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O tripé da violência: a culpa não é só das torcidas organizadas

No dia 14 de maio de 2018, os jogadores do Sporting Club de Portugal passaram por maus bocados no centro de treinamento da equipe, que fica na pequena vila de Alcochete, próximo a Lisboa. Quando estavam no vestiário, foram surpreendidos por membros da maior torcida organizada do clube que invadiram o recinto e partiram para a agressão contra os atletas e o próprio treinador. A descrição das cenas dá uma pequena ideia do pânico pelo qual jogadores e treinador passaram naquele dia. O acontecimento chocou a sociedade portuguesa e, de certo modo, os amantes do futebol ao redor do mundo.

Primeira página do jornal O Jogo.
Primeira página do jornal O Jogo: Terror

Os ataques geraram uma nova onda de discussões na imprensa esportiva e junto daqueles que gostam do futebol sobre o papel que as torcidas organizadas ocupam dentro deste esporte. Os motivos que levaram às agressões teriam a ver com os resultados da equipe portuguesa e o desenrolar da não classificação para a Champions League da próxima temporada. O presidente do clube, após o revés contra o Marítimo na última rodada, afastou verbalmente o treinador Jorge Jesus. Mesmo com a equipe classificada para a final da Taça de Portugal. Esta foi apenas mais uma das rusgas entre presidente (Bruno de Carvalho), treinador e jogadores. Bruno de Carvalho chegou a fazer postagens em seu Facebook falando mal dos jogadores na sequência uma reunião realizada entre eles após a derrota do Sporting para o Atlético de Madrid, pela Liga Europa.

Primeira página do jornal A Bola.
Primeira página do jornal A Bola: data marcante na história do clube. Foto: Reprodução.

Tal atitude não agradou os jogadores, que passaram a dar declarações públicas de seu descontentamento para com o afastamento de Jorge Jesus e com as atitudes intempestivas do presidente. O próprio treinador declarou que só voltaria a treinar a equipe se o Bruno de Carvalho renunciasse ao cargo. Mesmo em um país pequeno como Portugal, a imprensa esportiva consegue comportar três jornais desportivos diários (A Bola, O Jogo e o Record). Estes e outros periódicos deram ampla repercussão para o caso, citando até mesmo uma possível greve dos jogadores às vésperas da decisão da Taça de Portugal.

Primeira página do jornal Record: Terror
Primeira página do jornal Record: Terror. Foto: Reprodução.

Após o acontecido, as manchetes dos jornais portugueses retratavam o caso: “Terror”, “O dia mais negro da história do Sporting” e ”A Guerra de Alcochete” foram alguns dos títulos dos jornais portugueses no dia seguinte. O conteúdo das matérias são aquelas que estamos bastante acostumados: vândalos, bandidos, terroristas e toda uma série de adjetivos direcionados não apenas aos que foram os responsáveis pelas ações, mas dirigidos principalmente às torcidas organizadas como um todo. As soluções levantadas são sempre imediatistas e que, sabemos desde há muito tempo, não surtem efeito: acabar com as torcidas organizadas, tirar o apoio que os clubes dão às mesmas, impedir a entrada da torcida organizada nos estádios e por aí vai.

O caso ganha ingredientes complexos quando se levantam suspeitas de que o próprio presidente do clube teria incentivado membros das torcidas organizadas a realizarem o ato para dar uma “lição aos jogadores”. Tais acusações têm sido negadas pelo presidente Bruno de Carvalho.

Capa do jornal Sol a acusar o presidente do Sporting de dar aval para as agressões.
Capa do jornal Sol (Sapo On Line) a acusar o presidente do Sporting de dar aval para as agressões.

Nesta segunda-feira, 23 suspeitos de participarem do ato de agressão foram detidos preventivamente. O Sporting, no último domingo, 20 de maio, perdeu a final da Taça de Portugal para o pequeno Desportivo das Aves por 2 a 1.

O caso leva-nos mais uma vez a tentar refletir sobre os problemas da violência no futebol causado pelas torcidas organizadas. E nos remete a perguntas que parecem não ter resposta. Como acabar com este tipo de violência? Que motivos levam os torcedores a tomarem atitudes como estas? Quais as causas da violência entre torcidas organizadas no futebol?

Particularmente, não acredito nas soluções imediatistas. Em nenhuma delas, pois todas já se mostraram absolutamente ineficazes. Posso recordar das iniciativas do sr. Fernando Capez, nos anos 1990, de simplesmente tentar acabar com as torcidas organizadas de São Paulo, caçar seu CNPJ e tentar impedir a entrada de uniformizados nos estádios. As torcidas mudaram levemente de nome e se cadastraram com outro CNPJ. A Mancha Verde, por exemplo, virou Mancha Alvi Verde. A Torcida Independente passou a se chamar Torcida Tricolor Independente. Não levavam seus uniformes e bandeiras, mas entravam no estádio, se dirigiam para o mesmo setor e cantavam as mesmas músicas.

Podemos nos lembrar da solução mirabolante do “clássico de torcida única” e seus resultados paliativos e as mortes que seguem acontecendo fora dos estádios em dias de clássico, como já destaquei nesta mesma coluna. E o que fazer?

A resposta a um problema que me parece estrutural não pode ser com medidas que não sirvam para justamente alterar a estrutura. Neste caso, vai nos ajudar se refletirmos sobre a violência como um espectro mais ampliado da sociedade e pensar que a mesma não está ligada exclusivamente às torcidas organizadas.

