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Os conflitos nos Balcãs a partir dos personagens que escreveram algumas das páginas mais sangrentas da história do futebol

Dínamo Zagreb Estrela Vermelha
13 de maio de 1990, o Dínamo Zagreb recebia o rival Estrela Vermelha. Há 30 anos, um jogo de futebol fazia com que estourasse o pior conflito em solo europeu desde a 2ª Guerra Mundial. Foto: Reprodução Twitter

Você provavelmente já leu algo sobre a fatídica partida de 13 de maio de 1990, realizada em Zagreb entre o Estrela Vermelha (Belgrado) e o Dinamo (Zagreb) que foi o estopim da Guerra dos Balcãs. Possivelmente tem em mente a voadora de Boban em um guarda, no entanto, o futebol entra em cena não somente por conta do referido jogo, mas especialmente por conta de personagens que foram protagonistas da Guerra. Slobodan Milošević, conhecido como “o carniceiro dos Balcãs”, e Franjo Tuđman, líderes sérvio e croata respectivamente, eram homens ligados ao futebol. Outro personagem importantíssimo é o criminoso de guerra Željko Ražnatović, o Arkan, líder de uma torcida organizada do Estrela Vermelha a qual se tornaria a tropa de choque de Milošević, auxiliando em seu plano de limpeza étnica e genocídio. De forma dramática ainda há outros dois personagens importantes, Alija Izetbegović, líder da Bósnia e Herzegovina  e por Ratko Mladic o “açougueiro da Bósnia.    

É bem verdade que os Balcãs eram um barril de pólvora prestes a estourar, aliás, suas raízes históricas já preludiavam isso. A Iugoslávia surgiu como Estado soberano após a Primeira Guerra Mundial, especificamente com o desmembramento do Império Austro-húngaro em 1918 com o nome de Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos. Já em 1929, foi adotada a denominação de Reino da Iugoslávia, que era liderado por uma monarquia controlada pelos sérvios. Permanecendo assim até 1941, por ocasião da invasão dos nazistas, funcionando como um Estado aliado, na verdade sob controle nazista, sendo administrado por nacionalistas croatas. Período que será retratado em um dos próximos textos, para refletir sobre a afeição dos croatas pelo nazismo e como o futebol explicita isso.   

O período nazista foi breve, mas deixou marcas profundas, acirrando ainda mais os ânimos. Os nazistas foram expulsos pelos partisans soviéticos, assim, a Iugoslávia passou para a administração comunista, sob a gestão de um croata, Josip Broz Tito, que sob mão firme e lealdade ao comunismo e não aos nacionalismos presentes, fez com que os ressentimentos se mantivessem vivos. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, a união de seis repúblicas (Sérvia, Eslovênia, Croácia, Bósnia e Herzegovina, Montenegro e Macedônia), e de duas províncias autônomas (Kosovo e Vojvodina) formou a República Federativa Socialista da Iugoslávia.

Foi justamente com a morte de Tito na década de 1980 e o colapso do modelo socialista, que os nacionalismos se acirraram e os ressentimentos deram o tom da condução dos atos nos Bálcãs. 

No início dos anos 1990, os debates separatistas estavam em seu auge. É aqui que retomamos com nossos personagens ligados ao futebol.

Franjo Tuđman tornara-se diretor no clube ainda no início da década de 1980, sendo presidente do NK Dinamo Zagreb por um breve período no início da década seguinte, fazendo do time um baluarte do nacionalismo croata. Em jogos do Dínamo, a torcida exibia cantos de ofensa aos sérvios, muitos deles relembrando episódios em que os nazistas, com o apoio croata, reprimiram os sérvios. Mais tarde seria o primeiro presidente da Croácia, ficando no poder de 1990 à 1999, ano de seu falecimento.

Usou o clube para manter o nacionalismo croata vivo, contando especialmente com o apoio da principal torcida organizada do Dinamo Zagreb, os ultras Bad Blue Boys – BBB –. Foram os BBBs a tropa de choque de Tuđman durante a guerra.  

Franjo Tudjman
Franjo Tudjman, sentado ao centro, assinando o Acordo de Dayton. Foto: Wikipédia

Um fato interessante é que o clube que fora seu ponto de apoio, mais tarde, serviu para basear sua oposição. Chris Stéphenin (1999) mostra que isso ocorreu especialmente quando Tuđman tentou trocar o nome da agremiação de Dinamo Zagreb para Croácia Zagreb – nós estrangeiros saudosistas lembramos desse período, entretanto, o nome foi pouquíssimo utilizado na Croácia –, o presidente alegava que o nome Dinamo era ligado ao comunismo – o que é um fato – e logo, o nome Croácia Zagreb representaria a nação. A ideia foi fortemente rechaçada pela torcida, mesmo assim, em 1991, por um breve espaço de tempo, o clube se chamou oficialmente Croácia Zagreb. Os torcedores não gostaram nem um pouco, defendendo o nome tradicional, alegando que o Dinamo era da Croácia e não dos comunistas. Um dos opositores do presidente croata foi Zdravko Tomac, então vice-presidente do Dinamo.  

