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“Pesca Esportiva”: competição, sociabilidade e alteridade interespecífica

Carlos Eduardo Costa 18 de junho de 2021

Peço licença aos leitores boleiros do Ludopédio para abordar assunto tangencialmente relacionado ao desporto bretão. Tratarei de determinada atividade em contextos comparados, a partir de suas relações de contiguidades e diferenças, tendo como referencial o universo esportivo.

A esportificação das práticas é um fenômeno associado ao desenvolvimento do Ocidente e aos referidos processos civilizatórios capitaneados pelas sociedades burguesas. No campo das Ciências Sociais, Norbert Elias (1992) e Pierre Bourdieu (1984) são dois dos principais autores a colocarem o tema na ordem do dia, ultrapassando certa ideia, que insiste em reaparecer vez por outra, de que os esportes seriam algo “menor” no conjunto dos objetos analíticos, menos importante que temas reiteradamente fundamentais, como o trabalho, a guerra, a religião…

No Brasil, mais especificamente na antropologia, a ideia passa a ser debatida através dos trabalhos de Roberto DaMatta e a proposta de pensar os dramas brasileiros a partir da noção de ritual desenvolvida por Victor Turner. Nesse bojo, a coletânea “Universo do Futebol” (1982) inaugura a contenda em sua versão tupiniquim, tendo em Simoni Guedes sua principal difusora. Seja para pensar a prática em si, seus múltiplos significados e relacionalidades, seja ao expandir para o campo dos torcedores e temas correlatos ao futebol.  

Mais recentemente, a expansão etnográfica ampliou o conjunto de modalidades que redefiniram o estatuto dos estudos sociais sobre os esportes no país. De um monotemático futebol às competições olímpicas; de um problema centrado na “identidade nacional” às pesquisas sobre raça/racismo, gênero/diversidade, megaeventos; ou ainda, maneiras específicas que grupos vivenciam sua sociabilidade em seus “torneios” (médicos, universitários, militares).

Claro que um preâmbulo/parágrafo só “serve” para ser criticado, pelas ausências, deficiências e incompletudes. Mas o que gostaria de reter é a ideia da esportificação das práticas e como inúmeras outras poderiam ainda ser objetos de análises ou investigações mais detalhadas. No caso, aventaremos a “pesca esportiva”.

Não é difícil para quem acompanha minimamente o assunto perceber o rápido desenvolvimento da modalidade: canais televisivos, publicidade, produtos para um público alvo, turismo e etnoturismo. Por certo não conseguiríamos senão mencionar essas especialidades, mas vale dizer como estão atadas a esportificação, evidentes na estética de um pescador esportivo: camisetas com proteção solar estampadas com imagens de peixes saltadores e iscas esvoaçantes; óculos e bonés com design esportivos; vestimentas próprias a cada terreno. Ainda, o material utilizado: varas com especificações determinadas, molinetes e carretilhas de alta tecnologia, conjunto variado de iscas, linhas resistentes. Sem falar nos barcos, lanchas, caiaques e suas motorizações, tanto na proa como na popa. Equipamentos cada vez mais pensados e aprimorados a partir da ideia reinante de esportificação e seus correlatos: competitividade, potência, aventura.

Toda essa “fenomenotécnica”, para usar expressão de Latour & Woolgar (1997) que deveria acompanhar mais de perto os debates esportivos, é usada para estabelecer, ao menos potencialmente, uma relação de disputa entre homem e peixe. Veja bem, tal indumentária é utilizada para traçar uma competição entre o pescador e sua presa, ou melhor, seu adversário. Quanto mais o peixe “brigar”, maior a emoção produzida, de onde retornamos ao ponto elisiano que abriu nossa seção. A pesca esportiva visa consolidar uma relação de alteridade mediada pela disputa entre homem e peixe buscando excitação a partir de resultados auferíveis: qualidade da espécie, tamanho, peso, ou ainda, local da captura, precisão do arremesso, tempo da briga.

A relação é de competição, seja ao ultrapassar os obstáculos e intempéries das paisagens até que se chegue aos melhores pontos; das condições climáticas adversas, chuva, sol, ventos; e também de como contornar tais condições fazendo uso de todas essas ferramentas, intermediários ou mediadores na dominação/conquista da natureza.

No caso de sucesso, realiza-se a quantificação e registro dos feitos, que podem servir tanto para memórias e postagens em redes sociais, como também para disputas em torneios cada vez maiores e mais organizados, com patrocínio das grandes marcas, premiações em dinheiro e produtos, ou mesmo livros de recordes. Se não estiver pra peixe, ficam os registros das paisagens, da sociabilidade, do lazer (esse Elias gosta mesmo de aparecer nos debates sobre esportificação das práticas).

