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Para além da violência física contra as mulheres no futebol

Há algum tempo foi postado nessa sessão o texto da também gefutense, Bárbara Gonçalves Mendes, no qual ela discutia a relação entre futebol e violência contra a mulher, a partir da infeliz declaração do ex-jogador da seleção brasileira, Felipe Melo, na qual comparava a mulher a uma bola de futebol[1].

Sabemos que o futebol pode ser lido por meio de um duplo aspecto: 1) como veículo para a compreensão da sociedade no qual está inserido 2) como objeto de estudo que possui as suas especificidades e sofre influências da sociedade no qual está inserido. Portanto, o futebol é um fenômeno vinculado a realidade social presente, que é racista, machista, homofófica, heteronormativa, elitista, entre outras características. Dessa forma, vimos na referida postagem que a violência física contra a mulher também tem relação com o futebol. O que muda é o tratamento dado ao ocorrido, já que, no futebol a desqualificação da vítima é ainda maior.

A violência física contra mulheres é um problema da mais alta gravidade na maioria das sociedades, contudo, para além dessa violência que muitas vezes se transforma em cicatrizes corporais, há outros tipos de violência que se misturam no cotidiano e minam a possibilidade de uma melhor condição da mulher na sociedade e mais especificamente, no futebol.

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Foto de equipe de futebol feminino – Estado do Rio de Janeiro em 1959. Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil.

Utilizarei aqui dois fatos por mim vivenciados que me fizeram trazer essa reflexão ao Ludopédio, entendendo, mais uma vez, que a violência contra as mulheres no futebol está mais presente do que imaginamos.

Como sabemos, na data de 8 de março comemora-se mundialmente o Dia Internacional da Mulher[2]. Embora o mercado e muitos meios de comunicação tentem despolitizar essa data formulando frases e campanhas de fragilização e mitificação da mulher, trata-se, em sua essência, de um dia político.

Em algumas instituições mulheres são convidadas a fazer um balanço das conquistas em sua área de atuação e traçar perspectivas em termos de equidade de gênero. Não que isso não ocorra no cotidiano das instituições, porém, no dia 8 de março essa discussão toma maior visibilidade e, em muitos lugares, torna-se o único momento que tais reflexões sejam possíveis.

No âmbito do futebol, em Belo Horizonte fui convidada a mediar uma mesa que discutia o lugar da mulher nesse esporte e a importância da presença feminina na imprensa, no campo, na arquibancada e em cargos administrativos. Cinco convidadas compuseram a mesa, embora ocupassem cargos distintos, todas eram ou estavam envolvidas com a área da comunicação social. Dessas, duas eram veteranas no jornalismo esportivo com 20 e 11 anos de profissão e uma era apresentadora de um programa esportivo na TV local.

O auditório estava cheio. A plateia, em sua maioria, era formada por mulheres estudantes da área da comunicação que desejavam atuar no jornalismo esportivo e estavam ávidas para ouvir a fala daquelas que eram suas referências. Porém, muitas tiveram suas expectativas frustradas, pois presenciaram um conjunto de mulheres que não enxergam o preconceito de gênero como uma forma de violência simbólica a ser enfrentada no campo futebolístico nas suas mais diversas vertentes.

Todas as convidadas afirmaram que em sua profissão há, sim, uma maior tolerância aos erros cometidos pelos homens e argumentaram que, com trabalho sério, dedicação e persistência, é possível contornar esse tipo de problema e ganhar o respeito dos/as colegas, logo, a superação é de caráter individual. Disseram, também, que quando o telespectador/ouvinte, por meio das mídias digitais, fazem brincadeiras de duplo sentido ou xingamentos “rebaixando-as” aos cuidados do lar, ignoram o fato ou levam na brincadeira, pois acreditam que, com a carreira solidificada, isso não as ofende e nem as desqualifica. Por fim, deram a entender que o preconceito de gênero no futebol só ocorre com as mulheres que se “vitimizam”, isto é, as que param para refletir sobre essa temática. Assim sendo, no Dia Internacional da Mulher essas histórias de sucesso demonstraram que as dificuldades para encontrarmos jornalistas mulheres participando como produtoras de conhecimento e formadoras de opinião em programas futebolísticos se dão mais por um cooperativismo e limitação desse mercado do que por uma questão de gênero.

