144.5

O ringue e o gramado

José Paulo Florenzano 3 de junho de 2021

É difícil determinar com precisão o momento em que teve início a comparação entre Muhammad Ali e Pelé. Podemos conjecturar, no entanto, que ela foi se tornando mais frequente na passagem dos anos sessenta para os anos setenta, primeiro, circunscrita  à questão esportiva, e, logo em seguida, contemplando também a dimensão política. Sob o primeiro aspecto, a comparação encerrava a difícil tarefa de comparar atletas envolvidos em modalidades distintas, a saber: a prática individual do boxe e o jogo coletivo do futebol. Sob o segundo aspecto, porém, o paralelo se afigurava mais pertinente, uma vez que se referia à posição adotada por dois atletas afrodescendentes em relação ao racismo em suas respectivas sociedades.

Se na dimensão esportiva a controvérsia parece infinita, expressa, de resto, nas sucessivas enquetes entre os especialistas a respeito de qual dos dois deveria ser considerado o Atleta do Século; na dimensão política o resultado não comporta nenhuma polêmica.[1] O engajamento de Muhammad Ali na luta contra o racismo é por demais conhecida e reconhecida. Não temos a menor pretensão de colocar em dúvida o resultado da comparação, mas tão somente ponderar acerca dos recursos que cada personagem dispunha no enfrentamento da questão racial. Noutras palavras, pretendemos inseri-los na moldura histórica em cujos limites agiram, assumindo posturas combativas, ou, ao contrário, eximiram-se, mantendo-se à margem dos problemas que afetavam os grupos sociais aos quais ambos se encontravam identificados.

De imediato, chama a atenção a profunda diferença na correlação de forças por trás das ações e omissões dos referidos atletas. Enquanto Muhammad Ali contava com o respaldo de organizações sociais que se articulavam na ação conjunta contra o racismo,  Pelé sucumbia à dominação simbólica que convertia o racismo no impensado da sociedade brasileira. O contraste no plano macrossociológico não poderia ser maior. Em meados dos anos sessenta, os Estados Unidos viviam a ascensão do Movimento pelos Direitos Civis, liderado pelas assim chamadas Big Five: Associação Nacional para o Progresso  de Pessoas de Cor; Congresso de Igualdade Racial; Comitê Não Violento de Coordenação Estudantil; Liga Nacional Urbana e Conferência Sulista de Liderança Cristã, esta última dirigida por Martin Luther King.

Embora estivesse associado à Nação do Islã, organização religiosa que defendia o separatismo racial,  Muhammad Ali beneficiava-se da intensa mobilização produzida pelas Big Five, constituindo-se, ao mesmo tempo, em um referência importante para os jovens no gueto que se preparavam para radicalizar a luta antirracista, seguindo a orientação dissidente de Malcolm X, formulada em termos categóricos: “Agora vai ser diferente”.[2] O líder carismático do nacionalismo negro anunciava a correção de rota que o levaria a se engajar na mobilização suscitada pelos Direitos Civis, sem, contudo, abdicar do princípio da autodefesa, ao passo que Muhammad Ali, fiel ao dogma político da seita muçulmana, reiterava a postura contrária às manifestações pela integração racial: “Eu não carrego cartazes”.[3]  Entretanto, ao veicular uma narrativa de emancipação direcionada à diáspora africana, o Atleta de Alá potencializava os atos de protesto emanados do tablado de boxe:

Estou lutando pela minha liberdade e carregando as esperanças do meu povo negro de 30 milhões. E essa é a minha missão.[4]

No Brasil, em nítido contraste com a mobilização em curso nos Estados Unidos, o movimento negro encontrava-se bloqueado pela mitologia da democracia racial, convertida em ideologia oficial a partir do Golpe de Estado em 1964.  Os Anos de Chumbo, como se sabe, foram marcados pela violência física, a repressão armada e o exílio político dos opositores do regime civil-militar, dentre os quais se achava Abdias do Nascimento, responsável pela criação do Teatro Experimental do Negro. Principal referência da luta contra o preconceito e a discriminação no período subsequente à Segunda Guerra, em 1968 ele teve de partir – como no verso de uma canção imortal – “num rabo de foguete”.[5] A resistência antirracista voltaria a ser rearticulada somente em 1978 com a fundação do Movimento Negro Unificado, cujo objetivo consistia em desconstruir a mitologia da democracia racial. [6]      

