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O pior campeonato brasileiro de todos os tempos

Em vinte e cinco de fevereiro de 2021 terminou o mais lamentável campeonato brasileiro de futebol masculino, a edição de 2020. Edição sem torcida e que nunca deveria ter acontecido. E olhem que escrevo isso ainda embebido da alegria de ver meu rival deixar o campeonato escapar por entre os dedos. Não me parece que se trate de uma simples coincidência o final do certame ter acontecido justamente neste vinte e cinco de fevereiro, dia em que o Brasil bateu o recorde diário de vítimas fatais pela Covid-19: 1582.

A etapa do campeonato de 2020 disputada em 2021 foi bastante emocionante. Parecia que ninguém queria ganhar o campeonato, motivo da excitação de sua reta final. Os candidatos do final de 2020, São Paulo, Atlético MG e Grêmio falharam neste início de ano abrindo espaço para um surpreendente Internacional, com nove intermináveis vitórias consecutivas, e o Flamengo, que mesmo jogando um futebol, no máximo, razoável, mostrou ainda ser muito melhor do que os concorrentes. Ao contrário do Corinthians, o Flamengo parece ter entendido bem como transformar o Brasileirão em campeonato europeu desde a implosão do Clube dos Treze. Apesar dessa superioridade, o campeão foi o quarto pior nessa décima quinta edição do campeonato por pontos corridos com vinte equipes. Esse equilíbrio se justifica muito mais pelo baixo nível técnico de um campeonato sem tempo para treinamento e recuperação do que qualquer outro motivo.

Esse equilíbrio, por baixo, acabou aumentando as emoções das disputas finais. Essas emoções provocaram uma série de aglomerações nos estados em que os clubes deixaram de ou passaram a disputar o título desse lamentável campeonato. As nada recomendadas aglomerações familiares de final de ano, do verão de nosso extenso litoral, ou do carnaval se somaram a recepção de ônibus perto dos estádios ou dos aeroportos para incentivar ou agredir os atletas das equipes. Todos que estudamos alguma prática do torcer sabemos que, no discurso normativo, torcedores que se arriscam são valorados positivamente. Corremos um sério risco de que daqui alguns anos quando conseguirmos administrar o enfrentamento à pandemia (vejam que a hipótese de vencê-la não me parece minimamente possível) os torcedores que contrariaram as recomendações científicas de manter o isolamento social e colocaram o vírus para circular acelerando o colapso em nosso sistema de saúde digam que são mais torcedores porque arriscaram sua vida (e, mesmo que não reconheçam, a vida dos outros) para apoiar suas equipes…

Apesar desse “esforço” (a palavra estupidez era a minha preferida, mas é necessário manter certa polidez ao escrevermos) dos torcedores, o brasileirinho 2020 mostrou de forma definitiva que o futebol não precisa da torcida no estádio para acontecer nos atuais moldes de seu negócio. Nós, torcedores e torcedoras de estádio, fomos obrigados a conviver com um programa de televisão, emocionante é verdade, em que os jogadores são atores terceirizados das emissoras e nós fomos rapidamente substituídos por bonecos de papelão, faixas ou um DJ. Se eu fosse otimista eu diria que os clubes viram ser possível realizar um campeonato inteiro sem a cobrança de ingressos exorbitantes abrindo espaço para o retorno dos preços populares para nossas arquibancadas e cadeiras. Como não sou mais jovem, porém, me parece que o caminho para a expulsão dos torcedores e das torcedoras de menor poder aquisitivo das praças esportivas foi catalisada e finalizada (torcendo muito para estar errado).

