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O presidente enfeitiçado

Antes de Getúlio Vargas anunciar as conquistas trabalhistas na década de 40 no estádio de São Januário, e muito antes de Médici camuflar a perda de direitos civis e a repressão política no Brasil, outro presidente já enxergava no futebol um instrumento para potencializar sua popularidade

 

presidente Washington Luís
O presidente Washington Luís, no centro da imagem, ao lado de alguns ministros antes da final entre cariocas e paulistas pelo Campeonato Brasileiro de Football de 1927 Foto: Acervo Biblioteca Nacional.

Estamos na Primeira República, período compreendido entre a Proclamação de 1889 e a “Revolução de 1930”, marcada pela chegada de Getúlio Vargas à presidência do Brasil.

A pauta política estava sob um ambiente complicado, e não exatamente de encantamento. A aliança político-eleitoral entre paulistas e mineiros, que ficou popularmente conhecida como “política do café-com-leite”, dominava a conjuntura interna com o café como figura de destaque no campo econômico.

O último dos presidentes deste tempo foi um macaense, radicado politicamente em São Paulo, chamado Washington Luís. Ele transitou entre a moderação e a austeridade contra opositores.

Em 1927 acabou com os sucessivos estados de sítio implantados pelo antecessor, Artur Bernardes, e libertou presos políticos. Porém, no mesmo período aprovou a Lei Celerada que tornava o Partido Comunista Brasileiro (PCB) ilegal. Também censurava a imprensa e restringia o direito de reunião.

Esta sua característica centralizadora seria notada não apenas no gabinete presidencial, mas também nas arquibancadas de um estádio de futebol.

Rio de Janeiro x São Paulo

Estádio São Januário
Estádio São Januário no dia da decisão. Foto: Acervo Biblioteca Nacional.

Em novembro daquele ano, no estádio de São Januário, paulistas e cariocas se enfrentaram no que a imprensa da época chamava de “Campeonato Brasileiro de Football”.

Os melhores jogadores dos clubes de futebol de Rio de Janeiro (Distrito Federal) e São Paulo eram convocados para representar os combinados de seus respectivos estados, e o momento de grande rivalidade política transcendia o futebol.

Apesar do Rio de Janeiro ser o centro político da república, o dinheiro estava na mão dos paulistas através da exportação de café. Dentro das quatro linhas, havia um ranço dos cariocas, principalmente dos atletas do Vasco da Gama, devido à derrota sofrida por 5 a 3 do Santos na inauguração de São Januário, em abril de 1927.

Assim que chegou ao estádio, Washington Luís foi ovacionado por três minutos diante de um público de mais de 30 mil pessoas. Próximo a ele estavam senadores, membros de todos os ministérios, chefes de polícia, militares, deputados, intendentes e diplomatas. Surpreso e, ao mesmo tempo satisfeito, revelou a imprensa:

“Nunca recebi tantas palmas em minha vida. Nem em minha terra”.

A imprensa paulista criticou o presidente pelo elogio ao público carioca. Viu tal ação como um ato de descuido diante do clima turbulento entre os dois estados.

Talvez todo o louvor dado ao presidente possa ter aflorado seu espírito centralizador. Até mesmo o pontapé inicial do jogo tinha que ter a marca pessoal. Sendo assim, o tenente Ayres da Fonseca Costa, em representação à figura de Washington Luís, foi o primeiro a movimentar a bola.

Mas pouco tempo depois, toda a euforia inicial do presidente se transformaria em irritação.

“Em campo mandamos nós”

Feitiço
Feitiço, à época jogador do Santos.

A partida foi muito disputada. Oswaldo abriu o placar para os cariocas no primeiro tempo e Petronilho empatou para os paulistas. Os goleiros Tuffy e Amado fizeram defesas fundamentais para evitar que o adversário ficasse em vantagem. Aos 33 minutos do segundo tempo, quando o jogo estava empatado em um a um, o árbitro fluminense Ary Amarante apitou pênalti a favor do Rio de Janeiro. Segundo ele, o paulista Bianco Grinaldi evitou o segundo gol carioca colocando o braço na bola.

Os jogadores da seleção paulista ficaram indignados. Tuffy chegou a sequestrar a bola enquanto Pepe sentou-se sobre a marca da cal para impedir a cobrança da penalidade. Feitiço, craque do Santos e líder do selecionado paulista, ordenou que os demais companheiros abandonassem a partida, em protesto contra a decisão do árbitro.

Das tribunas, Washington Luís mostrava-se claramente insatisfeito com toda a celeuma e protestos paulistas. Mandou que um oficial de seu gabinete, devidamente uniformizado, fosse até o campo e ordenasse a imediata retomada do jogo. Foi então que Feitiço, de forma taxativa, respondeu:

“O doutor Washington Luís manda no Palácio do Catete, e aqui em campo mandamos nós”.

São Januário
Cariocas e paulistas alinhados antes de a bola rolar em São Januário. Foto: Biblioteca Nacional.

À época jogador do Santos, Feitiço era parte do mitológico ataque dos 100 gols. A linha de frente formada por ele, Araken, Osmar, Camarão e Evangelista atingiu os três dígitos de festejos precisando de apenas 16 jogos.

Feitiço era referência, e provando que sua autoridade valia em campo mais do que a ordem presidencial, fez um sinal para que os atletas paulistas abandonassem a partida e se dirigissem aos vestiários, no que foi prontamente atendido. O árbitro Ary Amarante ordenou que Fortes batesse o pênalti contra um gol completamente vazio, e assim os cariocas derrotaram os paulistas por dois a um em um jogo encerrado antes dos 90 minutos.

Jornal do Brasil
Jornal do Brasil em novembro de 1927 condenou a atitude do conjunto paulista. Foto: Acervo Biblioteca Nacional.

Washington Luís deixou o estádio sentindo-se ofendido depois de ter esperado o recomeço da partida por 15 minutos. Foi duramente criticado pela imprensa paulista, decepcionada com a chancela de um “Paulista de Macaé” ao pênalti duvidoso cobrado por um árbitro carioca.

A bronca do presidente entregaria a conta.

A pedido do próprio Washington Luís, Feitiço foi banido do futebol e um ano depois do episódio, o presidente negou as verbas do Governo Federal para a Confederação Brasileira de Desportos (CBD). O dinheiro seria destinado à participação da Seleção Brasileira nos Jogos Olímpicos de Amsterdã, em 1928. O Brasil ficou fora do campeonato de futebol, vencido pelos uruguaios.


Puntero Izquierdo menorPublicado originalmente no Puntero Izquierdo em 2019. O Puntero em parceria com o Ludopédio publica nesse espaço os textos originalmente divulgados em sua página do Medium.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

OLIVEIRA, Raphael Alberti Nóbrega de. O presidente enfeitiçado. Ludopédio, São Paulo, v. 143, n. 42, 2021.
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