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O roubo da Copa

José Paulo Florenzano 8 de abril de 2021

Em meados de 1975 a Argentina se achava imersa na “maior crise política e econômica de sua história”.[1] Representante da ala direita do peronismo, a presidente Maria Estela Martinez de Perón buscava equilibrar-se no poder em meio ao clima de terror disseminado pela Aliança Anticomunista Argentina, grupo parapolicial criado pelo todo-poderoso ministro do Bem-Estar Social, e Secretário Particular da Presidência, José Lopez Rega, com o objetivo de perseguir e eliminar fisicamente os militantes de esquerda.

Só uma coisa parecia unir um país tão dilacerado pelos conflitos internos: o repúdio à figura de El Brujo, o criador da tríplice A: “ou sai Lopez Rega” – dizia-se em todas as áreas  – “ou as instituições argentinas não poderão resistir por muito tempo”.[2]  A sua saída, no entanto, não foi suficiente para impedir a deterioração do quadro. Conforme salientava o correspondente de O Estado de S. Paulo, Clóvis Rossi, a crise já havia alcançado, então, o “ponto de não-retorno”.[3]

Desde o início do ano, com efeito, mais de 380 pessoas tinham sido mortas em decorrência dos confrontos armados envolvendo, de um lado, o aparato repressivo do Estado e, de outro lado, a guerrilha urbana. Ao mesmo tempo, a inflação escapava ao controle das autoridades econômicas, alcançando nos últimos doze meses a marca de 238%.[4] Em agosto, diante do agravamento geral da situação, os jornais começaram a expressar publicamente o que se comentava nos cafés, restaurantes e arquibancadas sobre a Copa do Mundo: “a realização, ou não, do evento no país”.[5] De acordo com o enviado especial de O Estado de S. Paulo, Rogério Perez, discutia-se, então, os prós e contras de se levar adiante o compromisso assumido com a FIFA ainda no governo de Juan Domingo Perón. Nos meios de comunicação, o comentarista do Canal 7, Beto Devoto, alertava os compatriotas: “por ser um bom negócio, todos querem tirá-la da Argentina”.[6] Ora, eis a questão: quem desejava subtrair à Argentina o direito de sediar a prestigiada competição organizada pela FIFA?

Almirante Heleno Nunes
O ex-presidente da CBF, Almirante Heleno Nunes, ao microfone. Foto: Reprodução

A resposta remete-nos à figura do almirante Heleno de Barros Nunes. Exercendo à época o duplo papel de presidente da CBD e de presidente do Diretório Regional da Arena, no Rio de Janeiro, ele se encontrava situado em uma posição estratégica para entrelaçar os interesses políticos e futebolísticos do regime militar brasileiro. Atento aos acontecimentos dramáticos que se desenrolavam no país vizinho, e ciente do ceticismo crescente que se difundia pelos países europeus quanto à capacidade do governo argentino em organizar a competição, o almirante veio a público externar o posicionamento da entidade que dirigia desde janeiro de 1975:

“O Brasil não tem o direito de pedir ou reivindicar o patrocínio da Copa de 78, já acertado com a Argentina. Mas, na hipótese de um oferecimento, aceitaremos imediatamente”. [7]

A manifestação do presidente da CBD, não obstante a ressalva inicial, inscrevia publicamente o Brasil como candidato a sediar a Copa de 78. Não se tratava de oferecer uma alternativa à FIFA na eventualidade do país vizinho não reunir as condições de realizá-la,  mas de contribuir, com o anúncio da candidatura, para difundir na comunidade internacional  a percepção de que inexistiam as referidas condições. A estratégia exigia habilidade diplomática para não suscitar reações de repúdio, não somente na Argentina, obviamente, mas também nos demais países da região: “O que queremos”, aduzia Heleno Nunes, “é que a competição seja realizada no continente americano”, mantendo-se, desse modo, o revezamento com a Europa estabelecido desde 1930. Evocar a defesa de um suposto “direito sul-americano” constituía um recurso astucioso para ocultar os reais interesses da CBD.

