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Passes e caminhadas na geografia poética de Toinho Melodia

Tudo cabe numa canção popular: a poesia traduzindo um gesto, o cantar penetrante de uma máxima moral, as aventuras amorosas em estrofes, a melodia triste de um desgosto, o desfrute e vivência dos lugares de pertença, a louvação de sentimentos ufanistas, a crítica filosófica e social, sucessos pessoais comezinhos, a denúncia das agruras cotidianas de um povo. A persistência de um gênero musical se faz medir pela sua potência discursiva capilarizada somada à captura por aquilo que um dia se chamou de mercado fonográfico, que hoje, se não menos excludente, está bem mais descentralizado em relação aos acessos à criação, produção e distribuição oferecidas pelas tecnologias digitais.

No Brasil, o samba trilhou um périplo que o fez expandir das linguagens verbais e corporais trazidas nos porões da diaspórica e sincrética matriz africana à gênero popular difuso e icônico capturado pela maquinaria dos muitos interesses que o envolveram. Do terreiro ao salão e do salão para o mundo o auge dessas metamorfoses ganhou síntese e feição política numa saga estética capturada pelo nome de nacionalismo.

Salvaguardando uma identidade brasileira, as caminhadas do samba não se fizeram solitárias e compuseram o repertório de valores que passaram a ditar o modo de vida urbano. Foram nessas trilhas entrecruzadas que se juntaram ao caldeirão novidadeiro muitas modas e estrangeirismos, tais como o futebol, que fora tomado à força pelos contingentes subalternizados nos arrebaldes e interstícios das nascentes metrópoles tupiniquins. E por ali se fizeram espaços insurgentes de sociabilidade, interpelando a racionalidade burguesa triunfante do início do século XX.

Hoje, nada mais banal, consensual e amortizado na memória do que associar samba e futebol, dobradinha essencializada de uma história recontada e requentada de Brasil. Mas se ambos sobreviveram como traços requintados de uma estética nacional foi graças à essa medula popular de produção incessante que os mantiveram misturados, criados reciprocamente em gestos, técnicas, rimas e convenções rítmicas. Samba e futebol seguem ditando a vida comum dos anônimos ou quase anônimos artistas da caneta e dos versos, dos arames e dos acordes, dos pés e dos scores impossíveis.  Situados à sombra dos glamourosos desdobramentos impostos pela história oficial seguem narrando à revelia dos sucessos ou fracassos suas próprias caminhadas.  

Nada mais necessário, urgente e comovente do que retomar essa mesma fórmula cultural tão desgastada sob o ponto de vista de seus mais inquietos protagonistas, gente de carne e osso que à despeito de tudo e de um Brasil contemporâneo que desponta em feições estéticas duvidosas, continua experimentando e pelejando o samba e o futebol nos maneirismos de suas próprias existências. É o samba dando voltas ou driblando a si mesmo, são as pelejas esportivas baldias teimando espaços e tempos regulamentares que se creem perdidos.

Tudo aconteceu no Kolombolo Diá Piratininga, um coletivo atuante na preservação e divulgação das vertentes do samba em terras paulistas. Pois foi ali que conhecemos Toinho Melodia, lá pelas bandas de uma buliçosa Vila Madalena nos anos 2000. A Vila é estereotipada por ser um lugar que abriga uma vanguarda intelectual e política branca e de classe média, mas enseja também os melhores embates etílico-ideológicos, lítero-musicais entre personagens errantes oriundos de vários segmentos sociais. Afinal, a Vila também foi um bairro de feições populares, gente empurrada para as bordas da cidade a cada ciclo perverso de emponderamento econômico.

Negro, sujeito de muitas parcerias e correrias, Toinho passou a frequentar mais regularmente os redutos de samba do bairro, retomando em várias frentes a militância musical depois de um tempo ocupado com a família e deveras aperreado com doenças e abandonos de si. Para nossa alegre surpresa conheceríamos, como ele matreiramente gosta de expressar, um sambista com a “mamadeira cheia”. Irrequieto, atento e frasista, trouxe da cultura oral familiar do Recife a verve afiada do improviso e da ironia. Crítico do “samba de modinha”, e ainda que ocasionalmente levante a poeira por onde passa cantando algum standart do cancioneiro nacional, gosta mesmo de levar as suas próprias composições, “sem corrimento”, nessa missão de adestrar os ouvidos de novas plateias. Toinho faz parte daquele rol de compositores populares que tropeça na própria criatividade. A cada esquina um verso melódico, a cada ideia uma parceria. Capaz de cantarolar para si mesmo dentro de um ônibus arriscando e gravando no celular uma nova estrofe que acabara de pintar, tudo é melodiável. Sempre quando nos falamos emenda a frase derradeira: “e aí parceiros precisamos fechar uns sambas, tenho aqui umas cabeças”.

Há em Toinho uma necessidade e urgência firmadas nessas andanças pelos quatro cantos da cidade. Vai gravar “Minha Caminhada”? Perguntamos a ele na época em que escolhia o repertório do seu CD, que viria a receber o nome de uma criativa contração identitária, Paulibucano.  

Fonte: divulgação

Foi necessário limitar o universo do projeto para dar uma feição ao seu primeiro trabalho autoral. Sua parceria com Rodolfo Gomes, o Conjunto Pica Fumo e o produtor musical Gabriel Spazziani, equipe zelosa que trabalhou na concepção e direção geral de Paulibucano, haveria de explorar essa estética de transição ecológica, marcada por sua história pessoal a reunir dois mundos separados pela condição de migrante.

