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O reconhecimento pela bola

Victor de Leonardo Figols 30 de março de 2015

Pela primeira vez na história a Palestina entrou em campo em uma competição oficial pela Copa da Ásia. Enquanto a Organização das Nações Unidas (ONU) não reconhece o território como um país, a Federação Internacional de Futebol (FIFA) dá aos palestinos o direito de ter uma Confederação Nacional de Futebol, o direito de ter uma Seleção Nacional e o direito de disputar e ter o seu país representado em competições oficiais.

O caminho da Seleção da Palestina para chegar à Copa da Ásia é tão cheio e obstáculos quanto à luta dos palestinos para terem o reconhecimento do seu país. Em março de 2013 a Seleção da Palestina começou a sua trajetória para chegar à Copa da Ásia. Os palestinos disputaram a fase classificatória para AFC Challenge Cup 2014, um torneiro que reúne as seleções asiáticas pouco competitivas, mas que dá ao vencedor a chance se disputar a Copa da Ásia.

Ainda na fase classificatória para AFC Challenge Cup, a Seleção da Palestina venceu a Seleção de Bangladesh por 1 a 0, na segunda rodada goleou as Ilhas Marianas do Norte por 9 a 0, e na última rodada, empatou sem gols com o Nepal. A campanha invicta deu o primeiro lugar à Palestina com sete pontos, e a classificação para disputar a AFC Challenge Cup.

No torneio, a Palestina entrou no grupo A, composto pelas seleções das Ilhas Maldivas, Quirguistão e Mianmar. E mais uma vez a Seleção da Palestina passou invicta no grupo, vencendo o Quirguistão por 1 a 0, na segunda rodada ganhou de Mianmar por 2 a 0, e no último jogo da fase de grupos, empatou sem gols com os anfitriões, as Ilhas Maldivas.

Já na fase eliminatória, na semifinal, mais uma vitória por 2 a 0 sobre a Seleção do Afeganistão, e vaga para disputar a final da AFC Challenge Cup contra as Filipinas. E mais uma vez a Palestina mostrou a sua força e venceu por 1 a 0, conquistando o seu primeiro título em uma competição oficial. A campanha da Seleção da Palestina foi brilhante, terminando a competição invicta, com a melhor defesa e o artilheiro da AFC Challenge Cup, Ashraf Nu’man, com 4 gols. Além disso, conquistou a vaga para a Copa da Ásia 2015.

O feito fica mais impressionante quando olhamos para a estrutura do futebol da Palestina e para a situação política e social da região. Com o território completamente divido entre o Estado de Israel, Jordânia, Faixa de Gaza e a Cisjordânia, e com boa parte da sua população em campos de refugiados, jogar futebol na Palestina não é uma atividade fácil. Devido ao território todo divido, a Palestina conta com duas ligas, com 12 equipes em cada uma delas.

O conflito entre Israel e Palestina, que remonta o final da II Guerra Mundial, com a criação do Estado de Israel em território palestino, em 1948, pode ser sentido em campo. Para aqueles que tentam jogar futebol profissionalmente, necessitam passar pela arbitrariedade e pelo autoritarismo do Estado de Israel, pois o controle das fronteiras pertence aos israelenses. Cabe a Israel dar a permissão para os palestinos circularem no território, o que dificulta a estrutura não apenas do futebol, mas também de toda uma vida social.

Felipe de Leonardo – felipedeleonardo.com

Outro problema enfrentado pelos jogadores palestinos é que Israel, por diversas vezes, não autorizou a entrada em territórios palestinos de representantes da Federação de Futebol do Oeste Asiático, dificultando a realização de uma competição sub-21. Israel também proíbe que a Palestina realize seus jogos em seu território, mesmo com as denuncias da Federação de Futebol da Palestina à FIFA e a UEFA (devido ao conflito, a liga israelense está ligada à Union of European Football Associations).

Enquanto isso, a Federação de Futebol da Palestina luta para conseguir montar uma equipe minimamente competitiva, uma vez que alguns de seus atletas foram presos arbitrariamente pelo Estado de Israel, como é o caso de Mahmoud Sarsak, que foi preso em 2009 e acusado de ter ligações com a Jihad Islâmica. Sarsak ficou preso por três anos, e só foi libertado depois de fazer uma greve de fome, e da pressão de ex-jogadores como Eric Cantona e Liliam Thuram.

Também em 2009, os palestinos perderam três jogadores da seleção principal – Ayman Alkurd, Shadi Sbakhe e Wajeh Moshtahe – em um ataque na Faixa de Gaza que durou três semanas e vitimou mais de 1300 pessoas, e ferindo mais 5 mil. Os ataques também foram direcionados para o Shabab Rafah Stadium, principal estádio da Palestina.

