A Escola de Chicago desenvolveu estudos que demonstraram as transformações da vida moderna, especialmente, nos novos aglomerados urbanos. O crescimento geográfico e demográfico das grandes cidades favoreceu o que foi reconhecido nas patologias sociais, aumento de desemprego, criminalidade, bolsões de pobreza etc., problemas que aparecem em consequência da rápida expansão dos novos ordenamentos humanos.

As patologias sociais estão relacionadas a anomalias na estrutura social, no entanto, outras doenças, que identifico como chagas, permanecem expostas como grandes ferimentos e machucados. Machismo, patriarcalismo, homofobia, xenofobia, misoginia, racismo etc., são algumas das chagas que se mantêm abertas no corpo social.

A definição de chagas indica lesões abertas, ferimentos ou feridas. O racismo se apresenta como uma ferida exposta que causa não apenas constrangimento, mas principalmente dor. Seu combate não é fácil, pois, algumas pessoas não estão dispostas a submeter-se ao tratamento de limpeza, desinfecção e constante troca de curativos para que a lesão possa ser curada.

O racismo continuamente é lembrado como algo que deve ser ‘tratado’ em diálogo aberto. Sua discussão ganha espaço a partir da caixa de ressonância midiática, o que promove discussão, mas não garante uma reeducação dos modelos mentais marcadores de esteriótipos e valores culturais. Muitos casos de racismo explícito e que fazem parte do cotidiano não ganham o noticiário, limitando o debate que permanece encrustado na alegação de situações isoladas.

A discussão do racismo como tema, como compromisso e engajamento. É liderada por guerreiros e guerreiras que, sem medo, expõem a desigualdade dessa chaga social. Entre os muitos homens e mulheres, no Brasil, encontramos um Márcio que carrega em seu nome o significado que encoraja a, destemidamente, seguir adiante. O nome Márcio tem origem no latim Marcius, de martius que significa guerreiro, ligado a Marte (Mars), o deus romano da guerra.

No mundo esportivo conhecemos muitos Márcios, mas apenas poucos carregam no nome o ideal de luta, como Márcio Chagas. Um profissional que possui um itinerário formativo no esporte semelhante a muitos outros. Iniciou sua jornada esportiva praticando judô na infância com o objetivo de melhorar a autodefesa. Na adolescência dividiu os treinamentos entre o futebol e o basquete. Este último abre portas durante o período da sua escolarização, permitindo frequentar uma escola privada e, posteriormente, a graduação em Educação Física.

As opções de formação profissional no basquete não se concretizam e as necessidades econômicas o direcionam para arbitragem do futebol, trilhando um caminho árduo e com muitas dúvidas sobre seu potencial. Em poucos anos após começar a apitar jogos profissionais, passa a ser reconhecido. Seu esforço é valorizado com inúmeras premiações como o melhor árbitro em diversos torneios, chegando ao posto de Aspirante FIFA. Márcio Chagas, guerreiro que luta contra a chaga do racismo no Brasil, aprendeu cedo a necessidade de fazer sempre o melhor pois, os olhares e cobranças estão marcados pela cor de sua pele. Exigências que não estavam restritas à sua técnica e poder de decisão, mas questionamentos chegavam até mesmo sobre sua capacidade de escrita e caligrafia, externando o incômodo que sua presença causava no mainstream futebolístico.

Márcio Chagas
Márcio Chagas, entre Aldo Rebelo, então Ministro dos Esportes, e o ex-jogador Tinga. Foto: Wikipédia

O combate ao racismo fez e faz parte de sua carreira como árbitro de futebol, até porque reside no Rio Grande do Sul, um dos estados brasileiros em que os casos de racismo mais se explicitam. Ações como realizar o aquecimento antes de começar alguns jogos no vestiário dos árbitros devido à hostilidade dos torcedores, enquanto seus colegas (brancos) usavam o gramado sem maiores problemas, foram notórias. Jogos que quase foram cancelados em razão de uma equipe não aceitar um árbitro negro, tampouco foram exceções. Xingamentos nos estádios eram corriqueiros, já que para alguns durante a partida tudo vale, até jogar bananas ou colocar tal fruta, bastante simbólica, em seu carro. Situações que eram aceitas como “cartão amarelo”, um sinal de alerta, mas quando palavras passaram para comportamentos, um “cartão vermelho” precisou ser exibido. Márcio Chagas não hesitou em ser contra o racismo, ainda que comprometendo sua carreira.

Como guerreiro que é, deixou a arbitragem, recusando ser conivente com práticas discriminatórias e racistas que estruturam as instituições esportivas. Entrou, então, em um novo cenário, ao aceitar ser comentarista e vivenciar o mundo do jornalismo esportivo. Era um espaço que parecia isento e que possibilitava grande visibilidade. Infelizmente, isso não o impediu de sofrer ofensas verbais e escritas, independentemente de estar no estádio ou no estúdio de televisão. A grande visibilidade foi proporcional à ampliação das ofensas e ameaças. O fim dessa experiência termina com o mesmo oportunismo que gerou sua contratação e que se esconde na narrativa da sua demissão em 2020[1].

Sempre disposto a resistir, no último pleito municipal em Porto Alegre/RS foi candidato a vice-prefeito. Como guerreiro, Márcio usa a lança da comunicação para defender e proferir ataques contra quem insiste em manter aberta a chaga do racismo. Que personagem interessante e instigante para descrever o outro lado da bola.

A chaga do racismo permanece aberta, algo que deve ser combatido. Precisamos de muitos outros Márcios, guerreiros que sustentam uma bandeira de liberdade pela conquista e manutenção dos direitos humanos.

Recentemente casos de racismo no futebol repercutiram, especialmente na Europa, no campeonato espanhol. O tema voltou a ter visibilidade, Márcio Chagas em sua rede social[2] usou a lança da comunicação para perguntar aos amantes da modalidade: “quem vai amparar os jogadores de futebol”? Seu questionamento e apelo faz crítica à postura das instituições internacionais e nacionais que regem a modalidade, por sua passividade em fazer cumprir a lei desportiva e civil. As punições, quando ocorrem, são brandas para clubes e torcedores, deixando um dano ainda maior nos atletas negros que sofrem com o racismo e o castigo de um cartão amarelo ou vermelho ao expressar descontentamento com a barbárie.

O racismo estrutural engessa as instituições, e promover mudança ou a cura dessa chaga depende de todos nós. Seguir o exemplo de quem viveu essa experiência no esporte ajuda a perceber essa necessidade, Márcio Chagas é uma das muitas vozes que conhece essa chaga e procura extirpá-la. A pergunta feita por ele deve ser respondida por todos e todas, de todas as cores, de todos os lugares do mundo, que desejam ser guerreiros de uma causa que aceita apenas um resultado, a vitória contra o racismo.

#Joguecontraoracismo 

 

Notas

[1] Ex-juiz Márcio Chagas diz que foi demitido por falar de racismo; RBS nega. Acesso em: 18 de abr. 2021.

[2] Disponível em: https://www.instagram.com/p/CNTsm9xAg_5/?igshid=1lft22x2q42kg. Acesso em: 16 de abr. 2021.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Daniel Machado da Conceição

Doutor em Educação, Mestre em Educação e Cientista Social pela UFSC. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea (NEPESC/UFSC), Grupo Esporte & Sociedade.

Como citar

CONCEIçãO, Daniel Machado da. Para enfrentar as chagas da sociedade, um Márcio. Ludopédio, São Paulo, v. 142, n. 53, 2021.
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