Pintor de profissão, fiou-se na correria duvidosa da ética do trabalho trituradora de corpos, mas apurou com sutileza a criatividade herdada, voltando-se ao samba urbano e se convertendo ao gosto pelo futebol, fazendo pender sua identidade esportiva mais para o “pauli” do que para o “bucano”. Palmeirense e frequentador das beiradas dos campos varzeanos da cidade, onde o couro comia dentro e fora da cancha, percutido na batucada e na pernada, se diverte ao relembrar que atuou no Riachuelo do Jardim Brasil e que fora fundador do Estrela Caçula da Vila Sabrina, “time bom da porra também. Chegamos a 180 partidas invictas até eu parar de jogar”, revela sem qualquer humildade em gol.

De pé, quinto da esquerda para a direita. Foto: Arquivo pessoal

Riachuelo ontem e hoje. Na foto, segurada por mãos cuidadosas, um time de outrora com Toinho de pé, quarto da esquerda para a direita. Foto: Arquivo pessoal

Toinho mais jogou do que cantou o futebol em seus versos. Questão de precedência, conta, quem chegou primeiro foi o samba: “Quando gravei meu documentário para o milagre de Santa Luzia fui fazer lá no time onde joguei, o Riachuelo do jardim Brasil. Buscaram uma rapaziada às pressas e fizemos uma roda de samba. Sabem como sou rigoroso para com o andamento… para, dá um tempo, giba, dá um tempo, giba, menos, porque os caras… é tudo tão acelerado, mamadeira cheia e eu dava risada….”

Puxando pela memória, segue: “Fiz algumas coisas, mas coisas tão inocentes, vai ser difícil lembrar. Tenho um samba que nasceu lá em 1974, quando o Palmeiras malhou o Corinthians. Saí do Palmeiras e passei lá na Brigadeiro Tobias, naquele lugar maravilhoso, aquele templo sagrado, era o único lugar em que os caras faziam samba de segunda-feira e a polícia não acabava. O regime militar estava a todo o vapor, mas o Inocêncio Tobias, o Mulata (presidente da escola) molhava a mão de todo mundo e ninguém ia lá mexer. Fiz um samba que falo das duas cores, estava apaixonado pelo Camisa e amava a Vila Maria, na época. Outro chama-se “Um samba em verde e branco”. Depois que eu voltei para a ativa e com alguns parceiros fechamos esse samba, a seis mãos, Toinho Melodia, André Santos e Greg Andreas.

 

Perdendo ou ganhando para mim não importa o lugar

Vou batucar no Camisa e ver meu Palmeiras jogar

Academia que encanta no campo

E a furiosa sacode a avenida

O Talismã que me guia, divino

Lá na Barra Funda vivo minha vida

Sou verde e branco no samba

Também verde e branco na bola

Sociedade Esportiva Palmeiras, meu time

Camisa Verde e Branco, minha escola

 

Os sambas sobre futebol haveriam de ficar de fora de Paulibucano, também a belíssima “Minha Caminhada”. À propósito, composição que sintetiza a trajetória de Toinho no samba urbano e revela um lirismo explorando os meandros da metrópole oculta, popular e sambística. Nada é preciso acrescentar a respeito dessa geografia sentimental sintetizada nos versos que trazem uma letra que se completa na melodia cadenciada, onírica e “sem corrimento”. “Minha Caminhada” explora com maestria as pausas e as temporalidades que parecem ecoar de um passado breve. Pelas rodas de samba Toinho haveria ainda de acrescentar numa das estrofes, e obviamente respeitando a métrica, o nome de outra escola que igualmente assentou a tradição do samba paulistano de rua, a Peruche.

O pessimismo sentimental que narra o fim desse mundo lírico parece ditar a fala militante tanto daqueles que vivenciam o futebol de várzea quanto o samba. Que tal sentimento, então, se eternize.

 

Eu vi

Por tantas vezes vi o samba alvorecer

No morro de Vila Maria, Camisa, Nenê

Eu vi…

E deu saudade da Saracura

Onde deixei empenhado o meu coração

Nas cordas de aço amarrei a tristeza

Cantando as belezas daquele lugar, daquele lugar

Mas não se iluda, viu

Quem nasceu do samba não muda tão cedo

Escreve com lágrimas um novo enredo

E pede pro samba não se acabar

(Minha Caminhada – Toinho Melodia & Rodolfo Gomes)

 

 

Referências

Favero, Raphael Piva Favalli. A várzea é imortal: abnegação, memória, disputas e sentidos em uma prática esportiva urbana. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-graduação em Antropologia Social-USP, 2018.

Grêmio Recreativo de Resistência Cultural Kolombolo Diá Piratinngahttps://www.facebook.com/kolombolosp/

Paulibucano, primeiro trabalho em CD lançado pelo cantor e compositor em 2018. Disponível em: https://open.spotify.com/album/09A1zs4HooSsiUMsCgbf3J?si=3UUtw4F3QSKw9dbMYv1RBA&utm_source=copy-link

O milagre de Santa Luzia, Série da TV Cultura – Episódio Toinho Melodia (no 52, 2 de julho de 2017). Disponível em: https://www.facebook.com/watch/?v=1534234749961651.

 


 

Ideacanção

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Kike Toledo é antropólogo e sambista nas horas vagas. Eduardo Camargo é multi-instrumentista, arranjador e aprendiz de antropólogo nas horas vagas. Ambos vagueiam e compõem. Para conhecer seus trabalhos acessem os álbuns

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Kike Toledo

Kike Toledo é sambista, torcedor e antropólogo.

Como citar

TOLEDO, Luiz Henrique de; CAMARGO, Eduardo. Passes e caminhadas na geografia poética de Toinho Melodia. Ludopédio, São Paulo, v. 142, n. 62, 2021.
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