Faça o download do livro.

Para os que realmente querem pensar o problema, uma obra recente publicada por Guilherme Palhares e Gisele Schwartz é um bom começo. O livro “Não é só Torcida Organizada: o que os torcedores organizados têm a dizer sobre a violência no futebol?”, publicado em 2015, se propõe a fazer uma análise da violência no futebol usando como referencial teórico as abordagens do sociólogo norueguês Johan Galtung.

Basicamente, Galtung propõe reflexões sobre três tipos de violência: a direta, a estrutural e a cultural. Palhares e Schwartz adotaram este triângulo da violência para refletir sobre os atos das torcidas organizadas, e para chamar a atenção que os mesmos seriam os responsáveis pela violência direta. Já a violência estrutural estaria ligada à toda a estrutura que envolve a organização do futebol de alta competição e que também deve ser considerada uma violência: o monopólio de determinadas organizações, os jogos em horários inadequados, as péssimas condições de alguns estádios, os ingressos a preços abusivos, a falta de transporte público adequado, o tratamento dado pela polícia a todo e qualquer membro de torcida organizada, a proibição de bandeiras e sinalizadores e por aí vai. A violência cultural estaria ligada aos aspectos culturais que podem contribuir para que os atos violentos sejam legitimados e considerados aceitáveis pela sociedade. Neste caso, o discurso da imprensa esportiva, direcionando quase que exclusivamente sua análise para a violência direta da torcida organizada, contribui para que se perpetue uma abordagem sobre o fenômeno que podemos considerar no mínimo incompleta e que não ajuda a resolver o problema. Muito pelo contrário. Se torcedor organizado é “vândalo travestido de torcedor”, justifica-se que o mesmo seja tratado indiscriminadamente com violência.

Este tipo de abordagem pode nos trazer algumas reflexões interessantes a respeito das perguntas que fizemos anteriormente. Primeiramente, há que se reconhecer que existem vários tipos de violência, não só a direta. E que se existem vários tipos de violência, todas elas devem ser condenadas. Há que se combater os aspectos da violência estrutural e cultural com a mesma veemência que se combate a violência direta. Há que se pensar em como os torcedores se sentem violentados quando têm que assistir um jogo que começa às 22h e que sabem de antemão que não terão transporte público para voltar para casa. Há que se pensar que ingressos a 120 reais são uma violência contra pessoas das classes populares, um processo aberto de exclusão dessas camadas dos estádios. Há que se pensar que se os torcedores organizados forem tratados de maneira violenta, vão agir de maneira violenta.

Mas e as soluções? Passar os jogos para horários mais adequados e cobrar ingressos mais baratos vão resolver o problema? Creio que não. Estas medidas devem ser tomada em conjunto com outras que devem ter por objetivo fazer os torcedores perceberem que os mesmos são importantes para o espetáculo e para o clube em si. Um dos exemplos que mais me chama a atenção vem da Alemanha. Neste país as torcidas organizadas promovem festas lindas dentro do estádio. Existem clubes que cedem para estas torcidas espaços dentro do próprio estádio para guardar seus materiais e até mesmo desenvolverem atividades comerciais dentro deles, com a condição de que não se envolvam com atos de violência. As bandeiras, os mosaicos, os sinalizadores, as fumaças, os instrumentos são permitidos durante os jogos, bem como o consumo de bebidas alcoólicas.

Isto garante que a violência acabe? Obviamente que não. Vivemos em uma sociedade permeada de violência, de desigualdades, de exploração, de ódios direcionados a grupos populacionais específicos (homossexuais, imigrantes, negros). Não seria no esporte que move multidões e paixões exacerbadas que teríamos um conto de fadas.

No entanto, tais atitudes de aproximação entre os clubes e suas torcidas organizadas podem trazer um novo modo de operação, uma concepção de pertencimento e de responsabilidade do clube e da torcida. Se o Estado intervir de maneira menos violenta, sem usar o Ministério Público como mero proibidor da festa e caçador de torcedores, talvez possamos melhorar a relação das torcidas com a polícia, por exemplo.

A única certeza que tenho, após anos e anos frequentando arquibancadas das mais diferentes e estudando um pouquinho sobre o tema, é que o assunto é muito complexo. E para problemas complexos, soluções simplistas não levam a lugar algum. Pior, podem levar a potencializar os casos de violência direta, aquela mais visível e que fica direcionada inteiramente às torcidas organizadas.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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João Malaia

Historiador, realizou tese de doutorado em História Econômica pela Universidade de São Paulo sobre a inserção de negros e portugueses na sociedade carioca por meio da análise do processo de profissionalização de jogadores no Vasco da Gama (1919-1935). Realizou pós doutorado em História Comparada na UFRJ pesquisando as principais competições internacionais esportivas já sediadas no Rio de Janeiro (1919 - 2016). Autor de livros como Torcida Brasileira, 1922: as celebrações esportivas do Centenário e Pesquisa Histórica e História do Esporte. Atualmente é professor do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e atua como pesquisador do Ludens-USP.

Como citar

SANTOS, João Manuel Casquinha Malaia. O tripé da violência: a culpa não é só das torcidas organizadas. Ludopédio, São Paulo, v. 107, n. 23, 2018.
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