Pesca
Típica imagem associada à pesca esportiva. Foto: Reprodução

No campo das espécies, privilegiando aqui a ictiofauna de água doce, alguns peixes alcançaram status de ícones, de verdadeiros troféus que compõem o universo da pesca esportiva. O caso do tucunaré, (cichla) é certamente dos mais emblemáticos. Sua figura saltadora, com a boca sem dentes aberta se contorcendo atado a uma isca presa por uma linha, é das imagens mais comuns a estampar produtos e propagandas. O “embaixador da Amazônia”, apelido pelo qual é conhecido no meio, se expandiu e hoje é encontrado em todas as bacias do Brasil, por vezes inserido (como é o caso das represas em que é colocado por grupos de pesquisadores e pescadores, podendo, inclusive, causar desequilíbrios na fauna local), outras, seguindo seus próprios caminhos (como é o caso na narrativa mítica do povo Kalapalo em que os tucunarés saem da Amazônia até o Sagihengu, nas cabeceiras do rio Culuene, um dos formadores do Xingu, para participarem do primeiro Quarup, festa tradicional dos povos alto-xinguanos).

Outro peixe muito apreciado pelos pescadores esportivos é a cachorra (hidrolycus), que também realiza saltos acrobáticos quando fisgada, com uma enormidade de dentes que sobressaem da boca e dificultam sua captura. Nessa comparação com a região do Xingu, as cachorras são os “chefes” dos peixes, anetü, e são as responsáveis, como qualquer chefe, por receberem os convites para as festas e realizarem inúmeras especificidades rituais. Na bacia do Culuene é um dos peixes mais presentes.

Nesse debate específico, gostaria ainda de colocar o jaú (zungaro) um peixe de couro que pode atingir grandes proporções, um dos maiores peixes de água doce encontrados no país, e que também faz a alegria dos pescadores esportivos. 

Trouxe essas três espécies para fazer um contraponto entre a pesca esportiva, aquela em que após fisgado, “trabalhado” e retirado o peixe, tido por adversário, é medido, pesado, fotografado e colocado de volta na água, e a pesca nativa dos povos alto-xinguanos. A esportificação da prática está na disputa, na briga, na relação de competição entre homem e peixe. Apresento brevemente três diferentes relatos com essas espécies, em que a relação de alteridade é colocada de outra maneira, embora também através da soltura dos peixes. Se no caso da pesca esportiva o que vale é a competição que o exemplar proporciona, ratificando a alteridade através da disputa, no caso xinguano a soltura tem a ver com outras relações interespecíficas, notadamente sociocosmológicas.

O tucunaré está presente em uma narrativa que, lida pelo perspectivismo ameríndio, associa humanos e peixes através da relação mediada pela guerra (Basso 1995). Neste mito, Tapoge, o “mestre do arco” – o que já diferencia o tipo de captura realizada, isto é, não mais pelo anzol, mas pela flecha – está pescando com seus companheiros e encontra com o povo do tucunaré. Passa, então, a atirar suas flechas sem errar nenhuma, até que enfaticamente diz a seus companheiros: “aiha”, ou seja, “chega, está bom”. “Deixe os que sobraram irem embora, assim vão contar para os seus estórias sobre a gente”. O que fica subentendido no texto mítico, para além da figura do mestre do arco, é a parcimônia, a ideia geral da contenção do exagero no regime da predação, por isso deixar os restantes irem embora.

Se o tema da pesca do tucunaré nos levou à mitologia, a pesca da cachorra apontará para as relações que a pesca em área indígena estabelece entre comunidades e pescadores esportivos. Esse outro aspecto da pesca é um tipo de gatilho que os jovens indígenas usam para estreitar relacionamentos com pessoas na cidade que gostam da pesca e passam a trocar favores pela possibilidade de pescar em área. Este é um tema bastante espinhoso, que não teria condições de detalhar, mas se faz importante repensar as possibilidades ou mesmo o estatuto do etnoturismo, nesse caso para a pesca, porque é outra visão que se tem sobre a prática.

A começar pelo que fazer com o peixe pescado. Num desses casos, um jovem Kalapalo me contou que alguns kagaiha kuegü, isto, brancos estrangeiros, foram visitar a aldeia para pescar. A família que os convidou hospedou-os em sua casa, o que significa que as trocas de objetos e mesmo compensação financeira circularam primeiro e mais diretamente por ali. Isso é o suficiente para que a “fala ruim”, a “fofoca” comece a ocorrer, pois, isso não agradaria outras famílias, que se veriam privadas de peixes que seriam seus, ou mesmo por não terem os mesmos ganhos com tais visitas de forasteiros.

