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O Processo (no futebol moderno)

Gabriel Said 15 de abril de 2021

Uma curta adaptação d’O Processo, de Franz Kafka para uma partida qualquer de futebol no ano de 2021.

VAR
Raro erro admitido pelo uso do VAR no Brasileirão 2020. Fonte: Reprodução Twitter/OneFootball
Alguém certamente havia caluniado Josef K. pois em um jogo ele foi advertido sem ter feito mal algum. Isso não havia acontecido antes. Josef K. já marcou centenas de gols, mas desta vez quando marcou o gol, enquanto comemorava virou para o campo e viu um homem que ele nunca havia visto em nenhum estádio. Meiões e shorts pretos, camisa amarelo com algo escrito bem destacado nela, fone no rosto, um relógio em cada pulso assim como um árbitro de futebol, mas que por alguma razão que parecia muito importante e sem saber ao certo o porquê, estava sempre com uma mão encostada na orelha.

– Quem é o senhor? – perguntou K. enquanto se aproximava.

O homem ignorou a pergunta e agora esticava o outro braço, fazendo um gesto para que K. se mantivera distante e disse:

– O senhor que fez o gol?

– Gostaria de seguir com o jogo, ainda faltam alguns minutos. – respondeu K.

– Impossível! – disse o homem de amarelo – O jogo ainda não pode continuar e ao que consta, o senhor não tem permissão de retornar a ele. O senhor está detido.

– Mas por quê? – perguntou K.

– Não tenho permissão para dizê-lo. Por ora, se afaste e espere. O procedimento recém se iniciou, mas perceberá no momento certo como tudo isso é verdade.

K. desejava recomeçar a partida. Acabara de marcar o gol de empate e essa situação toda só estava atrapalhando.

– Veja, estou aqui com as melhores intenções, mas o senhor deve entender que neste momento está sendo acusado e portanto, está detido – disse o árbitro.

– Volto a perguntar quem é o senhor que entra de repente no campo e ainda diz que estou detido?

– Não fui incumbido de dizê-lo. Tudo que posso dizer é que espere em silêncio, já passei dos limites usuais da amabilidade por te dar tanta atenção e nem sequer apresentar-lhe um cartão amarelo por desacato. Estava até contra todos os regulamentos e o senhor deveria reconhecer sua sorte, pois agora ela se esgotou e lhe dou o amarelo – concluiu o árbitro enquanto anotava o nome de K. no cartão.

Isso tudo parecia uma grande brincadeira. De certo K. era vítima de uma piada. Quem era esse sujeito? Como ele poderia punir um jogador com cartão amarelo sem razão? Será que existia mesmo algum motivo para a paralisação da partida e só K. não entendia? Lembra da jogada do gol, que de certo era um daqueles gols feios de se ver tamanha confusão no lance, mas K. conhecia bem as regras e já era experiente o suficiente para saber que não havia nada de irregular. Como se recusava a acreditar que isso tudo não poderia passar de uma brincadeira, resolveu participar:

– Com licença, poderia falar com seu superior?

– O senhor já está falando com ele – respondeu o árbitro.

– Ora, como posso estar falando com ele se só você está aqui? – indagou K.

– Meu superior, Vossa Alteza Reverendíssima, e assim deve ser tratado, observa tudo que acontece dentro do campo. Tem várias câmeras espalhadas por aqui e ele as utiliza como o convém para aplicar suas decisões quanto ao cumprimento da lei.

– Não é assim que funciona a aplicação da lei.

– O senhor deveria mostrar a mesma disposição que tem em reclamar para entender as leis. – disse o árbitro – Se quiser reclamar sobre as regras, pode fazê-lo com a certeza que V.A.Rev. irá observar todas as suas reclamações, mas não espere que alguma seja acatada.

– Não existe para além da sua cabeça lei que impeça o jogo de continuar e me torne detido!

– Como o senhor se diz inocente da acusação sem sequer conhecer a lei?

