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O outro lado do paraíso: a hegemonia do futebol e os esportes especializados

O esporte mobiliza a nossa sociedade de diferentes modos, ele vai muito além do jogo em si. Em um campeonato, por exemplo, de atletismo, na fase regional (em uma disputa estadual), além dos atletas, teremos também dentro da pista e do campo, os árbitros e toda a equipe envolvida na execução do torneio ou campeonato. E, esse volume de pessoas aumenta ainda mais à medida em que as fases vão seguindo (nacional e internacional). Além dos atletas, técnicos e da equipe envolvida na execução do evento, teremos também uma parcela de torcedores e em alguns momentos, vendedores ambulantes, bilheteiros, segurança, entre outros. Ou seja, uma competição esportiva, por mais simples que pareça, coloca muitas pessoas em ação, dentro e fora dos campos, pistas, quadras, tatames, ringues, enfim, mobiliza uma parcela da sociedade.

E, nesses tempos de pós-modernidade, em que a tecnologia favorece a difusão de informação com significativa facilidade, o esporte vem alcançando ainda mais destaque, em especial enquanto produto de consumo. Nessa esteira, percebemos que aqui no Brasil o futebol vem se destacando e demonstrando uma capacidade significativa de mobilizar um grande contingente de pessoas. Em dias de clássico regional, em jogos de Campeonatos Brasileiro ou em dias de jogos da Libertadores, percebemos como milhares de pessoas são impactadas, mesmo as que não gostam do futebol podem sentir a sua presença: quando os foguetes são disparados por torcedores tarde da noite; quando berros de comemoração rompem o silêncio; ou quando a pessoa mora próximo a um estádio e tem dificuldade para chegar ou sair de casa, devido à movimentação do trânsito no entorno. É, o futebol tem o seu poder!

Para nós duas que somos apaixonadas por futebol e para milhões de brasileiro(a)s que também o são, essa possibilidade que o futebol tem de mobilizar as pessoas, seus sentimentos, recursos e tempo, costuma passar como algo comum e naturalizado. Mas, guardada a proporção da paixão, o que poderá nos colocar em condições melhores de reflexão, teremos capacidade diferenciada de analisar o contexto em que vivemos.

Foi o que nos ocorreu há cerca de três meses. Em uma conversa durante nossos afazeres, em que uma estava pesquisando documentos sobre o Mineirinho, no acervo pessoal de um personagem mercante na política pública de esporte e lazer em Minas Gerais, e a outra, seguindo o seu trabalho de organização desse arquivo pesquisado, iniciamos um debate sobre Esporte Especializado. Vale destacar que esse termo já era recorrente na pesquisa sobre o Mineirinho, em que alguns documentos que mencionavam o esporte especializado foram localizados, em outros arquivos e outras fontes[i].

Pois bem, em nossa conversa, percebemos o quanto o futebol se destaca no mundo esportivo. Na verdade, enquanto professoras de Educação Física, no trato com crianças, adolescentes e jovens, percebemos entre outras questões, o quão impactante o pós-jogo de futebol pode ser dentro de uma escola. Aí é só festa, provocações e, em alguns casos, apelações. Haja capacidade de mediar o ânimo de quem perde e ganha! E haja capacidade de convencimento de que em um dia nosso time perde e em outro ele pode ganhar.

Além desse aflorar dos ânimos, o futebol ocupa lugar marcante no currículo das escolas básicas, em especial o futebol de salão, sendo praticamente impossível não o abordar no decorrer de um semestre. Para um professor ou uma professora, levantar essa bandeira seria motivo para a terceira guerra mundial com os estudantes (e em especial com boa parte dos garotos e com algumas meninas que avolumam o movimento de resistência). O futebol tem seguidores e seguidoras!

O futebol de salão como uma das expressões do Esporte Especializado. Fonte: SMES (1987).