Voltado ao jovem, ele se mostrou desapontado quando pediu para o pescador esportivo que lhe desse a cachorra que este havia pego. Segundo o Kalapalo, era época de cheia e estava complicado pescar de anzol porque é bem mais difícil conseguir iscas – peixes menores apanhados com pequenas redes de malha. Todavia, o estrangeiro pescava com potentes iscas artificiais que conseguia arremessar muito longe com seu equipamento – presumido ser de alta qualidade. Então ficou assim: o peixe estava no rio, mas o pescador que o pescou soltava e não distribuía com aqueles que, por direito, seriam os donos dos peixes.

Pesca
Pescaria de cachorras no rio Culuene, Alto Xingu (MT). Foto: Cae Costa

Por fim, um relato sobre o jaú. Numa pescaria rotineira com “cunhado” (é comum que pesquisadores sejam inseridos no sistema classificatório local) peguei duas cachorras e em ambas ele me ajudou trazê-las para a canoa, o que quer dizer que atirou flechas enquanto rebojavam na superfície, e bateu na cabeça do peixe para embarcá-lo já morto. Seria muito perigoso embarcar um peixe desse nas canoas nativas sem que ele estivesse devidamente morto. Pouco depois peguei um jaú grande (Zungaro jahu), muito pesado. Cunhado sequer ousou olhar para o peixe. Ele não fez menção alguma de me ajudar a tirá-lo da água. Tive que fazer tudo sozinho e o peixe era consideravelmente maior do que as cachorras que ele me ajudou.

Tirei o anzol de sua boca e o coloquei de volta na água. Quando ele começou a nadar, cunhado disse: “Etekeha kitse!”, isto é, ele me aconselhava a dizer amigavelmente para o jaú que fosse embora. “Etekeha, ama inha!”, insistiu dizendo que o peixe podia ir embora, “para sua mãe”. Concluiu como se tivesse sido um engano sua captura: “Não quero você, quero só cacique”, referindo-se ao peixe-cachorra, como se fosse um pedido de desculpa por ter fisgado e trazido o jaú para o barco.

O jaú (kal. kanga kuegü) não é só um peixe, o que o próprio nome sugere. Kanga significa peixe o que adicionado do sufixo quer dizer aproximadamente um “super-peixe”, por isso ele não deve ser fisgado e, quando isso ocorre, deve ser solto com alguma cerimônia para que ele não faça mal àquele que o fisgou ou a alguém de sua parentela. Não é à toa que o jaú não faz parte da dieta alto-xinguana, ao menos dos Kalapalo, assim como uma série de outros peixes que se diferenciam entre os seres que seriam simplesmente animais e outros que seriam “super-seres”. A potencialidade da agência desses seres está na relação que se estabelece com eles, por isso é necessário cautela e respeito – demonstrado na cerimoniosa soltura.

Pesca
O jaú fisgado. Foto: Reprodução

Claro que tantos outros assuntos poderiam ser retomados para desenvolver esse incipiente tema. A intenção foi dialogar comparativamente através de práticas semelhantes, mas com inúmeras e amplas diferenças no que tange à relação entre homem e peixe. Se o interesse do pescador esportivo é soltar os peixes após a disputa para que ele se reproduza, numa tentativa até ingênua que se associa a certo discurso ambientalista, os motivos para a soltura dos peixes entre os Kalapalo se desenrolam em questões cosmológicas que estão para além desse debate ecológico. Com isso, a questão da esportificação passa a se desenvolver em outras práticas, mediando relações não somente entre humanos, mas entre humanos e outras espécies, neste caso, a captura de peixes para fins competitivos.

 

Referências

BASSO, Elen. 1995. The Last Cannibals: a South Amerincan oral history. Austin: University of Texas Press.

BOURDIEU, Pierre. 1984. Como é possível ser esportivo. Questões de Sociologia. Marco Zero, Rio de Janeiro.

DAMATTA, Roberto. 1982. “Esporte e Sociedade: Um Ensaio sobre o Futebol Brasileiro”. In: Universo do futebol. Rio Janeiro: Pinakotheke.

ELIAS, Norbert & DUNNING, Eric. 1992. A Busca da Excitação. Lisboa: Difel.

LATOUR, Bruno & WOOGAR, Stevie. 1997. A vida de Laboratório. A produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro, Relume Dumará.


Sobre o LELuS

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Como citar

COSTA, Carlos Eduardo. “Pesca Esportiva”: competição, sociabilidade e alteridade interespecífica. Ludopédio, São Paulo, v. 144, n. 33, 2021.
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