zélia Leal. O Jornalismo em tempo de mudanças estruturais. 2011.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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André Uzêda

Jornalista e mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas

Como citar

UZêDA, André. O jogo brasileiro: falar dos primórdios do futebol no país é falar de racismo, imprensa e Mário Filho. Ludopédio, São Paulo, v. 130, n. 41, 2020.
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