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Panorama sobre a inserção das mulheres no futebol amador: um olhar sobre a Copa Centenário de Futebol Amador Wadson Lima (BH)

Uma partida de futebol começa efetivamente a partir do pontapé inicial que é dado na bola. Fazendo uma análise atenta de um jogo é possível identificar aspectos que fazem parte de uma dimensão mais subjetiva do esporte e que vão além de jogadas e lances originados dos movimentos corporais, que podem ser compreendidas enquanto os sentimentos que o permeiam. Menos objetivos que as jogadas presentes no baile de corpos em campo, é possível identificar sentimentos diversos que também são constituintes dele. Talvez diante desse panorama atual de pandemia, em que nossos corpos foram distanciados dos campos, das quadras e do contato coletivo, aflorou-se uma outra perspectiva de olhar o futebol (e o mundo), em que nos é possível sentir com os olhos e ver com o coração. E que falta o esporte e o lazer nos fazem!

Pensando sobre o futebol e em suas múltiplas possibilidades de expressão, me ocorreu que em muitas situações há um elemento bastante subjetivo presente nele e que é possível ser identificado no jogo, em especial nos momentos em que há a expectativa de que algo bom aconteça. Esse elemento pode ser denominado como esperança.

É possível identificar a sua manifestação na iniciação da prática quando o jogador ou a jogadora espera aprender os movimentos básicos ou uma nova jogada do melhor modo possível; também podemos identificá-la entre praticantes que estão em um estágio mais avançado, quando a esperança está direcionada ao desejo de fazer jogadas mais difíceis e belas. E, durante uma partida, de modo singular naquelas mais desafiadoras, a esperança também se faz presente. Dentro de campo, ela acompanha jogadores e jogadoras, e fora dele a esperança é combustível das torcidas, que almejam, entre outros objetivos: alcançar a vitória; não perder a partida; permanecer no campeonato, ou se ganhar não for mais uma possibilidade, ainda resta na esperança, o desejo de que ao menos a derrota não seja um grande vexame.

Semanticamente, a palavra esperança reserva um grande poder, uma vez que seu significado nos conduz à possibilidade de acreditar em tempos melhores. Ela comporta a capacidade de absorver nossas frustrações em relação ao presente, e ao mesmo tempo, nos alimenta com a possibilidade de acreditar que o futuro poderá ser melhor. A esperança é poderosa! E em algumas situações auxilia gerações a seguirem na busca de seus direitos. Focando na presença de mulheres no futebol, durante décadas, e ainda hoje, se faz necessário buscar possibilidades de garantir a inserção e a permanência delas nessa modalidade, e haja esperança para tal! 

Revisitando alguns estudos relacionados à história do esporte, é marcante como, no Brasil, ao longo do século XX, a presença das mulheres foi controlada e em algumas situações, legalmente proibida[i]. Direcionados por princípios como a constituição de determinados padrões de comportamento e de beleza para o corpo feminino, decisões políticas foram tomadas no setor esportivo e distanciaram várias gerações de mulheres da possibilidade de escolherem quais práticas esportivas gostariam de realizar. O futebol encontrava-se entre as modalidades que por décadas teve sua prática interditada para as mulheres.

Bonfim (2019)[ii], evidencia que, no Brasil, a presença de mulheres praticando o futebol é identificada no começo do século XX, sendo observada a iniciação feminina nessa modalidade na década de 1910. Ao longo das décadas seguintes, essa participação foi se ampliando, sendo observada também no circo a presença do futebol feminino, que era realizado como espetáculo circense e contava com a participação de jogadoras-atrizes nos picadeiros. Em 1941, durante o governo de Getúlio Vargas, em um contexto de controle e centralização do esporte brasileiro, foi publicado o Decreto-Lei 3199/41, que estabeleceria as bases da organização do esporte no Brasil. Além de instituir o Conselho Nacional de Desportos (CND), entre outras decisões, também indicava em seu artigo 54, que as mulheres estariam proibidas de praticarem os esportes que fossem considerados “incompatíveis com as condições de sua natureza”[iii]. estando entre estes, o futebol. Ainda que naquele momento o decreto não denominasse explicitamente os esportes proibidos, atribuição que ficou a cargo do Conselho Nacional de Desportos (e que foi publicada em 1965, por meio da Deliberação Nº 7 do Conselho Nacional de Desportos) [iv], implicitamente o futebol estaria enquadro entre os esportes proibidos.