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Durante a Copa do Mundo de 2014 foi inaugurado o Espaço Futebol para Igualdade no Museu da República, com atividades educativas, debates e a exposição Mulheres em campo: driblando preconceitos. Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil.

Pouco tempo depois, durante o intervalo de um jogo do Campeonato Mineiro no Mineirão, a equipe mandante exibiu a sua candidata que iria disputar um título de musa[3]. Acompanhada pelo mascote do clube ela entrou no gramado vestindo a camisa do clube e short de modo que o seu corpo ficasse em evidência, enquanto isso os telões do estádio exibiam a sua foto oficial, vestida com a camisa do clube e uma peça de biquíni. Ao desfilar pelo gramado muitos torcedores do sexo masculino a fotografavam e manifestavam o seu “apoio e admiração”, como predadores em vigilância à presa.

Vendo tudo isso, pensei sobre o lugar da mulher no futebol. Sabemos que em sua origem o futebol foi considerado um esporte para homens, por trazer valores masculinos de confronto, violência, competição, virilidade, força e coragem, diferente da imagem de frágil e delicada (que era) construída para a mulher. A história desse esporte também aponta que a presença das mulheres foi construída no espaço das arquibancadas[4], sobre as representações de ornamentos da prática esportiva masculina[5], acompanhantes que criam condições favoráveis para que os homens desfrutem do futebol[6] ou modelos estereotipados de torcedoras[7]. Quase nunca, é levado em consideração a mulher enquanto cidadã que é capaz de ter um pertencimento clubístico e interessar-se pelo jogo de futebol, compreendendo-o em seus aspectos técnico-tático, econômico, social, político, cultural e tendo a ida ao estádio como um tempo/espaço de lazer.

Tomando por base o Mineirão, mas não somente ele, ficou evidente que mesmo com todas as mudanças ocorridas no futebol, e muitas delas discutidas nessa sessão, no que tange a presença da mulher no estádio, houve uma atualização de sua representação, sem avançar em termos de participação efetiva, já que, em sua essência, o “novo” estádio ainda carrega o ideal do futebol como esporte masculino hegemônico.

Embora a reforma do Mineirão tenha atraído um volume maior de mulheres torcedoras, muitas delas proprietárias de títulos de sócio-torcedor, chefes de família, trabalhadoras que exercem cargos de direção, a sua presença no estádio não é validada quando nesse local ainda se veicula um padrão masculino hegemônico de comportamento, tratando a mulher enquanto objeto e adorno.

Nesse sentido, não se percebe um desejo político organizado por parte dos/as gestores/as públicos que trabalham com o futebol de propiciar mudanças nesse espaço. Tanto assim que até hoje são promovidos concursos para a eleição das musas das competições futebolísticas, os uniformes são apresentados por modelos mulheres em trajes sensuais e cada vez mais os programas esportivos contratam assistentes mulheres que se enquadram no padrão de beleza hegemônico. Concomitantemente a isso, outros tipos de torcedoras permanecem invisibilizadas nos estádios.

Dessa forma, vemos que, no que tange as mulheres torcedoras, para os dirigentes esportivos ainda permanece a imagem da “mulher objeto” ou da “bela, recatada e do lar”[8]. Assim, as mulheres torcedoras dentro de determinado contexto ora são acionadas como capital simbólico da beleza de um clube ora acionadas como guardiãs da paz do espetáculo, mas em ambas as situações, sem possuir um protagonismo na vida política do mesmo, figurando em um segundo plano, considerado alegórico e não-sério.

BELO HORIZONTE/ MINAS GERAIS / BRASIL (15.02.2016) Lançamento da nova coleção Atlético Dry World no Ilustríssimo em Belo Horizonte - Foto: Bruno Cantini/Atlético
Mulheres no desfile de lançamento da nova coleção Atlético Dry World no Ilustríssimo em Belo Horizonte (fevereiro de 2016). Foto: Bruno Cantini/ Clube Atlético Mineiro.