Neste campeonato de equipes irregulares, de baixa capacidade técnica e sem tempo de treinamento podemos apontar que a ausência dos torcedores nos estádios teve um protagonista a lhe substituir nas narrativas. O glorioso árbitro de vídeo, nosso íntimo VAR, teve destaque por suas decisões demoradas e “polêmicas” com critérios pouco explícitos para a maioria dos espectadores e, mesmo, para os profissionais. O treinador do meu time passou o campeonato inteiro pedindo para que o árbitro chamasse o vídeo sendo que o protocolo é o inverso. A figura do VAR ladrão e seus esquemas com o Flamengo, a CBF e a Rede Globo (casamento que, se um dia já existiu, hoje não existe) teve protagonismo nas redes sociais. Me parece curioso que essa capacidade de indignação contra a corrupção de entes privados (clubes, CBF e empresas de telecomunicações) e suas conspirações não sejam entendidas como possíveis nos outros âmbitos de nossa sociedade. Em maio de 2020 nesta mesma coluna questionei se o torcedor poderia ser o pai da cidadania brasileira. Ali reclamava do clubismo que nos fazia aceitar, por exemplo, o VAR ladrão a nosso favor e a reclamar desse mesmo VAR ladrão contra nós. Gostaria que esse pai do nosso cidadão nos ensinasse ficarmos mais atentos às negociações do “mercado” e nos desse condições de nos indignarmos contra os juízes ladrões que importam um pouco mais.

Flamengo
Foto: Lucas Figueiredo/CBF/Fotos Públicas

Concluídos os resultados da quinta-feira…

Um breve corte na narrativa. O campeonato terminou na noite de quinta-feira, e não na tradicional quarta-feira de futebol, porque o Palmeiras precisou jogar mais ou menos quatrocentas partidas nesses dois primeiros meses do ano, o que o vice-presidente da CBF, Francisco Noveletto, responsabilizou ou culpou o próprio Palmeiras por ter ido muito bem em todas as competições indicando que o mais adequado seria ter sido eliminado precocemente em alguma delas…

Voltando ao final dos jogos, duas postagens de amigos nas turbulentas redes sociais me chamaram a atenção. Uma colorada e uma flamenguista. A colorada reclamava que a perda do título era lamentável porque tirava uma pequena alegria dos torcedores do Internacional. A flamenguista, por sua vez, dizia que era bom que o Flamengo tivesse ganho porque sendo o clube de maior torcida do Brasil acalentaria o maior número de pessoas possíveis nesse ano de tantas notícias ruins em nosso cotidiano. Aqui me permito fazer algumas interpretações a partir dessas manifestações. O que poderia/deveria provocar certo alívio (quase um ópio?) seria jogar e não ganhar. Me explico brevemente. Além do fato de que todos jogam, mas somente um ganha, a nossa construção torcedora passa pelo clubismo e esse passa pela construção da alteridade na figura de seu rival. O descontentamento dos torcedores do Internacional é a alegria dos torcedores do Grêmio, e vice-e-versa. Da mesma forma, sendo o clube de maior torcida do Brasil, o Flamengo também é aquele que desperta maior antipatia no país. Acredito que o título do Inter (que felizmente não veio) traria mais alegrias que o título do Flamengo. Me parece que somente nós, gremistas e flamenguistas, gostamos do resultado final. E somos um número muito menor frente aos demais torcedores somados.

Eu sei que o futebol é muito mais que um jogo, mas talvez não devesse ser. Depois do jogo vem outro jogo e neste ano nem teremos um mês de verão para separar as competições. Sigo entendendo que não deveríamos estar tendo futebol nesse momento. Me parece uma exposição excessiva dos jogadores trabalhadores e de suas famílias em uma atividade que me agrada muito, mas não é essencial.

E se o Internacional tivesse sido campeão

Apesar de um time, no máximo (e com boa vontade), mediano, meu rival Sport Club Internacional quase ganhou o brasileirinho 2020. Mesmo sem um grande desempenho, salvo a partida contra o São Paulo no Morumbi, o Internacional empilhou nove vitórias consecutivas e me deu pela primeira vez a real impressão de que seria campeão na era dos pontos corridos. Essa fórmula de disputa diminuiu a ocorrência de campeões acidentais. Desde sua invenção, em 2003, tivemos sete campeões, todos do Sudeste. Nos dezoito anos anteriores, com fórmulas que desafiavam a lógica, tivemos doze campeões de três regiões do Brasil. O campeonato ficou muito caro, tanto que dois campeões utilizaram mecenas para lhes dar os títulos e o único fora do eixo Rio-São Paulo parece que vai pagar seus títulos pelas próximas décadas.