– Mesmo se essa lei existisse, não caberia discutir sua validade diante dos conflitos ético e morais que sua execução implica? Todos aqui sabemos o que é gol, escanteio, a infração de mão, impedimento, falta…

– Mas se o senhor não sabe da alteração da regra de mão e de como marcamos impedimento a partir da última publicação oficializada por V.A.Rev. ontem, não pode sequer começar a discutir nem reclamar.

– A regra mudou, é? Agora não existem mais essas infrações? – perguntou K. com alguma ironia, decidido a se deixar levar nessa situação que pouco compreendia.

– Senhor, as regras estão em constantes mutações para se adaptar às exigências que V.A.Rev achar mais conveniente. Em um momento o braço começará contar para lances de impedimento, e no instante seguinte não mais. Assim como em alguns lances bastará encostar a mão na bola que será infração, mas nada garante que será assim no lance seguinte a não ser a inquestionável capacidade de julgamento de V.A.Rev., que tudo vê.

– Mas isto levará o joga à uma infindável instabilidade jurídica. As leis devem ser feitas e aplicadas sempre preservando o julgamento de quem vê, mas deve saber como vê também e manter uma base moral sólida para os julgamentos, superior a todos nós ao mesmo tempo que é formada por nós.

– As regras estão em constante mutação para atender as demandas do jogo, que são as mesmas que a de V.A.Rev. O quê V.A.Rev escolher ver, ele irá interpretar da sua forma, alterando as leis se necessário. Lei é uma questão sem espaço para abstrações. daí o que V.A.Rev. decidir, será a única e absoluta verdade – afirmou o árbitro.

– Isso abre margem para enormes injustiças.

– O conceito de justiça pode ser bem elástico. E por falar nisso, cansei do senhor, vou lhe dar outro cartão.

Enquanto o árbitro pegava o cartão no seu bolso, K. pensava sobre quem seria V.A.Rev. que tudo via, mas não era visto. Parecia haver um sistema de normas costuradas por ali, que o árbitro era ciente de várias coisas, mas talvez por demais confuso pelos excessos de normas, mudanças das regras e outras burocracias. Afinal, como podem pensar em tratar do direito e, pasmem, do futebol como algo tão simples? Para onde vão essas imagens todas captadas pelas câmeras? Elas não viam tudo como achavam que viam. De que serviam tantas câmeras para ver tanta coisa se ao fim se vê cada vez menos futebol, mas sombras através dessas lentes? A racionalização em excesso realmente é inabalável, mas também não resiste a um jogador que queira jogar. Estaria por fim o tal V.A.Rev. dentro de uma caverna assistindo todas essas sombras captadas pelas câmeras? Foi aí que árbitro tirou a mão do bolso e apresentou o cartão vermelho para K.

– Como um cão – disse K.

Enquanto K. ia ao vestiário, a partida continuava paralisada, afinal o processo ainda estava em andamento. Já havia se passado tanto tempo que se o jogo tivesse seguido normalmente, já teria terminado, mas todos devem ter a certeza se o gol é válido ou não, até se tiver que demorar ou que ninguém mais saiba muito bem o quê está fazendo. Talvez já esteja em um momento que todos os gols são suspeitos e depois de uma paralisação, seja cortês apresentar um motivo para anular o gol, mesmo que seja necessário inventar algum. Sabe como é, bons modos. Nem a vergonha deve impedir o processo.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Gabriel Said

Formado em Sociologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestrando em Antropologia pela UFF e aluno da Associação de Treinadores do Futebol Argentino (ATFA). Participa do grupo de estudos de Futebol e Cultura, do LEME/UERJ; do grupo de Futebol e Humanidades da Universidade do Futebol e do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Esporte e Sociedade (NEPESS), da UFF. Além de escrever a coluna Danúbio Azul no Ludopédio, também escreve para a Universidade do Futebol. E-mail: [email protected]

Como citar

SAID, Gabriel. O Processo (no futebol moderno). Ludopédio, São Paulo, v. 142, n. 29, 2021.
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