O paralelo traçado entre os dois atletas incorre, portanto, no erro de abstrair os contextos históricos nos quais eles se achavam inseridos. Se quisermos compreender os posicionamentos adotados por Muhammad Ali e Pelé, devemos levar em consideração as correlações de forças existentes nos dois países. Isto, por certo, não explica tudo nem tampouco elimina da análise a margem de autonomia dos sujeitos históricos. Voltemo-nos, então, para o segundo enquadramento da questão, relativo aos campos esportivos em que os atletas atuavam.

Pelé e Ali. Arte: Marija Marković.

Nos Estados Unidos, Muhammad Ali identificava-se com uma tradição de rebeldia que principiava por Jack Johnson, o primeiro pugilista negro a levantar o título dos pesos pesados.[7] O Atleta de Alá promovia o resgate de uma personagem que lhe servia de referência transgressora a fim de instaurar uma ruptura no plano comportamental, criando uma linhagem que, no contexto da radicalização promovida pelo movimento Black Power, viria a ser encarnada por Tomie Smith e Kareem Abdul Jabbar, e, mais recentemente, no contexto das manifestações organizadas pelo movimento Black Lives Matter, por Colin Kaepernick.[8] De fato, não há como separar os dois quadros, o da mobilização na sociedade civil e o do engajamento na esfera esportiva. Ontem como hoje, eles se revelam entrelaçados em uma causalidade circular, devendo-se, por conseguinte, evitar a análise reducionista que toma o esporte como mero reflexo da sociedade.

No Brasil, de igual modo, Pelé contava com uma rica tradição de rebeldia, cuja origem remontava pelo menos até Fausto da Silva, cognominado “A Maravilha Negra”, e incluía ainda duas das principais referências do nosso futebol, Leônidas da Silva e Zizinho, referências não apenas pelo capital futebolístico que haviam adquirido ao longo do tempo, como também pela postura questionadora que demonstravam em relação ao exercício do poder.[9] Contudo, à semelhança de ícones do esporte estadunidense como Jesse Owens, Joe Louis e Jackie Robinson, ou, para citarmos um exemplo mais recente, Michael Jordan, Pelé preferia enfrentar o preconceito e a discriminação através do exemplo de sucesso dentro da atividade profissional.

Chegamos, desse modo, ao terceiro enquadramento da questão, estruturado com base em uma indagação-chave: o quanto o capital simbólico acumulado pelos atletas operava como um escudo protetor face às ameaças de punição política, represália esportiva e boicote econômico. Com efeito, não parece casual que Muhammad Ali tenha aguardado a conquista do título mundial dos pesos pesados, em 1964, para assumir publicamente a conversão ao islã e anunciar a mudança de nome. Contudo, apesar da posição privilegiada ocupada no campo esportivo, ele acabaria no bando dos réus. À radicalização do ato de protesto, em 1967, materializada na recusa em se alistar no Exército e lutar na guerra do Vietnã, corresponderia a punição draconiana consubstanciada na perda do título, no interdito do tablado e no processo judicial. Conforme a análise acurada de Bill Russell, jogador de basquete do Boston Celtics:

Esta é uma sociedade que pode destruir Ali por suas convicções, mas que elogia Namath por não possuir nenhuma.[10]

Se, por um lado, o comportamento de Pelé não pode ser comparado à militância engajada de Muhammad Ali, por outro lado, não pode ser igualado ao descompromisso total do quarterback do New York Jets, Joe Namath, na visão de Bill Russel, a figura emblemática do atleta alienado. Por certo, Pelé foi exaltado pela ditadura militar e elogiado pelos grupos hegemônicos por não se posicionar de forma crítica em relação à questão racial. Mas a partir do momento em que anunciara o desejo de se deslocar no espaço social, abandonando o lugar fixado aos negros no esporte para atuar na esfera empresarial reservada aos brancos, os agentes da ordem simbólica entraram em campo para acusá-lo de “mercenário” e “traidor da pátria”. Para eles, o “Rei Negro” do tricampeonato voltava a ser o “Negrinho de Bauru”.[11]  Ao tomar a decisão autônoma de se despedir do selecionado nacional, em 1971, não obstante se encontrasse no auge da fama, o “Atleta do Século” foi coagido, chantageado e ameaçado de várias formas pelo Palácio do Planalto e pela Rua da Alfândega.