Decerto, as informações sobre o episódio em tela demandam uma pesquisa mais aprofundada. De qualquer forma, os dados preliminares extraídos das fontes jornalísticas indicam-nos com relativa segurança o fato de que, entre julho e outubro de 1975, as chances de sediar a Copa do Mundo devem ter se afigurado muito reais às autoridades brasileiras. De acordo com O Estado de S. Paulo, o tema constava da “pauta da reunião” agendada em Brasília entre o presidente da CDB e o presidente da República.[8] O almirante Heleno Nunes deveria apresentar ao general Ernesto Geisel um “plano” para sediar a Copa de 78, destacando a “rede de comunicações” já existente no país, os “hotéis e estádios que possuímos”, em suma, a promessa de que “em apenas seis meses estaremos devidamente aparelhados” para realizar a competição. [9]

A Argentina carecia da infraestrutura necessária para a realização do evento, encontrava-se com o cronograma de obras atrasado, e, como salientado mais acima, enfrentava uma crise econômica, social e política que beirava a guerra civil. O “plano” explorava o contraste material entre os dois países, apostava no agravamento da situação interna no país vizinho, e esperava contar com um aliado de peso, cuja posição de poder na estrutura do futebol global forneceria o respaldo necessário para concretizar a mudança da sede. Mas foi exatamente essa personagem chave que deitaria por terra o “plano” arquitetado na Rua da Alfândega, instaurando, consoante a análise do jornalista José Inácio Werneck, a “guerra declarada entre a FIFA e a CBD”.[10]

Questionado se existia algum problema em realizar a Copa na Argentina, João Havelange respondia de forma taxativa: “Não há qualquer problema”.[11] Embora se mostrasse preocupado com o sistema de comunicação do país, cuja “deficiência” poderia colocar em risco as negociações envolvendo o direito de transmissão e publicidade dos jogos”, o presidente da FIFA excluía em setembro a hipótese Brasil, recusando-se a levá-la em consideração:

“Se a Argentina, por qualquer razão, não promover a Copa, convocarei o Congresso Extraordinário da FIFA para mudar os estatutos (proibição de realizar duas Copas seguidas no mesmo continente), e, assim, o Mundial de 78 iria para a Europa, ficando a Argentina como a possibilidade de realizá-la em 1982”.[12]

Dessa maneira, João Havelange pretendia colocar uma pá de cal nas pretensões de Heleno Nunes, o qual, no entanto, não se dava por vencido. Ainda em outubro ele reiterava o interesse do Brasil na Copa, dizendo com todas as letras que “gostaria de realizá-la”. Sua obstinação começava a causar preocupação. Em sua coluna no Jornal do Brasil, José Inácio Werneck expressava o temor de que os torcedores brasileiros viessem a ser hostilizados na Argentina como frustrados “ladrões da Copa”.[13] O quanto o referido “plano” arquitetado por Heleno Nunes contava com a anuência do regime militar é uma questão em aberto.  Já as razões da recusa de João Havelange parecem claras. Se ele tivesse se associado ao “plano” da CBD, por certo colocaria em risco o apoio das demais federações do continente, cujos votos, como nos revela a pesquisa de Luiz Burlamaqui Rocha, ajudaram-no a se eleger presidente da FIFA. [14] Ao bancar a competição na Argentina e barrar a investida do Brasil, ele demonstrava de forma cabal o quanto podia e devia ser considerado um dirigente confiável.

João Havelange
João Havelange como presidente da FIFA em 1982. Foto: Wikipédia

A disputa em torno da Copa de 78, porém, não esteve circunscrita ao Brasil. O jornalista José Inácio Werneck mencionava uma carta da Holanda e da Bélgica endereçada à FIFA, protocolando a candidatura conjunta para substituir a Argentina.[15] Já o colunista Zózimo Barrozo do Amaral relatava a existência de um “movimento subterrâneo” dentro da Confederação Sul-Americana de Futebol para transferir a sede do Mundial para o Brasil.[16]  A imprensa citava também o suposto interesse da Espanha, Colômbia e até dos Estados Unidos. Sem uma pesquisa mais aprofundada, porém, torna-se muito difícil identificar os agentes de fato envolvidos na trama, o alinhamento estratégico de cada um deles, as reais intenções por trás das manifestações dúbias.

À luz do quadro acima esboçado, no entanto, chama atenção a habilidade política de João Havelange em contornar a crise “diplomática” deflagrada em torno da realização da Copa na Argentina durante o governo de Isabelita Perón.[17] Mas, consoante a observação lapidar de Sérgio Settani Giglio, o presidente da FIFA possuía clareza a respeito de três aspectos essenciais: “o que, como e por que assumir determinados posicionamentos no mundo do futebol”.[18]

 

Notas

[1] Cf. “Mundial de 78, um desafio para a Argentina”, Rogério Perez, O Estado de S. Paulo, 24 de agosto de 1975

[2] Cf. “CGT decreta greve geral”, Clóvis Rossi, O Estado de S. Paulo, 5 de julho de 1975.