Essa epopeia colorada que se avizinhou me obrigou a estar preparado para essa tragédia futebolística (o termo tragédia aqui só vale porque acompanhado do termo futebolística. Tragédia é algo muito maior e diferente, coisa que vivemos no Brasil cotidianamente)! Montei piadas etárias (quem perde sempre apela). Diria parabéns aos jovens colorados de quarenta anos por terem presenciado situação inédita. Debocharia daqueles que já tinham assistido a um título brasileiro daquele fantástico time da década de 1970 dando os parabéns e informando que era o último que eles tinham visto porque se esperassem mais quarenta anos… Debocharia do grande ídolo colorado D’Alessandro afirmando que sua ausência do Beira-Rio era sempre explosiva. Sem D’Alessandro em 2016, o Inter caiu e sem D’Alessandro em 2021 seria campeão. Eu tinha até uma piadinha favorita: diria que só foram campeões quando proibiram a torcida do Internacional de ir ao estádio e afirmaria que o retorno ao estádio com os colorados e coloradas pés-frios e pés-frias um novo título no campeonato brasileiro não voltaria a acontecer. Completaria todas essas infâmias com a #imortalsecador.

Mas obviamente porque é preciso ter grandeza em todos os momentos (ou quase todos) também faria uma homenagem séria. Um “post” estava quase pronto e a ele agregaria uma foto com meus amigos Cassio e Zé Paulo antes da partida amistosa de reinauguração do Beira-Rio para Copa do Mundo entre Internacional e Peñarol. É a grandeza do Internacional que alimenta a rivalidade e que me fez vibrar enlouquecidamente com sensações corpóreas quase nunca vividas por um homem adulto. Nas palavras do grande colorado Luís Fernando Veríssimo:

Você pode racionalizar a paixão, e fazer teses sobre a bola, e observações sociológicas sobre a massa ou poesia sobre o passe, mas é sempre fingimento. É só camuflagem. Dentro do mais teórico e distante analista e do mais engravatado cartola aproveitador existe um guri pulando na arquibancada (2010, p. 25).

Encerro o texto com o post que, felizmente, não precisei publicar:

Gustavo Bandeira
Foto: Arquivo pessoal

 

Eu torci muito para que isso não acontecesse. Está certo, eu desejei muito mais o rebaixamento do Internacional em 2016 do que a perda do título neste 2020/2021. Mas essa loucura da rivalidade não pode superar de forma tão intransigente a alegria dos nossos amigos. O título do Internacional deixa muitos dos meus melhores amigos muito felizes e, na verdade, todos merecem comemorar. Quero personificar nesses dois amigos da foto, que eram adolescentes na escola durante a década gremista de 1990 e que comemoraram muito na década passada, a felicitação a todos os colorados. Desejo do fundo do meu coração que isso nunca mais aconteça. Mas quando acontecer saibam que não tem como ser tão terrível algo que deixa nossos amigos felizes…

 

Referência

VERÍSSIMO, Luis Fernando. Infantilidades. In: VERÍSSIMO, Luis Fernando. Time dos sonhos: paixão, poesia e futebol. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010, p. 25-26.


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Gustavo Andrada Bandeira

Possui graduação em Pedagogia (2006), especialização em Jornalismo Esportivo (2012), mestrado em Educação (2009) e doutorado em Educação (2017) todos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente é técnico em assuntos educacionais da UFRGS. Foi professor nos cursos de Especialização em Jornalismo Esportivo na UFRGS (2012-2013), Coordenação Pedagógica e Gestão Escolar na Escola de Gestores (2012-2016), Autor do livro Uma história do torcer no presente: elitização, racismo e heterossexismo no currículo de masculinidade dos torcedores de futebol. Integrante do Grupo de Estudos em Educação e Relações de Gênero (Geerge), do Seminário Permanente de Estudios Sociales del Deporte e do Observatório da Discriminação Racial no Futebol.

Como citar

BANDEIRA, Gustavo Andrada. O pior campeonato brasileiro de todos os tempos. Ludopédio, São Paulo, v. 141, n. 6, 2021.
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