Assim, as torcedoras anônimas, isto é, as que não têm os seus nomes creditados como torcedoras-símbolo, quase nunca são apontadas nas pesquisas de opinião dos clubes e muitas não aparecem nos telões dos estádios como sinônimo da beleza do clube, ainda são pouco visíveis no contexto do futebol, mesmo que presentes e atuantes.

Por fim, ao não reconhecerem o preconceito de gênero no meio futebolístico, as jornalistas esportivas contribuem para a invisibilidade das torcedoras anônimas e reforçam o discurso da meritocracia, uma vez que não apresentam as tensões colocadas e tampouco dialogam com os estudos sobre o futebol e com o coletivo de torcedoras/es que problematizam essas tensões o que possibilitaria a tomada de consciência do problema e sua possível solução.

[1] MENDES, Bárbara G. Muito além da jabulani: o futebol e as violências contra as mulheres. Sessão Arquibancada, 20/04/2016. 

[2] Desde o final do século 19 organizações de mulheres provenientes do movimento operário protestam por direitos trabalhistas. Em 1910, durante a II Conferência Internacional de Mulheres Socialistas na Dinamarca, foi aprovada uma resolução para a criação de uma data anual para a celebração dos direitos da mulher por mais de cem representantes de 17 países. Em 1945, a ONU assinou o primeiro acordo internacional que afirmava princípios de igualdade entre homens e mulheres. Em 1975, o dia 08 de março foi oficialmente reconhecido pelas Nações Unidas como o dia de luta pelos direitos da mulher. Para mais informações: http://revistaescola.abril.com.br/historia/pratica-pedagogica/8-marco-dia-internacional-mulher-genero-feminismo-537057.shtml.

[3] No meio futebolístico o fato das mulheres representarem os seus clubes em competições que visam à beleza física é tão normalizada e alegórica que não encontrei nenhum registro online sobre o ocorrido em questão. Visualizando apenas os sites dos concursos, propriamente ditos.

[4] Contribuiu para isso, também, a proibição da prática do futebol pelas mulheres, por meio do Decreto-Lei 3199/1941 e seu detalhamento, em 1965, no qual explicitava a proibição da prática “feminina de lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, pólo, halterofilismo e baseball”, sendo revogado apenas em 1979.

[5] SOUZA NETO, Georgino J.; CAMPOS, Priscila A. F.; SILVA, Silvio R. Das senhoras e senhorinhas nos “grounds” do sport bretão: a história da mulher nos campos de futebol em Belo Horizonte/MG (1904-1920). Licere, Belo Horizonte, v.16, n.3, set/2013.

[6] SOUZA, Marcos A. Gênero e raça: a nação construída pelo futebol brasileiro. Cadernos Pagu, Campinas, v.6, n.7, p.109-52, 1996.

[7] COSTA, Leda M. O que é uma torcedora? Notas sobre a representação e auto-representação do público feminino de futebol. Esporte e sociedade, n.4, p.1-31, 2007.

[8] Referência a capa da Revista Veja, de abril de 2016, ao se referir a Marcela Temer e ao projeto de governo de seu marido da retomada de um papel da mulher na sociedade que fere com todas as conquistas das lutas das mulheres nos últimos anos, principalmente no que se refere ao uso do espaço público, a participação na vida política, ao mercado de trabalho, a autonomia sobre seu corpo, a escolha da sexualidade, entre outras.

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Priscila Augusta Ferreira Campos

Professora do Centro Desportivo da Universidade Federal de Ouro Preto - CEDUFOP; Doutora em Educação Física/UNICAMP, Mestre em Lazer/UFMG; Graduada em Educação Física/UFMG, Membro do Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas - GEFuT/UFMG; torcedora do Cruzeiro Esporte Clube e frequentadora de estádios.

Como citar

CAMPOS, Priscila Augusta Ferreira. Para além da violência física contra as mulheres no futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 83, n. 12, 2016.
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