Do outro lado, a figura de Slobodan Milošević também tem uma ligação íntima com o futebol. Fora diretor do FK Estrela Vermelha antes de se tornar primeiro-ministro da Iugoslávia, sendo assim, não só era próximo de sua torcida, mas também conhecia como poucos sua força.

Sim, se você é um leitor que conhece o futebol sérvio irá se perguntar por que o Estrela Vermelha e não o FK Partizan Belgrado? Por dois motivos: um deles é o surgimento dos clubes, o Estrela Vermelha foi fundado e patrocinado pela polícia iugoslava, o Partizan era o time oficial do exército na Iugoslávia, sendo o time favorito do marechal Tito que reprimia toda ação do nacionalismo sérvio – O nome Partizan refere-se ao Exército Popular da Libertação da Iugoslávia, que lutou na Segunda Guerra Mundial contra as forças do Eixo nos Bálcãs, os Partizans eram os soldados que lutaram contra a dominação nazista nos Bálcãs –; o outro motivo é que os torcedores do Estrela Vermelha expressavam um fervor nacionalista sérvio desde a década de 1980. Era comum cânticos como “Sérvia sim, Iugoslávia não”.

Slobodan Milošević
Slobodan Milošević com Bill Clinton em 1995. Foto: Wikipédia

Milošević usou o futebol a seu favor desde antes de ser o mandatário do país, sabia que para seu empreendimento bélico, precisava antes, travar uma batalha no campo simbólico, nada melhor que o esporte das multidões. Fez com que a torcida do FK Estrela Vermelha de Belgrado jogasse a seu favor.

Com a guerra já deflagada, não coincidentemente tendo uma partida de futebol como seu ponto inicial, iniciando um dos eventos mais sangrentos de nossa história recente, entra em cena o outro personagem, Željko Ražnatović, o Arkan, até então líder de uma ala da torcida do Estrela vermelha.

A história de Arkan precede os acontecimentos da Guerra dos Balcãs na qual fora dramaticamente protagonista. Seu nome era bem popular entre criminosos na década de 1980, tanto que fora proibido de acompanhar jogos fora da Iugoslávia desde meados da década citada, mas claro, seus crimes não se restringiam a violência em jogos de futebol e xenofobia. Akan era traficante. E então o leitor pergunta: De quê? Várias coisas, desde cigarro até mesmo pessoas, tanto que Misha Glenny (2008) em seu McMáfia, uma espécie de biografia do crime organizado europeu, dedica a ele diversas páginas – o premiado livro virou série na Amazon –, Arkan fez fama por escapar de autoridades policiais europeias, na medida que mesmo proibido e condenado por diversos crimes, ia aos jogos e seus relatos de fuga “viralizavam”, o tornando uma espécie de herói entre os sérvios.

Arkan já havia reestruturado uma ala da torcida do clube, trocando o nome de “Ciganos” – um insulto dos adversários que havia sido adotado, tal como acontece com diversas torcidas – para Delije’s, que significa heróis em um dialeto local. Arkan adotou uma disciplina militar na torcida, fez com que os torcedores cortassem os cabelos, se barbeassem e não bebessem em dia de jogos. Assim ganhou o respeito de todos, tanto de dirigentes quanto dos torcedores.

O personagem em questão já atuava desde a década de 1980 como guarda pessoal de Milošević, ao estilo gângster, em nosso contexto, um capanga. Com a guerra, ele continuou com a função, agora, com medidas ainda mais drásticas. Os Delije’s foram recrutados para se tornarem os “Tigres”, milícia armada durante a Guerra dos Balcãs. Há diversos vídeos no YouTube que mostram desde treinamentos até mesmo a ação da milícia durante a guerra, suas ações resultaram em inúmeros crimes de guerra, enquanto a isso uma pergunta necessária: Por qual motivo se fez o uso de uma milícia e não o exército? A pergunta nos faz pensar no teor das ações dos “Tigres”, eram chamados para atuar quando até mesmo o violentíssimo exército era poupado por conta do teor da violência, eles, os “Tigres”, chegavam antes das tropas ou a substituía, promovendo verdadeiros massacres.    

Túmulo Željko Ražnatović
Túmulo de Željko Ražnatović na Sérvia. Foto: Wikipédia

Os desdobramentos dos conflitos nos Balcãs se estenderam e outros dois personagens são fundamentais para a compreensão do que ocorrera na região, são eles Alija Izetbegović, primeiro presidente da Bósnia e Herzegovina, cargo que ocupou até 1996, quando passou a fazer parte da presidência do país – em um sistema com três presidentes ao mesmo tempo –, onde ficou até 2000. O outro, Ratko Mladic, conhecido como o “açougueiro da Bósnia”, comandante do Exército sérvio durante a Guerra da Bósnia (1992-1995), condenado por genocídio, crimes contra a humanidade e por ter promovido uma “limpeza étnica” na região ao ter realizado a mais brutal atrocidade em solo europeu desde a Segunda Guerra Mundial

Sim, e o futebol?