A decisão de Pelé em não jogar mais pela Seleção Brasileira, assim como a de Ali em exercer novamente a atividade do boxe, podem ser interpretadas como atos de protesto. Mas se a luta do segundo consistia em voltar a ocupar o palco do ringue, a do primeiro implicava a retirada calculada do campo de jogo. Da perspectiva do establishment, tratava-se, no caso de Ali, de mantê-lo fora do boxe e, por meio do exílio esportivo, interromper a narrativa de emancipação potencializada pela criação histórica do Atleta de Alá; no caso de Pelé, inversamente, tratava-se de coagi-lo a não abandonar o gramado, e, por meio do cativeiro simbólico, reiterar no imaginário popular a representação do futebol como o lugar do negro na sociedade brasileira. Estratégias distintas do exercício de poder, acionadas, porém, para a consecução do mesmo objetivo: neutralizar os atos de protesto.    


[1] Sobre a discussão a respeito do Atleta do Século, incluindo também Michael Jordan, ver Oriard, Michael. “Muhammad Ali: the Hero in the Age of Mass Media”. In: “Muhammad Ali: the People`s Champ”. Edited by Elliot J. Gorn. Chicago: University of Illinois Press, 1997.

[2] Cf. “Malcolm X Splits with Muhammad”, M. S. Handler, The New York Times,9 de março de 1964.

[3] Cf. Clays Says He has Adopted Islam Religion and Regards it as Way to Peace”, 28 de fevereiro de 1964. Durante sua turnê pelo continente africano, Muhammad Ali iria reafirmar a diretriz político ideológica da Nação do Islã, declarando, em Acra, que a única maneira dos afro-americanos obterem respeito era criar um “estado separado”. Cf. “Clay Takes a Jab at Civil Rights Bill”, 20 de maio de 1964, ambas as matérias publicadas no The New York Times. 

[4] Cf. “Winner by Decision Muhammad Ali”, by Steve Cady, The New York Times, 29 de junho de 1971.

[5] “O Bêbado e a Equilibrista”, música de João Bosco e Aldir Blanc, intérprete Elis Regina. Disco: “Essa Mulher”, 1979. 

[6] Cf. Guimarães, Antonio Sérgio Alfredo. “Democracia racial: o ideal, o pacto e o mito”. In: “Classes, raças e democracia”. São Paulo, Editora 34, 2002.

[7] Cf. “Watching the Man in the Mirror”, by George Plimpton, Sports Illustrated, November 23, 1970, Vol.33. Nº 21. De acordo com a matéria:  “Os paralelos entre os dois lutadores são marcantes – ambos exilados do esporte, ambos em dificuldades com as autoridades legais, ambos grandes homens show dentro e fora do ringue”. A diferença residia no estilo de vida boêmio de Jack Johnson.

[8] Assim como Cassius Clay havia se transfigurado em Muhammad Ali, Ferdinand Lewis Alcindo Junior também passaria por um renascimento simbólico, em 1971, renomeando-se Kareem Abdul Jabbar.

[9] Sobre o conceito de capital futebolístico, ver Damo, Arlei (2007) “Do dom à profissão: a formação de futebolistas no Brasil e na França. São Paulo, HUCITEC/ANPOCS.

[10] Cf. “Success is a Journey”, by William F. Russell, Sports Illustrated, June 8, 1970, Vol.32. N°23.

[11] Ver a respeito o nosso artigo no Ludopédio: “A cerimônia do adeus: a rebeldia de Pelé (III Parte)”, 7 de novembro de 2019.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. O ringue e o gramado. Ludopédio, São Paulo, v. 144, n. 5, 2021.
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