Contudo, ainda que houvesse esse impedimento que perdurou até o ano de 1979, quando conforme Goellner (2005), foi revogada a deliberação do Conselho Nacional de Desportos que proibia as mulheres de praticarem o futebol, durante quase quatro décadas muitas seguiriam praticando a modalidade, organizando suas equipes, disputando jogos, driblando preconceitos e a proibição, agindo desse modo para o rompimento dessa lei e para concretização da esperança de realizarem o jogo.

Mas o direito a competir oficialmente de modo profissional só estaria assegurado em 1983, a partir da Deliberação Nº 01/83 do Conselho Nacional de Desportos, conforme indicado por Lima e Souza (2016)[v]. Essa deliberação determinaria as normas básicas para a prática do futebol feminino, no Brasil.

Passadas mais de três décadas desde a oficialização da prática e da possibilidade da profissionalização do futebol de mulheres no Brasil, o que observamos atualmente é que ainda são grandes os desafios para que crianças, adolescentes, jovens, adultas e idosas pratiquem o futebol, seja por lazer ou profissionalmente. Ainda são muitas as barreiras, subjetivas ou não, que as mulheres precisam superar para praticar o futebol.

No começo do ano de 2020 direcionei esforços para conhecer como as mulheres participam enquanto atletas na Copa Centenário de Futebol Amador Wadson Lima[vi], um campeonato de futebol realizado pela Prefeitura de Belo Horizonte. Parte da motivação para tal foi mobilizada pela constatação de que havia um grupo de mulheres no Bairro São Bernardo, na região Norte de Belo Horizonte, que estava se organizando para treinar e possivelmente competir na Copa Centenário no ano de 2020.

Vale destacar que esse torneio teve início em 1997, em comemoração ao aniversário de 100 anos de Belo Horizonte. Desse modo, temos mais de duas décadas de realização dessa competição. E entre seus objetivos estava a melhoria da qualidade de vida da população. Mas, em que medida as mulheres foram inseridas nessa parcela da “população”?

A fim de identificar apontamentos a este respeito, no começo de março fui à Gerência de Promoção e Apoio ao Futebol Amador (GEPFA)[vii], setor responsável pela gestão da Copa Centenário, na Secretaria Municipal de Esportes e Lazer de Belo Horizonte (SMEL/PBH). Tive acesso a algumas informações sobre a breve e recente trajetória das mulheres nessa competição e recebi algumas orientações sobre outras informações que eu poderia acessar no portal da Prefeitura de Belo Horizonte. Mas, devido às medidas de distanciamento social que foram tomadas pela gestão municipal, na segunda quinzena de março, que ocasionaram na suspensão temporária dos atendimentos da Secretaria Municipal de Esportes e Lazer, não foi possível retornar à citada gerência. Contudo, por meio do material disponibilizado foi possível traçar um panorama sobre alguns aspectos.

Consegui identificar informações a partir de dados relativos aos anos de 2016 e 2019 e constatar alguns aspectos relacionados à recente trajetória de mulheres nessa competição. Em 2016, dezenove anos depois da realização da primeira edição dessa competição, havia a possibilidade de inserção de jogadoras em apenas uma categoria, denominada como “adulto”. Naquele ano, 275 atletas foram inscritas, compondo o coletivo de 11 equipes participantes na Copa Centenário.

Em 2017 foi incluída mais uma categoria, sendo possível a inscrição em “adulto” ou em “sub-17”. Nesse ano, a competição contou com a inscrição de 21 equipes e 478 atletas. Essas duas categorias foram as mesmas disponibilizadas nos dois anos seguintes, sendo que em 2018 a competição contou com 22 equipes e 494 atletas inscritas, e no ano de 2019 foram inscritas 23 equipes e 582 atletas.

Comparando os dados de 2016 aos de 2019, observamos que houve uma alteração significativa tanto no número de equipes inscritas quanto no de atletas, alcançando aproximadamente 50% de aumento em 4 anos. E, se for considerado todas as equipes e atletas inscritos, de homens e de mulheres, é possível constatar que em 2016, as 11 equipes compostas por mulheres representavam 6,51% do total, e as 275 mulheres equivaliam a 7,69% de todas as inscrições realizadas na competição. Em 2019, as 23 equipes inscritas com atletas mulheres representaram 10,31% do total das equipes inscritas no campeonato, e as 582 atletas representaram 10,61% do total de atletas inscritos.

