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O negro no futebol brasileiro e o racismo existente

Marcel Diego Tonini 28 de agosto de 2009

Neste pequeno texto, a intenção é mostrar sucintamente o caminho percorrido pelo negro no futebol brasileiro e o racismo que fez e que faz parte ainda hoje desse esporte. Ao término, apontaremos duas saídas para se estudar esse fenômeno, de modo a atualizar o debate.

O negro nas várias fases do futebol brasileiro

Embora saibamos dos limites e dos riscos da simplificação em periodizar o futebol brasileiro, fazemos isso com o intuito de contarmos, em pouco espaço, uma história sobre a presença do negro no “esporte-rei”.

Num primeiro momento, quando da implantação de tal modalidade esportiva no Brasil, o mesmo era caracterizado pela elitização e discriminação evidente a negros e a brancos pobres. Desde que aportou em terras tupiniquins até 1923, o futebol deveria ser praticado apenas pelos elementos “sãos”, “puros”, cordiais, ricos e de origem letrada, o que pode ser visto pelo uso dos termos em inglês (hands, penalty, off-side, referee…), dos materiais importados e das boas maneiras na relação entre os sportmen.

O público também deveria acompanhar a elegância, sofisticação e modernidade do sport. Assistir a jogos no estádio do Fluminense, por exemplo, era um evento social. Os negros e brancos pobres estavam nitidamente alijados da prática oficial do esporte e mesmo da torcida.

Para tanto, as ligas criaram mecanismos (como a cobrança de altas taxas de filiação) de modo a fazer do futebol um espaço de diferenciação e uma marca da “superioridade” da elite branca e abastada.

No entanto, essa classe social não conseguiu garantir o monopólio do novo esporte. Ainda na primeira década do século XX, o futebol, até pela pouca exigência para a sua prática, alcançou adeptos nas classes mais baixas e menos favorecidas. As fábricas e companhias inglesas, principalmente, foram as principais responsáveis por essa difusão e popularização do esporte.

Quando da conquista vascaína do título carioca com um time recheado de negros, brancos pobres e analfabetos, as ligas e os grandes clubes tiveram de repensar a proibição dessas pessoas no futebol “oficial”, a remuneração dada a esses jogadores e a imagem do atleta de futebol. Essa era a fase do “amadorismo-marrom” e do início da inserção dos negros, mestiços e pobres nesses clubes, ainda que de maneira lenta e cercada de preconceitos.

Com a profissionalização do futebol em 1933, o caminho, em tese, estava aberto a qualquer um. Os negros e mestiços viram no futebol uma possibilidade de ascensão social e econômica. Esse esporte democratizou-se, mas muitas foram as provações pelas quais tiveram de passar. Basta dizer que negros e mestiços inventaram inúmeros dribles, visando o menor contato corporal possível com os outros jogadores. Uma falta normal era visto como desrespeito e muitas vezes eles apanhavam por isso. Vejamos a fala de Fausto dos Santos:

“Pensei em me adiantar, avançar com a bola e ajudar o Prego… Quem sabe a gente até empatava… Aí me lembrei que era o único preto do time… E se sofrêssemos um gol lá atrás, sem eu ter voltado… Bater já não batiam mais, mas a culpa vinha toda para cima de mim”. (A Noite, 28/07/1930, p. 34 apud MURAD, 1999, p. 14).

Sobretudo nas décadas de 1930, 40 e 50, os negros lutaram, resistiram, afirmaram e reafirmaram seguidas vezes o seu valor e a sua habilidade no futebol, tanto que compuseram os quadros dos grandes clubes e da seleção brasileira. Foi exatamente através da sua maneira de jogar que se diferenciou o estilo próprio do brasileiro no futebol, o qual privilegia o drible, o improviso e a criatividade e que ficou sendo denominado de “futebol-arte”.

Se quando ganhava, as tradições culturais negras eram exaltadas; quando perdia, a sua “inferioridade racial” voltava à tona e transparecia. Exemplo disso é a derrota da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1950, competição em que perdemos o título em pleno Maracanã lotado por aproximadamente 200 mil pessoas. Em conseqüência disso, houve o recrudescimento do racismo e o questionamento da “raça brasileira” e do futuro do nosso país.

Era necessária a identificação dos culpados pela frustração do povo. Afinal, “o futebol expressava nitidamente o sentimento de identidade nacional forjada sob a batuta autoritária” (FRANCO JÚNIOR, 2007, p. 85). De acordo com Rodrigues Filho (2003, p. 290), foram escolhidos como bodes expiatórios o “frangueiro” Barbosa, o “covarde” Bigode e o “cachaceiro” Juvenal, enquanto outros negros e mulatos (Zizinho, Bauer e Jair) e os brancos do time não foram acusados de nada.

Curiosamente, culparam três negros pela “tragédia” de 16 de julho. Provavelmente, se o Danilo e o Ademir fossem negros, teriam sido acusados, respectivamente, por não fazer a marcação correta em Julio Pérez e por não anotar gols costumeiros. Após a Copa de 1950, criou-se um estigma em relação ao goleiro negro, tal como revela Helton (ainda quando jogava pelo Vasco):

“Sei que havia uma lenda de que goleiro negro era ruim, mas sempre procurei ignorar isso. Mas realmente penso em fazer com que as pessoas esqueçam esse tipo de preconceito. Todos somos irmãos”. (Lancenet, 14/01/2000 apud SILVA; VOTRE, 2000).

Somente após as três primeiras conquistas brasileiras em Copas do Mundo (1958, 62 e 70) é que tivemos a “revanche do preto” (GORDON JÚNIOR, 1996, p. 67).