Izetbegović não se utilizou diretamente do futebol, não que o futebol já não fosse um esporte amplamente popular na região. Entretanto, há um fato muito importante no desenrolar da guerra que envolve o esporte. Em 1993 um ataque sérvio, liderado por Ratko Mladic, bombardeou Sarajevo, especificamente uma partida de futebol com crianças, onde 11 pessoas morreram, estando 4 crianças entre os mortos e 100 ficaram feridas. A maioria das pessoas se feriram no segundo ataque, quando foram ajudar as vítimas do primeiro. Outro fato que envolve o futebol é que Edin Dzeko passou por algo parecido, tendo a rua de casa bombardeada, seus amigos que jogavam futebol foram mortos, no dia, como raríssima exceção, Dzeko não saíra pra jogar por conta da advertência e da precaução de sua mãe, este último exemplo é para mostrar como a situação estava violenta no período, Sarajevo fora “apelidada” de “cidade dos cemitérios” e como o futebol continuava presente na vida cotidiana das pessoas mesmo em meio ao caos. 

Mladic não tinha tempo para o futebol, se dedicava aos massacres étnicos, mesmo assim, sua figura é exaltada pelos nacionalistas sérvios ligados ao futebol até nossos dias. A torcida do Estrela vermelha de Belgrado, a Delije’s, sim, a mesma de Arkan, entoa cânticos em homenagem a Mladic até hoje o tratando como um herói nacional. Tratar o genocida Mladic como herói não é exclusividade do Estrela vermelha, é algo corriqueiro no futebol sérvio. Como exemplo, em jogo válido pela UEFA Europa League em 2019 contra o AZ Alkmaar torcedores do Partizan Belgrado fizeram demonstrações de apoio ao genocida ostentando símbolos de extrema direita e cartazes em homenagem ao “açougueiro de Sarajevo”, após o jogo, não satisfeitos, viajaram para Haia para demonstrar seu apoio do lado de fora da unidade de detenção da ONU, onde o chefe militar sérvio está sob custódia. Não obstante, jogadores do FK Kabel, da cidade de Novi Sad, que joga na liga provincial da Vojvodina, entraram em 2017 com camisas com fotos de Mladic. Ainda como último exemplo, no mesmo ano, a torcida do Zenit Saint Petersburg, da Rússia, em partida contra o FK Vardar da Macedônia, pendurou uma faixa com o slogan “Ratko Mladic – Herói da Sérvia”. Assim, é possível constatar que o futebol é palco para cultuar a memória dos massacres nos Balcãs.

General Ratko Mladić. Foto: Wikipédia

Esses fatos envolvem algumas das páginas mais sujas da história do futebol! Não tem como relativizar seu protagonismo nos conflitos nos Balcãs, nem antes, durante ou depois da fase mais dramática, para se pensar os conflitos, é necessário pensar como o futebol se encontra envolvido.

Futebol que ajudou a abrir as feridas na região e faz com elas ainda estejam abertas até nossos dias. Ele, o futebol, não é uma coisa que está fora da sociedade e é utilizado em determinados momentos, faz parte dela ativamente, em seus bons e maus momentos. No caso explicitado, nos piores também.

 

Referências bibliográficas

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HOFMAN, Gustavo. Lado B da Copa: Dzeko, o diamante bósnio que sobreviveu ao inferno. ESPN Brasil, São Paulo, 11 Junho 2014. cesso em: 02 de março de 2021.

LINDGREN, Augusto. Os Bálcãs novamente esquecidos. Revista Brasileira de Política Internacional, v. 47, n. 1, p. 55-83, jan.-jun. 2004.

MURPHY, Patrick; WILLIAMS John; DUNNING, Eric. O futebol no banco dos réus: violência dos espectadores num desporto em mudança. Oeiras, Portugal: Celta Editora, 1994.

NARCIZO, Makchwell. Dos campos de futebol para os campos de batalha: uma análise da Guerra dos BálcãsRevista Fulia.  v. 2, n. 2 (2017). 

RUDIC, Filip. Serbian Football Fans Show Support for Ratko Mladic. balkaninsight, Belgrado, 27 Novembro 2017. Acesso em: 02 de março de 2021.

STEWART, Christopher. Hunting the tiger: the fast life and violent death of the Balkans’ most dangerous man. New York: St. Martin’s Press, 2008.


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Makchwell Coimbra Narcizo

Doutor em História pela UFU, Graduado e Mestre em História pela UFG. Atualmente professor no IF Goiano - Campus Trindade. Desenvolve Estágio Pós-Doutoral na PUC Goiás. Membro do GEPAF (Grupo de Estudos e Pesquisa Aplicados ao Futebol - UFG). Coordenador do GT Direitas, História e Memória ANPUH-GO. Autor dos livros: A negação da Shoah e a História (2019); A extrema direita francesa em reconstrução - Marine Le Pen e a desdemonização do Front National [2011-2017] (2020) dentre outros... isso nas horas vagas, já que na maior parte do tempo está ocupado com o futebol... assistindo, falando, cornetando, pensando, refletindo, jogando (sic), se encantando e se decepcionando...

Como citar

NARCIZO, Makchwell Coimbra. Os conflitos nos Balcãs a partir dos personagens que escreveram algumas das páginas mais sangrentas da história do futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 141, n. 24, 2021.
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