[3] Cf. “Governo argentino reprime a agitação”, Clóvis Rossi, O Estado de S. Paulo, 4 de julho de 1975.

[4] Cf. “O terror ataca em meio à crise”, O Estado de S. Paulo, 28 de agosto de 1975.

[5] Cf. “Argentina ainda tema pela Copa”, O Estado de S. Paulo, 1 de agosto de 1975. Marcos de Castro mencionava o teor de um editorial da revista El Gráfico, expressando dúvidas a respeito da realização do evento. E comentava: “Quando eles mesmos começam a duvidar, os outros – leia-se os europeus – já não têm mais dúvidas de que a Copa não será mesmo lá”. Cf. Coluna “Campo Neutro”, Jornal do Brasil, 1 de agosto de 1975.  

[6] Cf. “Há também as pressões externas”, O Estado de S. Paulo, 24 de agosto de 1975.

[7] Cf. “Pelé mantém decisão e explica as suas razões”, O Estado de S. Paulo, 7 de julho de 1971.

[8] Cf. “Heleno já admite que a Copa pode ser no Brasil”, O Estado de S. Paulo, 17 de setembro de 1975. Cf. “CBD diz que pode organizar a Copa em seis meses”, Jornal do Brasil, 17 de setembro de 1975. Heleno Nunes argumentava que o Brasil possuía as três condições necessárias para abrigar a Copa: estádios, hotéis e comunicação. Ou seja: “no Brasil tudo já está pronto”.

[9] Heleno Nunes foi recebido em Brasília pelo ministro da Educação e Cultura, Nei Braga, para tratar de vários assuntos, dentro os quais, a “possível desistência da Argentina” e as probabilidades de o Brasil “ser o escolhido” para sediar a competição. Cf. “Niterói terá jogos do campeonato”, 23 de setembro de 1975. O encontro com o presidente Ernesto Geisel ocorreria mais adiante, na cerimônia de assinatura do projeto do Fundo de Assistência ao Atleta Profissional. Segundo a cobertura jornalística, os dois conversaram sobre os preparativos do selecionado nacional para a Copa de 78. Cf. “Governo vai criar fundo para atletas”, 15 de outubro de 1975, ambas as matérias publicadas no Jornal do Brasil.

[10] Cf. Coluna: “Campo Neutro”, José Inácio Werneck, Jornal do Brasil, 23 de outubro de 1975.

[11] Cf. “João Havelange faz um ano na FIFA e quer se reeleger”, entrevista ao enviado especial, Sérgio Cavalcanti, Jornal do Brasil, 21 de julho de 1975.

[12] “Havelange afasta Copa do Brasil”, O Estado de S. Paulo, 24 de setembro de 1975. Conforme José Inácio Werneck recordava na coluna no Jornal do Brasil, “Campo Neutro”, 18 de setembro de 1975, as Copas de 1954 e 1958 haviam sido realizadas de forma sequencial na Europa, respectivamente na Suíça e na Suécia. A referida proibição, portanto, era “mais lenda do que realidade”. 

[13] Coluna: “Campo Neutro”, José Inácio Werneck, Jornal do Brasil, 23 de outubro de 1975.

[14] Rocha, Luiz Guilherme Burlamaqui Soares Porto. “A dança das cadeiras: a eleição de João Havelange à presidência da FIFA (1950-1974), tese de doutorado, História, Universidade de São Paulo, 2019, p.303. 

[15] Cf. “Coluna: “Campo Neutro”, José Inácio Werneck, Jornal do Brasil, 23 de outubro de 1975.

[16] Cf. “A Copa no Brasil”, coluna: Zózimo. Caderno B, Jornal do Brasil, 21 de julho de 1975.

[17] Cf. Magalhães, Lívia Gonçalves. “Com a taça nas mãos: sociedade, Copa do Mundo e ditadura no Brasil e na Argentina”. Rio de Janeiro, Lamparina/Faperj, 2014, p.58. 

[18] Giglio, Sérgio Settani. “A história política do Futebol Olímpico (1894-1988)”. São Paulo, Intermeios/ Fapesp. 2018, pp.297-298.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. O roubo da Copa. Ludopédio, São Paulo, v. 142, n. 16, 2021.
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