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Outros olhares sobre o estallido social chileno e o futebol

Fabio Perina 30 de janeiro de 2020

Mais de três meses que os protestos se acumulam no país andino obriga que os observadores permaneçam atentos a suas repercussões incandescentes. Outro artigo neste mesmo espaço trouxe uma importante síntese dos primeiros dois meses, desde 18 de outubro, e seus impactos no futebol: o estopim da revolta através do encarecimento dos transportes, o papel ativo das barras de futebol lutando lado a lado dos trabalhadores e a desorganização dos clubes e da federação local (ANFP) para tentarem retomar as partidas de futebol e definir o desfecho de um campeonato interrompido.

A retomada das partidas somente no fim de janeiro motivou-me a atualizar essa cobertura junto a uma maior tematização dos discursos divulgados no Facebook pelas páginas das principais barras e de outras páginas que articulam futebol e política como Futbol Rebelde e Revista Obdulio.

Vale acrescentar como antecedentes da revolta que o futebol é estruturado desde 2005 pela Ley de las Sociedades Anónimas Deportivas Profesionales e desde 2011 pelo Plan Estadio Seguro, respectivamente, dois mecanismos para excluir os sócios das decisões dos clubes e proibir os torcedores de suas manifestações festivas.

A figura pessoal do presidente autoritário Pinera articula ambas: primeiro, como empresário deixou seu passado de simpatizante da Universidad Católica para comprar o rival Colo-Colo; e, depois, como presidente em seu primeiro mandato lançou este plano repressivo com a sempre promessa cínica de “devolver os estádios às famílias” (mas somente àquelas que consomem…).

Presidente do Chile Sebastian Pinera. Foto: Pr.Chile via Fotos Públicas.

Há um posicionamento muito difundido entre pesquisadores e militantes diversos que o futebol foi, com essas medidas, o último bem a ser privatizado no país após décadas de “laboratório” neoliberal desde a ditadura militar diante de vários direitos privatizados como saúde, educação e previdência, os quais produziram uma brutal desigualdade socioeconômica.

A refundação da Plaza Italia em Plaza Dignidad reflete essa crítica popular generalizada. Em outubro, a pauta imediata do transporte serviu para incendiar esse amplo questionamento e contestação que abasteceram a longa duração dos protestos tendo como uma das principais consignas (palavras de ordem) dentre outras que irei aqui tematizar a seguir: “Chile será la tumba del neoliberalismo”.

Uma nova consigna que se somou às tradicionais faixas e pichações “ni perdon ni olvido” contra a ditadura militar por ver o atual regime como sua continuidade e não sua ruptura.

Perdimos mucho tiempo peleando entre nosotros”: as maiores demonstrações de organização das barras foram estarem lado a lado protestando com suas camisetas e bandeiras nas ruas Santiago e demais cidades. Cuja atuação, como primeira linha, foi fundamental para que as forças repressivas de Pinera não dispersassem e abreviassem as manifestações. E também ao declararem, durante todo o mês de novembro, usar todos os meios possíveis para impedir o retorno das partidas. Como de fato um grupo da Garra Blanca do Colo-Colo conseguiu interromper e suspender uma partida.

Nos quieren solo viendo el fútbol pero nos cegan”: já esta consigna expressa a contradição das autoridades, dirigentes e jornalistas querem com a volta do futebol e para que seus torcedores apenas se distraiam, mas não participem, enquanto cerca de 300 pessoas perderam a visão de um olho por carabineros (‘pacos’). Tapando um olho com uma mão para representar em campo os protestos foi a principal forma de apoio da maioria dos jogadores do futebol local e até ídolos da seleção como Bravo, Medel e Aranguiz. Se já não é de hoje esse apoio frequente de jogadores da Roja a professores e estudantes vistos ao entrarem em campo em mundiais anteriores, como conquista mais imediata diante do estallido social conseguiram cancelar o amistoso que fariam com o Peru como uma demonstração de força contra os dirigentes.

Manifestações no Chile. Foto: Colectivo +2/Carlos Vera M.

Calles con sangre, canchas sin fútbol”: ainda que a práxis de esquerda mais recente seja aproveitar o efeito divulgação que o estádio proporciona para diversas causas, dessa vez o posicionamento tem sido mais inovador e radical. Pois coloca futebol e política ainda mais indistinguíveis. No sentido que a crise de legitimidade do governo e do regime como um todo se acelerou de tal forma que necessitavam apressar a volta do futebol para dar uma sensação de normalidade. O que vários militantes rechaçaram por outro posicionamento de que somente deveria voltar a ter futebol após reformas concretas tanto nele próprio como na política como um todo. Em suma, gritos e faixas de protestos nos estádios são muito válidos, mas que a luta precisou dar um salto a mais pois as hinchadas como povo organizado têm a possibilidade real de paralisar ou não os torneios!

Pouco antes de retomar as semifinais da Copa Chile, a ANFP anunciou a criação de uma Tropa de Elite de segurança privada somente para evitar novas invasões nos estádios. As já existentes fardas verdes de carabineros responsáveis por tantos abusos aos torcedores em geral ficarão agora lado a lado com as fardas escuras nesse remake insano do filme brasileiro de mesmo nome diante do desespero do governo Pinera e da ANFP em intimidá-los. É um momento de precaução pois enquanto as barras resgataram muita legitimidade diante da solidariedade muito forte com os demais militantes, é agora o momento mais sensível que governo, dirigentes de futebol e meios de comunicação tentam convencer a opinião pública de deslegitimá-las novamente sob acusações de vandalismo pelas vias públicas diante dos conflitos com carabineros nos protestos.

Como diz uma tradicional consigna tirada da música cumbia: “Ya van a ver… las balas que nos tiraron van a volver”. É a aposta numa tentativa de fazer a violência direta como o vandalismo pode causar mais indignação do que a violência estrutural, tal como a precarização generalizada causada pelo neoliberalismo. Justamente a crítica que abastece a duração e a intensidade do estallido social.

Por fim, a Copa Chile teve seu desfecho na metade final de janeiro em jogos únicos em campo neutro. Em Temuco, o Colo-Colo eliminou nos pênaltis o atual campeão da liga, a Universidad Católica. E em La Serena, a Union Española desistiu de entrar em campo cedendo a vaga na final (junto da última vaga para a pré-Libertadores) para a Universidad de Chile. Na final em Temuco, o superclássico entre albos e azules manteve dentro de campo a normalidade: mais uma vitória e título para o supercampeão Cacique (que a propósito já leva quase 20 anos sem perder para o rival no estádio Monumental!).

O que apenas ocorreu fora da normalidade foi a ampla manifestações de ambas hinchadas cantando a plenos pulmões: “Pinera / la conchatumadre / asesino / igual que Pinochet”. O que se espera que continue toda semana desde o retorno da liga nacional no final de janeiro até a Assembleia Constituinte em abril.

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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. Outros olhares sobre o estallido social chileno e o futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 127, n. 31, 2020.
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