Dando prosseguimento em nossa conversa sobre esporte especializado e futebol, além de concluirmos que o futebol em Minas Gerais teve incentivos significativos por parte do poder público, entre os anos 60 e 70 (data de muitos dos documentos que acessamos, em que identificamos iniciativas como a construção e a manutenção do Mineirão), nós duas apresentamos nossos olhares sobre o que viria a ser esse tal “Esporte Especializado”. Para uma, era uma relativa novidade e não se lembrava de conhecer uma definição em estudos no campo da Educação Física; para a outra, que já estava buscando aprofundar informações sobre esse termo, ainda que não fosse novidade, era um termo relativamente impreciso, uma vez que também não havia encontrado na literatura acadêmica uma definição para o termo. Mas era uma expressão com a qual já havia se deparado, inclusive em outra pesquisa sobre a trajetória da política pública de Minas Gerais[ii].

Seguimos nossa prosa em outros dias, e acessando alguns documentos, chegamos ao consenso de que, no contexto de Minas Gerais, esporte especializado seria outros esportes, com exceção do futebol – e este, por sinal, já tinha um grande lugar de destaque nas colunas esportivas e no incentivo do governo de Minas, evidências de sua hegemonia em relação aos demais. O termo era utilizado, em especial por alguns cronistas esportivos, estava presente em alguns documentos da gestão pública estadual e também na fala de sujeitos que participaram do processo de construção do Mineirinho, sendo este, por sinal, construído para atender estas modalidades.

Em uma revista da Secretaria Municipal de Esportes de Belo Horizonte (SMES/PBH), identificamos que são considerados esportes especializados o ciclismo, o basquete, o vôlei, o futebol de salão, o handebol, a ginástica olímpica, a bocha, a pesca fluvial e a natação (SMES, 1987)[iii].

E, ao analisarmos essa e outras revistas produzidas pela SMES, nos pareceu que no decorrer da década de 1980 a Prefeitura de Belo Horizonte incentivava o futebol de campo, por meio do futebol de várzea. E também direcionou seus esforços para a promoção de outras modalidades esportivas, os esportes especializados.

Por hora, nossa prosa termina com a percepção de que aqui no Brasil, ainda que o futebol ocupasse a hegemonia no contexto esportivo – e atualmente continue ocupando lugar de destaque em relação às variadas modalidades -, os ditos esportes especializados estão alcançando mais popularidade, mais praticantes e, em alguns casos, mais torcedores. Estes esportes chegariam, assim, ao outro lado do paraíso?

O ciclismo como esporte de competição. Fonte: SMES (1987).

[i] Por meio do levantamento dessas fontes, o termo Esporte Especializado é analisado por Luciana Cirino e Elcio Loureiro, em artigo que encontra-se em fase final para publicação.

[ii] RODRIGUES, Marilita Aparecida Arantes; COSTA, Luciana Cirino Lages Rodrigues. Diretoria de Esportes de Minas Gerais: suas políticas, sua história (1946-1987). In: RODRIGUES, Marilita Aparecida Arantes; ISAYAMA, Hélder Ferreira (Org.). Um olhar sobre a trajetória das políticas públicas de esporte em Minas Gerais: 1927 a 2006. Contagem: MJR, 2014, p. 47-117.

[iii] SMES – Secretaria de Municipal de Esportes de Belo Horizonte. Belo Horizonte, 1987. Tivemos acesso à revista no arquivo pessoal do Sr. Afonso Celso Raso, que foi gestor da ADEMG entre os anos de 1975 e 1981.

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Luciana Cirino

Integrante do Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes (FULIA), da UFMG.

Jennyfer Thaís Alves Ferreira

Professora de educação física da escola estadual Santos Dumont, formada pela Universidade Federal de Minas Gerais e membra do Grupo de Pesquisa em História do Lazer, pertencente ao Programa de Pós-Graduação interdisciplinar em Estudos do Lazer da UFMG.

Como citar

COSTA, Luciana Cirino Lages Rodrigues; FERREIRA, Jennyfer Thaís Alves. O outro lado do paraíso: a hegemonia do futebol e os esportes especializados. Ludopédio, São Paulo, v. 117, n. 23, 2019.
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