O racismo no futebol atual

Silva e Votre (2000) contribuem bastante para a questão atual do racismo no futebol brasileiro, pois tenho a impressão de que os estudos sobre a temática (ao menos os que eu li e que arrolo na bibliografia citada) focalizam um tempo mais antigo do nosso futebol (até 1970) e acabam não contemplando períodos mais recentes. Ambos os autores tratam do processo de reprodução e transformação do racismo neste esporte, baseando-se nas repercussões presentes em parte da mídia brasileira nos sucessivos fracassos do nosso escrete nacional nas Copas do Mundo de 1950, 1982, 1986, 1990 e 1998.

Com a intenção de destacar notícias, a mídia utiliza-se de metáforas e metonímias como expressão do próprio imaginário social, avaliando e julgando os jogadores nos momentos decisivos de tais eventos espetaculares.

De acordo com os dados analisados por esses pesquisadores, há uma sensível diferença quando se atribui uma falha a um jogador branco e quando ela é feita a um negro. No primeiro caso, critica-se geralmente o desempenho profissional do atleta; já no segundo, ataca-se a pessoa e o seu caráter. Como exemplos, apontamos respectivamente:

“Já era Dunga. Não deu certo a tentativa de esquematizar o futebol brasileiro, abrindo mão do talento natural e do improviso, em benefício de um padrão mais rígido, de marcação, ao estilo europeu, acabou na desclassificação (…) A Era Dunga não chegou (…) O proveito da derrota passa pela necessidade do reexame desses conceitos de futebol-força”. (O Dia, 25/06/1990, p. 3 apud SILVA; VOTRE, 2000).

“Ronaldinho amarela antes do jogo e abala a seleção”. (O DIA, 13/07/98, p. 1 apud SILVA; VOTRE, 2000).

 

Considero muito interessante essas sutilezas da linguagem evidenciadas pelos exemplos de Silva e Votre. Revela-se o racismo brasileiro, que, a meu ver, é latente e que, em determinadas situações (sobretudo em jogos de Copa do Mundo), se mostra impetuoso e aparente. Percebe-se o descompasso entre a ideologia da democracia racial no Brasil e a discriminação efetiva contra negros e mestiços.

Nesse sentido, um ponto que pode ser bem mais explorado é a existência de expressões de cunho racista que recorrentemente afloram nos estádios e nos bares, sobretudo quando negros participam de lances capitais. Como exemplos, citamos apenas: “coisa de crioulo”, “preto quando não suja na entrada, suja na saída”, “negrinho”, “negrão”, “dinheiro branqueia”, “negro de alma branca”, “negro de vergonha na cara”, “negro limpo”, “fulano é negro, mas é um negro trabalhador”, a palavra “negro” acompanhada de muitos xingamentos (“filho da puta”, “lazarento”, “maldito”…).

Temas como “embranquecimento” (é comum ver jogadores negros que, ao ascenderem social e economicamente, se relacionam com brancas loiras, migram para bairros da elite branca e compram carro importado), radicalismo dos torcedores (nos últimos anos, tornou-se freqüente as torcidas imitarem macacos, jogarem banana e xingarem com veemência jogadores negros) e racismo institucional (são pouquíssimos os negros que ocupam cargos de treinadores, árbitros e dirigentes no futebol em geral) carecem de pesquisas mais profundas e podem contribuir bastante para o entendimento da presença do negro no futebol, brasileiro e do exterior.

Procedimentos metodológicos possíveis

Sabendo que o racismo no Brasil é envergonhado, inconsciente e implícito, fica difícil de pesquisá-lo por meio das fontes tradicionais (documentos escritos). Se recorrermos ao conjunto de procedimentos da história oral, certamente poderemos não só denunciar os inúmeros casos de racismo que ocorrem nos gramados, nos vestiários e que partem das arquibancadas, como também dar voz e visibilidade à comunidade negra do futebol.

É possível fazer uma análise não só das narrativas dessas pessoas em si, mas também em conjunto, almejando estabelecer pontos em comum que nos levem para uma memória coletiva e para as suas identidades.

Por outro lado, também poderemos lançar mão da abordagem iniciada por DaMatta e seguida por vários autores de entender o futebol em sua totalidade, como um fenômeno cultural revelador da nossa sociedade. Os métodos epistemológicos das várias disciplinas (antropologia, história, sociologia, psicologia, lingüística) só têm a contribuir, quando trabalhados em conjunto, para o entendimento do futebol como um fato social total, numa alusão a Durkheim. Aliás, essa é a marca do Gief (Grupo Interdisciplinar de Estudos sobre Futebol), por ter membros das várias áreas e que, dessa maneira, motivam leituras diversas e enriquecem as discussões nas reuniões.

 
Bibliografia
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
SILVA, Carlos Alberto Figueiredo da; VOTRE, Sebastião Josué. Futebol, linguagem e mídia: as metáforas da discriminação no futebol brasileiro. In: Anais do 8º Congresso de Educação Física e Ciências do Desporto dos Países de Língua Portuguesa. Lisboa : Gráfica 2000, 2000.
 
 
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Marcel Diego Tonini

É doutor (2016) e mestre (2010) em História Social pela Universidade de São Paulo, sendo também bacharel (2006) e licenciado (2005) em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP - Campus de Araraquara). Integra o Núcleo de Estudos em História Oral (NEHO-USP) e o Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas (LUDENS-USP). Tem experiência nas áreas de Ciências Sociais e História, com ênfase em Sociologia do Esporte, Relações Étnico-raciais, História Oral e História Sociocultural do Futebol, trabalhando principalmente com os seguintes temas: futebol, racismo, xenofobia, migração, memória e identidade.

Como citar

TONINI, Marcel Diego. O negro no futebol brasileiro e o racismo existente. Ludopédio, São Paulo, v. 02, n. 14, 2009.
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