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“Páginas heroicas imortais”: os 15 anos da “tríplice coroa” comandada por Alex

“A memória é o elo entre o passado e o presente. Entre o corpo e a alma.” (TOSTÃO, 2016, p.194)¹

Qualquer um que aprecie o futebol bem jogado se recorda do esquadrão cruzeirense de 2003. Em uma temporada impecável, a equipe mineira conquistou as três competições que disputou: Campeonato Mineiro, Copa do Brasil e Campeonato Brasileiro, configurando assim o título simbólico da “tríplice coroa”.

No próximo dia 26/11, apenas 4 dias antes da data exata em que se completa os 15 anos da tríplice coroa celeste, Alex e o escritor Anderson Olivieri estarão juntos em Belo Horizonte para o lançamento do livro 2003: a tríplice história de um time mágico. Confesso que não contive a ansiedade e resolvi relembrar o ocorrido com base em três relatos de grandes figuras do Cruzeiro. E. C: Tostão, Dirceu Lopes e o próprio Alex.

A construção da imagem mítica

Reprodução Instagram @alexfc10

Para além da incontestável temporada aclamada pela crítica esportiva, pela torcida e por seus pares, o caminho da construção e consolidação de Alex como um ídolo eterno do Cruzeiro passa pelo aval edificante de dois consagrados craques que figuram no mais alto escalão de prestígio da história do clube mineiro.

Nada mais nada menos que Dirceu Lopes, em sua biografia de 2014, relembra com carinho o feito da Raposa, sem se esquecer da associação automática entre a equipe e seu astro principal: “Bati palmas para o espetacular time de 2003. Aquela camisa 10 azul caiu divinamente no Alex, um dos grandes meias que vi passar pelo Cruzeiro.” (BLANK, 2014, p.340)²

Em seu livro recheado de relatos autobiográficos, o genial jogador, cronista, médico e professor, Tostão (que em diversas oportunidades nunca deixou de elogiar Alex publicamente), disse o seguinte:

“Muitos não entenderam […] a grandiosidade do talento de Alex. Assim como os grandes pintores impressionistas iam para os campos abertos à espera do brilho ideal da luz para fazer suas obras-primas, Alex esperava o momento certo do jogo para mostrar seu talento.” (TOSTÃO, 2016, p. 126).

As citações deixam claro que, seja na lembrança de Dirceu (onde falar de 2003 e de Alex se torna a mesma coisa), seja na citação de Tostão (onde o futebol encontra na arte suas metáforas), a construção do panteão de ídolos de um clube passa pelo que os antecessores consagrados dizem sobre os novos protagonistas. No caso da equipe mineira, a relação entre os três ícones foi sempre de mútua admiração e respeito, consolidando assim uma imagem legitimadora de suas próprias posições.

Capitão, protagonista e maestro

Sim, toda a campanha de 2003 foi comandada por Alex, não é um exagero. O elenco do técnico Vanderlei Luxemburgo possuía uma peça chave, que servia de referência ao esquema tático e aos demais jogadores. Tratava-se de Alexsandro de Souza, mais conhecido como Alex, para os íntimos: “o Talento Azul”³. O meia que fora revelado pelo Coritiba F.C. e brilhara no Palmeiras no final da década de noventa e início dos anos 2000 não passava pelo melhor momento de sua carreira. Após um longo período de inatividade, imbróglios jurídicos e frustrações, o craque contou com a aposta e a confiança do técnico para fincar raízes em Belo Horizonte.

Obviamente, Alex não ganhou tudo sozinho. O elenco, como um todo, era muito completo: Aristizábal, David, Mota, Wendel, Maldonado, Maurinho, Luisão, Gomes e cia. Mesmo com diversas saídas de jogadores importantes ao longo da temporada (Marcelo Ramos, Luisão, David etc.), os substitutos correspondiam às expectativas de Luxemburgo. Isso não impede de afirmarmos que Alex era o cérebro da equipe. O próprio Alex confessa, em sua biografia publicada pela editora Planeta, em 2015, que: “O único time em que joguei montado exclusivamente para girar em torno de mim foi o Cruzeiro de 2003. […] eu era a peça central.” (NEVES, 2015, p.111)4.

Ainda na mesma obra de Neves, conduzida de forma a dar notoriedade aos depoimentos dos personagens principais da trajetória de Alex, seus companheiros de equipe reafirmam sua centralidade. Cris, importante zagueiro e antecessor de Alex como capitão da equipe, relata o protagonismo de Alex: “A gente sabia que o ’Talento‘ resolveria para nós. […] Era só jogar nele que ele ganhava a partida.” (NEVES, 2015, p.120). Para Zinho, o veterano tetra campeão do mundo em 1994, que veio a Belo Horizonte para ser o reserva de Alex durante aquele ano: “O Alex conseguiu juntar duas lideranças positivas: a do cara que joga e a de quem dá o exemplo. […] Horário, desempenho, conduta.” (NEVES, 2015, p.117).