Outro jogador, também acusado e preso pelo Estado de Israel, foi Sameh Mar’aba. Em 2014, depois que retornava de um compromisso com a Seleção da Palestina, ele foi detido e acusado de ter ligação com o Hamas. A prisão de Mar’aba impediu a sua participação na campanha vitoriosa dos palestinos na AFC Challenge Cup. Solto em dezembro de 2014, Mar’aba também foi impedido de viajar com a sua seleção para a Austrália, onde disputaria a Copa da Ásia.

A saída da Federação de Futebol da Palestina para montar uma equipe é recorrer aos descendentes de palestinos e aos exilados em outros países. Dos 23 jogadores do elenco que formam para a Austrália disputar a Copa da Ásia de 2015, seis eram estrangeiros, sendo dois jogadores de origem israelense, um do Egito, um da Suécia, um da Eslovênia e um do Chile.

Entretanto, a luta da Palestina não se resume a montar uma seleção de futebol, mais do que isso, a luta é pelo reconhecimento enquanto uma Nação. Hoje, o mais próximo que a população palestina pode chegar de uma Nação é por meio do futebol. É em campo e com a bola que a Palestina tenta o seu reconhecimento. Isso ficou evidente com a estreia da Seleção da Palestina na Copa da Ásia, sediada na Austrália.

A estreia da Palestina em território australiano foi um exemplo de como o futebol e política caminham juntos. Dias antes do início da Copa da Ásia, em dezembro de 2014, o Conselho de Segurança da ONU colocou em votação a resolução que tinha como objetivo a criação do Estado Palestino. Os palestinos precisavam de nove votos a favor e nenhum veto dos membros permanentes da ONU (China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia). Todavia, conseguiram oito votos a favor, dentre os quais a China, a Rússia e França votaram a favor da resolução, enquanto os Estados Unidos e a Austrália (e outros países) votaram contra.

Quinze dias depois da votação, a Palestina entrou em campo pela Copa da Ásia, e a Austrália teve que hastear a bandeira e tocar o hino palestino. Acontecimento que se repetiu mais duas vezes no torneio. A resposta ao voto contrário da Austrália veio em campo, como afirmou o diretor técnico da Seleção da Palestina, Husam Younis, “Ver a bandeira da Palestina exibida dentro da Austrália, que não nos reconhece como país, é mais do que um gol”. De fato, é mais que um gol, é uma vitória.

Após três jogos, a Palestina deixou a Copa da Ásia com três derrotas (4 a 0 contra o Japão, 5 a 1 para a Jordânia e 2 a 0 para Iraque). Ainda que a campanha não tenha sido parecida com a trajetória vitoriosa que deu o título da AFC Challenge Cup, os palestinos desempenharam um grande papel na Copa da Ásia. A Seleção da Palestina mostrou que ao menos na bola, o país existe. E é na bola que resiste e busca ser reconhecida enquanto país.

Referências:
A dura trajetória da Palestina no futebol
Israel vê terrorismo no futebol palestino e ataca também seleção nacional
Como a Palestina deu, na Copa da Ásia, um ‘tapa político na cara’ da Austrália

Esse texto foi originalmente publicado no blog O Campo e cedido para publicação nesse espaço.

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Victor de Leonardo Figols

Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) (2022). É Mestre em História (2016) pela Universidade Federal de São Paulo - Escola de Filosofia Letras e Ciências Humanas (EFLCH) - UNIFESP Campus Guarulhos. Possui Licenciatura (2014) e Bacharel em História (2013) pela mesma instituição. Estudou as dimensões sociais e políticas do FC Barcelona durante a ditadura de Francisco Franco na Espanha. No mestrado estudou o processo de globalização do futebol espanhol nos anos 1990 e as particularidades regionais presentes no FC Barcelona. No doutorado estudou a globalização do futebol espanhol entre os anos 1970 a 2000. A pesquisa de doutorado foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Trabalha com temas de História Contemporânea, com foco nas questões nacionais e na globalização, tendo o futebol como elemento central em seus estudos. É membro do Grupo de Estudos sobre Futebol dos Estudantes da Unifesp (GEFE). Escreve a coluna O Campo no site História da Ditadura (www.historiadaditadura.com.br). E também é editor e colunista do Ludopédio.

Como citar

FIGOLS, Victor de Leonardo. O reconhecimento pela bola. Ludopédio, São Paulo, v. 69, n. 8, 2015.
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