Essa elevação acelerada do número de equipes e de participantes na competição pode ser um indicador de que houvesse uma demanda reprimida. Durante esses quatro anos em que a competição passou por alterações e houve novas estratégias para inserção das atletas, tais como a criação de novas categorias e o aumento do número de vagas de equipes, observa-se que houve a adesão delas. Contudo, além de garantir a continuidade da permanência das mulheres na Copa Centenário, ainda há outras demandas a serem enfrentadas no âmbito da política pública, como por exemplo, incentivar a inserção e a permanência de meninas e jovens em atividades esportivas, inclusive o futebol. Assim, haverá a possibilidade de seguir com esse panorama de expansão da participação de mulheres em competições de futebol nos anos vindouros.

 

Comemoração das jogadoras do Manchester, equipe campeã em 2019 na categoria adulto. Foto: Divulgação PBH.

Considerando a trajetória que o futebol de mulheres teve durante o século XX, em que foi recorrente o preconceito, o controle e as proibições que impactaram a prática dessa modalidade esportiva, dificultando e distanciando a participação de muitas mulheres em jogos competitivos ou na prática enquanto lazer, e observando a presença recente de mulheres atletas na Copa Centenário de futebol amador, em Belo Horizonte, é possível considerar que essa recente inserção desse público, nessa competição, evidencia a existência de um campo ainda pouco explorado no âmbito esportivo. E que o setor público pode contribuir nessa transformação.

Para 2020, conforme consta no regulamento[viii] está prevista uma nova alteração nas categorias, que terá a manutenção do “adulto”, além da criação das categorias sub-20 e sub-16, com disponibilidade de inserção de até 42 equipes de mulheres. Não é possível afirmar o que ocorrerá no futebol nos próximos meses e nem se haverá a possibilidade da realização da edição de 2020 da Copa Centenário de Futebol Amador Wadson Lima, uma vez que, devido à pandemia ocasionada pelo COVID-19, a dinâmica da convivência social e o cotidiano da população de Belo Horizonte e de outras cidades brasileiras sofreram significativas alterações. O que é certeza, no momento, é que os estádios de futebol e vários campos de várzea, no Brasil, seguem vazios, uma vez que continuamos com as partidas e os campeonatos suspensos. Alguns clubes sinalizaram a retomada dos treinos, a exemplo do Atlético Mineiro, do Cruzeiro e do América.

E, em relação ao aumento da participação de mulheres nessa modalidade, espero que após superarmos os desafios da pandemia, possamos continuar na trajetória de construção de possibilidades de proporcionar a participação das mulheres na Copa Centenário, a mais expressiva ação realizada pela política municipal no âmbito do futebol de várzea em Belo Horizonte. Que a esperança não nos falte e siga nos revigorando; para reivindicarmos tempos melhores para as mulheres no futebol (e em outras dimensões da vida), e para superarmos a pandemia.


Notas

[i] GOELLNER, Silvana Vilodre. Mulheres e futebol no Brasil: entre sombras e visibilidades. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, v.19, n. 2, São Paulo, jun. 2005, p.143-151.

[ii] BONFIM, A. F. Football Feminino entre festas esportivas, circos e campos suburbanos: uma história social do futebol praticado por mulheres da introdução à proibição (1915-1941). [S. l.: s. n.]. Acesso em: 10 maio. 2020.

[iii] Decreto-lei 3199/1941. Acesso em: 20 abr. 2020.

[iv] Deliberação nº 7 do Conselho Nacional de Desportos de 7 de agosto de 1965. Acesso em: 21 abr 2020.

[v] LIMA, Nilsângela Cardoso; SOUZA, Maria Gleyciane Barbosa. (IN)visibilidade das mulheres nos campos de futebol: a quebra de tabus e ampliação de sua presença no espaço público mediante a prática do futebol profissional. Revista Eptic, v. 18, n. 1, Sergipe, jan./abr. 2016, p. 150-167. Acesso em: 10 maio 2020.

[vi] Informações sobre a Copa Centenário de Futebol Amador Wadson Lima podem ser acessadas neste link. Acesso em: 20 abr. 2020.

[vii] Agradeço a disponibilidade e prontidão que tiveram para acolher a demanda apresentada.

[viii] Veja o regulamento da Edição de 2020 da Copa Centenário de Futebol Amador Wadson Lima neste link. Acesso em: 15 abr. 2020.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Luciana Cirino

Integrante do Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes (FULIA), da UFMG.

Como citar

COSTA, Luciana Cirino Lages Rodrigues. Panorama sobre a inserção das mulheres no futebol amador: um olhar sobre a Copa Centenário de Futebol Amador Wadson Lima (BH). Ludopédio, São Paulo, v. 131, n. 46, 2020.
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