Segundo dados da mesma biografia, Alex jogou 63 partidas naquele ano, somando incríveis 39 gols e 40 assistências. Venceu a Bola de Ouro da revista Placar, como melhor jogador da competição, além de vencer também a Bola de Prata, como melhor meia. A equipe celeste mantém até hoje diversos recordes da era de pontos corridos. Entre eles, os 100 pontos alcançados na competição e o melhor aproveitamento de um campeão na série histórica; 72,5%5.

“Eu vejo alguns vídeos e era sacanagem, dava tudo certo” (NEVES, 2015, p.119). Para ilustrar o relato de Alex, deixo três link6 de gols e atuações, um de cada campeonato vencido pela Raposa sob o comando do “Talento Azul”.

Daiane Mauad, a melhor amiga de Alex

Alex, Daiane e seus filhos ao lado de sua estátua em Istambul / Reprodução Instagram @alexfc10

Longe das lentes midiáticas, a esposa e melhor amiga de Alex, “Dai”, ganha o protagonismo merecido nas linhas de sua biografia.

Antes de discorrer sobre isso, abro um parêntese para uma observação. O mais interessante dos relatos biográficos ou autobiográficos de grandes estrelas, como Alex, está nas entrelinhas entre os sucessos e os fracassos, nos acontecimentos por detrás dos holofotes. Alex sempre deixou claro em entrevistas que o extracampo e as relações pessoais dos jogadores são de fundamental importância para o desempenho destes. Para ele, a crítica esportiva muitas vezes renega totalmente essas esferas. Cronistas relatam a “falta de vontade”, a “apatia” e o “sumiço” de alguns jogadores durante algumas exibições como se a atuação dependesse única e exclusivamente de sua capacidade técnica. Obviamente, o olhar da crítica pode, por desconhecimento, ignorar estas questões pessoais, mas, em sua carreira atual de comentarista, Alex frisa a importância de ponderar, antes de afirmações sérias, o possível peso de um olhar unilateral da análise sobre a atuação dos atletas. Dito isto, voltemos ao apoio familiar fundamental na carreira do meia.

Nos relatos do jogador, fica evidente o apoio incondicional e a sustentação racional, emocional e motivacional que Daiane teve em toda a trajetória brilhante do jogador. Lado a lado, desde a época em que se conheceram, em Curitiba, na fase difícil no Parma e pós-Copa de 2002, na escolha de voltar ao Cruzeiro em 2003. Daiane esteve presente nos momentos mais difíceis, nas decisões mais arriscadas e também nas alegrias da vida e da carreira de Alex. Sem Super-Daiane, não teríamos o Super-Alex.


Referências:

¹ TOSTÃO. Tempos vividos, sonhados e perdidos: um olhar dobre o futebol. Tostão – 1ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

² BLANK, Pedro. O príncipe: a real história de Dirceu Lopes. Pedro Blank – 1ª ed. – Belo Horizonte: Asa de Papel, 2014.

³ Apelido inventado, como de costume, pelo célebre narrador Alberto Rodrigues, figura tradicional da cobertura esportiva pelo rádio em Belo Horizonte. O Vibrante, como é conhecido, narrou todas as conquistas importantes do Cruzeiro E.C. desde 1966 e ainda atua nos dias de hoje.

4 NEVES, Marcos Eduardo. Alex, a biografia. Marcos Eduardo Neves – 1ª ed. – São Paulo: Planeta, 2015.

5 A série A do Campeonato brasileiro de 2003, assim como a dos dois anos seguintes, não tinha o formato atual. Em 2003 e 2004 foram 24 equipes participantes, ou seja, 8 jogos a mais, o que torna mais inteligível a marca dos 100 pontos. Porém, esses dados fomentam ainda mais o absurdo aproveitamento da equipe mineira durante a competição.

6 15/02/03, Cruzeiro 4 x 2 Atlético:

08/06/03 Flamengo 1 x 1 Cruzeiro:

07/12/03, Cruzeiro 5 x 2 Fluminense:

 

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Matheus Marinho

Graduado em Ciências Sociais e pesquisador vinculado ao Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes (FULIA), da Faculdade de Letras da UFMG.

Elcio Loureiro Cornelsen

Membro Pesquisador do FULIA - Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes, da UFMG.

Como citar

MARINHO, Matheus; CORNELSEN, Elcio Loureiro. “Páginas heroicas imortais”: os 15 anos da “tríplice coroa” comandada por Alex. Ludopédio, São Paulo, v. 113, n. 22, 2018.
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